Quando completou 80 anos, o dramaturgo manifestou o desejo de viver mais uma década. Para quê? “Quero tudo para o teatro.”
Até mesmo quem não morre de amores pelo método anárquico do Teatro Oficina – e este é meu caso – fica comovido com a notícia da morte de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso. A arte deve muito à luta dos artistas-militantes, dos transgressores, dos subversivos, dos anti-heróis. Talvez Zé Celso – que morreu nesta quinta-feira (6), aos 86 anos – tenha sido o mais longevo representante dessa categoria no País.
O século 20 nos apresentou muitos deles. Difícil imaginar o modernismo à brasileira sem figuras como os dois Andrades – Mário e Oswald –, com seus livros, seus manifestos, suas polêmicas e, claro, a Semana de Arte Moderna. O próprio fato de o movimento ter nascido simbolicamente com um evento – e não com uma ou outra obra – indica a demanda por esses artistas.
Antes da Semana, porém, Oswald já havia homenageado Mário com o ensaio “O meu poeta futurista”. O homenageado estranhou: “Futurista, eu?”. Para a narrativa modernista, pouco importava se a poesia de Mário era ou não era “futurista” – o que sobressaía era o chamamento ao debate, a provocação, a controvérsia. Esses elementos, ao lado de Macunaíma, O Rei da Vela e outras obras, foram decisivas para levar São Paulo a se tornar, pela primeira vez, o vetor da cultura brasileira.
O Cinema Novo também teve seu Andrade genial – Glauber de Andrade Rocha – e, sem ele, não dá para compreender o Cinema Novo como um movimento transformador. Ver Deus e o Diabo na Terra do Sol ou Terra em Transe nos idos nos anos 1960 já era o suficiente para incomodar. Mas o Glauber ativista estava à altura do Glauber criador, graças à sua eloquência inspiradora e à sua força mobilizadora – aliás, qualquer evento com a presença do cineasta baiano já nascia tomado pela imprevisibilidade.
Vai passando o tempo, e manifestos como o brilhante “Uma Estética da Fome” parecem ainda mais atuais, à luz da luta pela integração e emancipação da América Latina e de outras regiões historicamente exploradas. “Uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado”, escreveu Glauber. “Somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo.”
Zé Celso pertenceu ao panteão dos artistas-militantes e foi seu grande expoente no teatro brasileiro. Se Caetano Veloso trocou a faculdade de Filosofia pela carreira artística, Zé Celso abandonou o Direito para militar na dramaturgia. Dirceu Alves Jr. lembrou que em 2017, quando completou 80 anos, o dramaturgo manifestou o desejo de viver mais uma década. Para quê? “Quero tudo para o teatro”, resumiu Zé Celso.
Para revolucionar o teatro, ele aliou tudo que lhe parecesse transformador – da própria obra de Oswald ao método Stanislavski, do teatro grego ao tropicalismo, da cultura à política. Duas peças, em especial, lhe renderam notoriedade: as montagens de O Rei da Vela (1967) e Roda Viva (1968).
Com a primeira, firmou em definitivo a proposta de um teatro interativo, sensorial, por vezes invasivo. “Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”, já dizia Vladimir Maiakóvski, parafraseando Lênin. Se o texto de Oswald foi escrito em 1933, Zé Celso ambientou a trama num Brasil pós-Golpe de 1964. Na lógica do Oficina, a chamada “arte pela arte”, a criação diletante, estava abolida.
Os recados nada sutis que O Rei da Vela passou aos militares ficaram razoavelmente impunes. Roda Viva, ao contrário, alçou Zé Celso à condição de inimigo do regime, a ponto de uma encenação da peça, em São Paulo, ter sido invadida por uns 20 terroristas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). A peça denunciava a censura e o arbítrio. O bando do CCC pagou recibo, destruiu o cenário e agrediu o elenco. Houve dois outros episódios de violência durante apresentações de Roda Viva. Mas o “teatro agressivo” do Oficina, conforme a definição do crítico Anatol Rosenfeld, estava consolidada.
Seis anos depois, a ditadura prendeu e torturou Zé Celso, deixando ainda mais claro que estavam em lados opostos. O lado de Zé Celso e do Oficina prevaleceu com o tempo, haja a vista a redemocratização e as cinco vitórias da esquerda nas seis últimas eleições presidenciais no Brasil. O dramaturgo foi anistiado pelo Estado brasileiro em 2010. Na campanha eleitoral de 2022, Zé Celso voltou a apoiar o amigo Luiz Inácio Lula da Silva – e comemorou o fim do governo de morte e destruição de Jair Bolsonaro.
Para 2023, não obstante os planos incessantes ligados ao teatro, Zé Celso reservou um marco em sua vida pessoal: o casamento com o ator e diretor Marcelo Drummond. A relação começou em 1986, quando Marcelo, aos 24 anos – quase a metade da idade de Zé Celso à época –, foi morar com o dramaturgo. Na concorrida cerimônia de troca de alianças, em 6 de junho, no Teatro Oficina, Daniela Mercury, Marina Lima e Mariana Morais se apresentaram. Foi uma espécie de festa de despedida do grande artista-militante do teatro brasileiro.
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