
Ecos da escravidão e a herança cultural dos povos africanos no Paraná
Caminhando pelas ruas de Paranaguá e sentindo o vento soprando em meu rosto, lembrei-me de que esse vento carrega histórias que não estão escritas nos livros, mas que resistem nas pedras do chão, nas águas e na memória silenciosa de um povo. São narrativas de luta, dor e resistência, marcadas pelo tráfico transatlântico de africanos trazidos à força para estas terras. No litoral do Paraná, o mar guarda em suas águas e ilhas a lembrança de um passado de sofrimento e resistência. Após a proibição oficial do tráfico negreiro em 1850, algumas ilhas do estado tornaram-se pontos estratégicos para o desembarque ilegal de cativos.
A Ilha do Superagüi, com sua localização isolada no litoral norte, foi refúgio longe das autoridades, facilitando a entrada de negros trazidos à força. A Ilha das Peças, por sua vez, foi um dos locais usados no século XIX para o tráfico de escravizados. Durante esse período, os africanos eram frequentemente chamados de “peças”, uma referência desumanizante que os tratava como mercadorias. A ilha servia como ponto de “desova” — onde os navios que traziam cativos da África faziam a transição para o continente — ou como local de espera para a distribuição dos escravizados aos mercados locais, especialmente nas cidades vizinhas. Em Guaraqueçaba, a ilha foi esconderijo para traficantes que se aproveitavam da difícil fiscalização na região. Já mais ao sul, a Ilha do Cardoso se tornou ponto crucial de passagem, onde os escravizados aguardavam antes de seguir para o continente. Hoje, essas ilhas serenas escondem um capítulo sombrio da história brasileira, onde a luta pela liberdade começou muito antes de ser oficialmente reconhecida.
Os passos desses homens e mulheres, antes acorrentados, ainda ecoam nas ruas de pedra, nas trilhas do tropeirismo e nos caminhos que levaram à ocupação de Curitiba ( é a capital do Sul do Brasil com a maior proporção de pessoas negras) , Castro e Lapa. No entanto, a contribuição dessas populações para a formação social e econômica da região segue sendo apagada por uma estrutura que insiste em negar visibilidade à presença negra, perpetuando desigualdades históricas. Eram homens e mulheres arrancados de suas terras natais, marcados pelo cruel destino da escravidão, mas que, mesmo sob o peso das correntes, deixaram suas pegadas na cultura paranaense.
Vieram de Angola, do Congo, de Moçambique, dos portos de Luanda e Benguela. Chegaram em navios abarrotados, nos escuros e úmidos porões, privados de sua identidade e de um futuro. Mas, ao pisarem no Paraná, trouxeram consigo muito mais do que seus corpos cansados. Trouxeram sua língua, sua música, sua culinária, suas crenças — sementes que germinaram no solo novo, mesmo sob as tempestades da opressão.
Nas fazendas e engenhos, os bantu — quimbundos e tantos outros — entoavam cantos que se misturavam ao som dos ventos e das águas. No tropeirismo, suas mãos calejadas conduziam o gado, sustentavam o comércio e teciam laços entre cidades. No porto de Paranaguá, seus braços carregavam mercadorias, mas também a esperança de um amanhã diferente.
A escravidão, um crime contra a humanidade, tentou apagar suas histórias, mas não conseguiu silenciar suas vozes. Elas ainda falam nos temperos da cozinha paranaense, nas batidas do tambor que ressoam nos terreiros, na fé que se mistura e se ressignifica. Estão nos sobrenomes, nas expressões, no jeito de dançar e de rezar. Estão, sobretudo, na luta por reconhecimento, por justiça e pela valorização de um legado que não pode ser esquecido.
O Paraná é feito desses passos antigos, dessas mãos calejadas, dessa herança invisível e, ao mesmo tempo, tão presente. A história dos escravizados não se encerra nos registros frios da colonização; ela pulsa, insiste e se recria. Porque memória é resistência, e resistir é uma forma de existir para sempre.
Cláudio Ribeiro
Jornalista, compositor, escritor
Formação em Direito
Pós-Graduado em História do Brasil e
Ciências Políticas
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