A família de Di Cavalcanti (1897-1976) conseguiu na Justiça o que muitos agentes da ditadura militar tentaram em vão: interditar um filme de Glauber Rocha. Em 1977, para celebrar o amigo falecido um ano antes, o cineasta baiano lançou o documentário em curta-metragem Di Cavalcanti Di Glauber. Na maior parte dos 15 minutos da produção, o que aparece são imagens gravadas no velório e no enterro do pintor modernista.
Por André Cintra
Montagem: André Cintra / “Prosa, Poesia e Arte” Di Cavalcanti, no Masp, em 1965. A seu lado, reprodução de dois projetos de sua autoria: as capas do livro <i>Pauliceia Desvairada</i> (1921) e da programação da Semana de Arte Moderna (1922) Di Cavalcanti, no Masp, em 1965. A seu lado, reprodução de dois projetos de sua autoria: as capas do livro Pauliceia Desvairada (1921) e da programação da Semana de Arte Moderna (1922)
A ideia de um projeto tão singular – ou mesmo macabro, para alguns – não partiu apenas do diretor, nem foi tão espontânea quanto o filme sugere. Segundo Glauber, havia um pacto entre ele e Di Cavalcanti: quem morresse primeiro seria homenageado pelo outro. O artista plástico teria prometido que pintaria um quadro do cineasta se este, porventura, partisse antes. Mas Glauber só viria a morrer em 1981, enquanto Di Cavalcanti faleceu em 26 de outubro de 1976, no Rio de Janeiro, aos 79 anos.
Ao saber da morte, pelo rádio, na manhã seguinte, Glauber correu a bater na porta de amigos. Em pouco tempo, conseguiu uma câmera 16mm com o também cineasta Nelson Pereira dos Santos, além de 900 metros de película colorida virgem. Com a promessa na cabeça e essa câmera emprestada na mão, ele levou uma equipe de filmagem para o velório, realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).
Dado o estilo espalhafatoso de Glauber, o incômodo foi geral. Atrás de imagens de impacto, o cineasta chegou a se aproximar do caixão só para mexer no lenço branco que cobria o rosto de Di Cavalcanti. A família do pintor chegou a admoestar Glauber, sem sucesso. Com o fotógrafo Mario Carneiro à frente da câmera, o trabalho de filmagem era frenético e se prolongou até o enterro, no cemitério São João Batista.
Muito frenética e muito anticonvencional também foi a narração do filme, feita depois pelo próprio Glauber, em estúdio, num ritmo alucinante, que lembra o de um locutor de rodeios. Em meio à colagem de imagens, o discurso glauberiano misturava dados biográficos e artísticos de Di Cavalcanti, poemas de autoria do cineasta, de Augusto dos Anjos e de Vinícius de Moraes, além de críticas à ditadura militar.
Com o filme pronto, Glauber lhe deu um subtítulo longuíssimo, inspirado em Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos: Ninguém Assistirá ao Formidável Enterro da Tua Última Quimera, Somente a Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável!. O curta estreou em 1977, no Festival de Cinema de Cannes, onde recebeu o prêmio especial. Na ocasião, quem presidia o júri era ninguém menos que o italiano Roberto Rosselini.
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Em 11 de março do mesmo ano, a Cinemateca do MAM recebeu cerca de 500 pessoas para a primeira exibição da obra no Brasil. O filme também foi atração especial em duas emissoras televisivas – a TVE do Rio e a TV Bandeirantes, de São Paulo.
A esta altura, conforme se aproximava a data de lançamento de Di Cavalcanti Di Glauber em circuito comercial, a família do pintor modernista ameaçava ir à Justiça – e foi. Alegando violação ao direito de imagem, Elizabeth Di Cavalcanti, filha adotiva do homenageado, impetrou mandado de segurança na 7ª Vara Cível do Rio de Janeiro.
Em 11 de junho de 1979, quando chegaria ao grande público, o filme foi censurado – a Justiça concedeu liminar em favor da família do pintor. A estatal Embrafilme, responsável pela distribuição do curta, estava proibida de lança-lo. Glauber protestou: “Filmar meu amigo Di morto é um ato de humor modernista-surrealista que se permite entre artistas renascentes: Fênix/Di nunca morreu. No caso, o filme é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica condição”.
Apenas algumas salas em todo o Brasil conseguiram exibir o curta, dias 11 e 12 de julho, antes de receberem o aviso de proibição. Um evento de lançamento com a presença de Glauber, no Cine Rio Sul, foi cancelado em cima da hora, já com os convidados presentes. Oficiais de Justiça foram ao local e lacraram as latas com a película. O cineasta, indignado, dirigiu-se a uma delegacia, sem, no entanto, conseguir nada. A Embrafilme também recorreu, mas, em 1983, a Justiça ratificou a sentença.
Em 1999, uma tese de mestrado defendida na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) mudou o destino do curta. José Mauro Gnaspini – que era advogado, mas se pós-graduou Comunicação – sustentou que os direitos autorais de Di pertenciam não à Embrafilme, mas a Glauber. Acontece que o cineasta não foi alvo de nenhum processo. Dessa maneira – dizia Gnaspini –, era equivocado deduzir que o filme estava impedido. Sequer haveria fundamentos jurídicos do tipo.
Ao mesmo tempo, o cineasta Francisco César Filho reiniciou uma campanha pela liberação incondicional de Di Cavalcanti Di Glauber. Quando soube da campanha e da tese de mestrado, um webmaster de apelido “Dinanet” resolveu criar, no site Xoom, uma página para disponibilizar uma cópia pirateada do filme na íntegra. A escolha de um site norte-americano dificultou ainda mais a vida da família, já que o veto à exibição – mesmo que confirmado na Justiça – só valeria para o Brasil.
“Dinanet” se aproveitou de uma entrevista à Folha de S.Paulo para detalhar suas mais do que louváveis motivações: “Faço isso não só porque Di é da maior importância na história do nosso cinema, mas também para mostrar que não faz sentido proibir qualquer obra de arte num momento em que a Internet permite total liberdade de expressão”.
Cinco anos depois, em 2004, um sobrinho de Glauber Rocha igualmente postou o curta na internet. A repercussão, desta vez, foi maior, seja em virtude do parentesco, seja porque já havia milhões de internautas a mais no Brasil do que em 1999, seja porque as redes sociais ensaiavam os primeiros passos. Com a explosão do YouTube, no final dos anos 2000, toda e qualquer censura – não apenas a Di Cavalcanti Di Glauber , mas a qualquer filme – ficou para trás.
Ainda bem! Mesmo que eventualmente pareça lisérgico, à moda da virada da década de 1960 para a de 1970, Di Cavalcanti Di Glauber, em seu tributo dos mais audaciosos a um artista brasileiro, é uma autêntica obra-prima. Nas palavras do escritor “imortal” Antônio Calado, Di Cavalcanti, uma vez “embalsamado pelo documentário de Glauber”, converteu-se “no primeiro faraó brasileiro”, na acepção mais nobre do título. Tudo em meio a uma diversificada trilha musical, que inclui O Velório Do Heitor, de Paulinho da Viola, e Umbabarauma, de Jorge Ben Jor – sem contar Heitor Villa-Lobos, Lamartine Babo e Pixinguinha.
Ironia do destino: quando Glauber morreu, em agosto de 1981, Cacá Diegues e Joaquim Pedro de Andrade pensaram em filmar o velório e o enterro do diretor baiano, à semelhança do projeto com Di Cavalcanti. Sugeriram a proposta ao documentarista Silvio Tendler, que – outra ironia – também caiu em desgraça com a família do morto. Dona Lúcia, mãe de Glauber, só permitiu o uso das imagens finais do filho em 2000, o que culminou na produção de Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil (2003).
Devido à proibição judicial, o filme de Tendler não pôde usar cenas do filme de Glauber. “É pena, porque Di é um filme iluminado, uma super-homenagem carinhosa e também uma revolução na linguagem do documentário”, declarou Tendler. Não importa. A exemplo de Di Cavalcanti, Glauber Rocha permaneceu no centro do debate – e da polêmica – até mesmo depois da morte.
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