Viviane Ferreira, a segunda negra a dirigir um filme no Brasil

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Por Djamila Ribeiro

Nascida na periferia de Salvador, Viviane foca sua narrativa no encontro de duas gerações de mulheres negras que partilham memórias e vivências como forma de aplacar a solidão cotidiana.

Confira a entrevista:

Quem é Viviane Ferreira?

Viviane Ferreira: Tem algumas coisas que são indispensáveis saber sobre mim. A primeira delas é que sou uma mulher negra, nascida e criada no Coqueiro Grande, pedaço de chão na Estrada Velha do Aeroporto, na região periférica da cidade de Salvador, exatamente no fronte entre o Terreiro Manso Dandalungua Cocuazenza e o Sítio Santo Antônio.

Ali, o sol nasce cedo; as sombras das árvores frutíferas refrescam as gotas de suor que escorrem na face da gente preta sempre pronta para lida; e as nascentes de água doce nos brindam com espelhos d’água que nos põem cotidianamente frente aos nossos reflexos.

Assim, não é possível esquecer nunca de onde venho, porque meu lugar de origem diz muito sobre quem sou no mundo.

O que mais?

Eu tenho uma formação política fincada na vivência religiosa do candomblé, em uma casa em que o “feminino” ainda é centro do poder. Tal formação foi alinhada com a experiência de trajetória profissional e política fruto da resistência do movimento de mulheres negras brasileiras. No Ceafro (organização de mulheres negras em Salvador), integrei o coletivo de juventude e fui educanda e fui presidenta até 2017 da Associação Mulheres de Odun, organização de mulheres negras feministas.

Por último, e não menos importante, é indispensável a informação de que sou uma pisciana que torce para o Esporte Clube Bahia. Ser tricolor é ter a certeza que se tem dois títulos de campeã brasileiro e, ainda assim, seguir crendo que o mais importante no campeonato é jogar. Por isso, reconheço a importância da garantia de regras nítidas em todo e qualquer jogo.

Conte-me mais sobre o seu filme Um Dia Com Jerusa.

O longa metragem é desdobramento do curta O Dia de Jerusa. A história se mantém essencialmente em torno do encontro entre duas gerações de mulheres negras, que, na partilha de memórias e vivências, encontram respostas para amenizar a solidão cotidiana.

Qual é a diferença entre fazer um longa e um curta metragem?

No longa, temos mais fôlego para explorar o universo em que Silvia e Jerusa estão imersas. Com isso, podemos identificar como a memória coletiva da população negra está ilustrada na trajetória de cada uma das personagens, trazendo um sentido distante da ideia do “acaso” para o encontro entre essas duas mulheres.

Assim como o curta, a ideia do longa surge do meu processo de observação do cotidiano das pessoas negras na cidade de São Paulo, em diálogo com as reflexões sobre o estado de existência das pessoas negras.

Quem participa do filme?

Para contar essa história, conto com a atuação generosa de Léa Garcia e com a entrega corajosa de Débora Marçal. Nossa expectativa é manter o elenco e equipe do curta, embora já tenhamos feito pequenas alterações na equipe técnica, em função de compromissos dos profissionais com outros projetos para o período de dedicação ao filme.

Qual é a sensação de saber que você é a segunda mulher negra a dirigir um longa de ficção no Brasil?

A sensação de responsabilidade é muito grade, sobretudo, por ter consciência da quantidade de outras histórias, tão boas quanto a minha, que não foram selecionadas. Depois, porque proponho um filme que tem sua fonte criativa na “memória coletiva” da população negra brasileira.

Também não posso esquecer que estou à frente do projeto que quebrará um jejum histórico na cinematografia brasileira, uma vez que trata-se do segundo longa-metragem de ficção dirigido por uma mulher negra no Brasil. A primeira foi Adélia Sampaio, diretora de Amor Maldito, há 34 anos.
Por fim, sinto-me feliz e confiante com o desafio. Afinal, o projeto reúne características que fazem com que eu possa chamá-lo de “nosso filme” entre os meus e não de “meu filme”. Um Dia Com Jerusa é um sonho sonhado por muitas gerações.

Qual é a importância das ações afirmativas em editais de audiovisual?

É um fato incontestável que a sociedade brasileira vive uma história de profunda desigualdade racial. De mesmo modo, é incontestável a necessidade de esforços do Estado brasileiro para propor políticas reparatórias que visem reduzir esse fosso de desigualdades.

Por isso, os editais curta e longa afirmativos são importantes por serem reveladores de uma demanda reprimida: há pessoas negras sedentas por contar a própria história.

Além disso, expõem como são excludentes racialmente alguns dos critérios e condução das seleções de projetos audiovisuais nos editais “gerais”. Por fim, apontam um caminho profícuo para que a Ancine se inspire e se disponha a construir em diálogo com a SAV e a sociedade civil uma Programa Nacional de Ações Afirmativas para o Setor Audiovisual.

Diante da necessidade histórica de reparação estrutural e simbólica que o Estado deve à população brasileira, e as reivindicações do público por um conteúdo audiovisual cada vez mais representativo, em um país com mais de 50% da população composta por pessoas negras, o “Programa Nacional de Políticas de Ações Afirmativas para o Setor Audiovisual” é elemento indispensável para o avanço e aprimoramento das políticas audiovisuais brasileiras e, consequentemente, para o fortalecimento do cinema nacional.

Como é presidir a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan)?

Estar a frente da presidência da APAN é um dos maiores desafios que já me dispus à enfrentar. Primeiro porque a matéria da qual a APAN trata está inteiramente ligada aos sonhos, subjetividades e construções simbólicas das pessoas negras desse país. Essa é a matéria-prima do que definimos como “audiovisual negro”.

Em segundo lugar, trata-se de um processo político travado em uma arena na qual os privilégios da branquitude têm montado um grande cerco frente aos coerentes questionamentos e reivindicação de combate ao racismo estruturante no setor.

Além disso, trata-se de um processo coletivo entre pessoas negras e para pessoas negras, o que nos exige atenção cotidiana para que as estratégias históricas de desmobilização não atinjam à nossa construção coletiva.

Como assim?

Estamos à mercê das táticas de dividir para dominar: não cole em processos coletivos de pretos com pretos para não ficar marcado e “fora do jogo”. Comentários como “convidava você antes de ser da associação por ser minha amiga, mas pra mim esse rolê de raça não tem nada a ver, somos todos iguais, e daí por diante”.

Por fim, ainda precisamos lidar com os efeitos daquilo que já chamei em um texto de “matrimônio perfeito”: a aliança entre o racismo, o sexismo e o capitalismo.

Quais os efeitos de tal aliança, em especial, para negros e negras?

VF: Essa aliança produz uma escassez de recursos e oportunidades diante da nossa demanda coletiva reparação. E, consequentemente, adoece os nossos com uma frustração coletiva, diante das dores cotidianas produzidas por essas frustrações.

Ainda que estejamos organizadas(os) em uma associação, não são os nomes de todos os associados que aparecem entre habilitados ou contemplados em editais de fomento ao audiovisual. Também a seleção para grandes festivais faz com que, cotidianamente, precisemos ter parcimônia e resiliência para gerir a frustração coletiva e distribuir água sobre “fogo amigo”, tentando não nos permitir esquecer que tudo isso é efeito do tal “matrimônio perfeito” entre racismo, sexismo e capitalismo, que alimenta a farsa da meritocracia.

Com tudo isso, para me manter atenta, atuante e reflexiva para colaborar com as minhas e os meus na elaboração de estratégias que contemplem um número cada vez maior de sonhos, subjetividades e construções simbólicas negras no setor audiovisual, é preciso dormir e acordar lembrando de como sonhava, ainda guria no Coqueiro Grande, em cima do pé de cajueiro, em fazer filmes pela primeira vez.

Hoje, meu dia precisaria ter 48 horas. As regras do jogo para tornar esse sonho realidade não são tão nítidas para pessoas negras quanto às regras do Brasileirão para o futebol. Eu preciso me dedicar 24 horas à contribuição da elaboração dessas regras, para que caibam corpos e mentes negras no jogo. As outras 24, para redigir minhas narrativas e percorrer o árduo caminho de tentar garantir que os sonhos de filmes se tornem realidade.

Assista ao filme Dia de Jerusa completo: 

*Em 2011, Sabrina Rosa co-dirigiu com Cavi Borges, o longa-metragem Vamos Fazer um Brinde e, em 2017, Glenda Nicário co-dirigiu com Ary Rosa Café com Canela. Contudo, para efeito das reflexões presentes nesta entrevista, estamos considerando exclusivamente filmes de longa-metragem de ficção dirigidos e/ou co-dirigidos por mulheres negras. Perspectiva presente no artigo Por um cinema negro no feminino da autora Janaína de Oliveira, a ser publicado no livro da Abraccine sobre diretoras brasileiras.

Fonte: Carta Capital

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