Urariano Mota: As mãos de Tonfil

Em uma tentativa de entrevista, Tonfil me fala que seu nome de registro civil é Antônio José de Lima Filho. Mas desde criança o chamavam de Tonfil, lá em São José do Egito, porque seus pais, socialistas ligados à arte, gostavam muito das tiras de Henfil e do nome dele, Henrique Filho. Daí que rebatizaram o filho, com afeto, como Tonfil.

Por Urariano Mota

E mais me falou Tonfil, enquanto se preparava para uma apresentação musical em Olinda:

“Nunca fiz, quando pequeno, escola de canto, de pintura ou de escultura. Mas sempre fui muito curioso…gostava da contemplação…e de tentar fazer igual ou parecido aquelas coisas que eu admirava e isso ia desde uma musica que eu ouvia e tentava internalizar até as esculturas sacras da igreja que eu tentava reproduzir em casa. Mais tarde, decidi me inscrever no curso técnico de Artes Visuais no IFPE de Olinda. Lá me interessei muito por História da Arte, tanto que me tornei monitor. Nos períodos seguintes ao introdutório, lidei com gravura (detestava as aulas, mas adorava os resultados) , argila, matéria que eu já mexia mas fui me envolver mais, e com pintura também me permiti desafiar. Porque os melhores períodos que eu acho da história da arte na pintura, são o da renascença , o barroco …os retratos simbolistas e românticos…aí mergulhei de novo no desenho e na pintura”.

É preciso ressaltar que Tonfil é um artista modesto. Onde outros preenchem lacunas com informações bibliográficas e de cursos – como se se apresentassem a um emprego de gerente no mundo das artes – ele oculta o seu estudo de pintores, escultores, a quem observa e capta. Ele pintou um retrato de Bruno Albertim que flagra o escritor e jornalista na próxima década. É como uma mova versão de O retrato de Dorian Gray, pintado na maturidade que virá, sem atingir a velhice.

Na escultura, as mãos de cerâmica que Tonfil faz como ninguém têm uma explicação, digamos, uma explicação:

“As mãos surgiram de uma conversa minha com Bruno Albertim sobre as pessoas q não tinham/não têm direito a representatividade visual, como os escravos no auge da cultura da cana que só tinham pés e mãos pra fazer parte da História. Que no auge da disseminação da fotografia e da daguerriotipia os negros e empregados fotografados (quando eram), apareciam como uma representação da posse do dono, do seu senhor. Então comecei a fazer essas mãos inicialmente pra inscrever num projeto no município de Água Preta”.

Impressionante. Tiro na mosca, preciso na visão que só os artistas têm. Isto é, os pobres, e menos ainda os escravos, não podiam ter fotos. Os mais jovens na era dos selfies não sabem, às vezes nem imaginam, e por isso temos que recordar o que o cotidiano destes dias esquece. No romance “O filho renegado de Deus”, pude observar:

“Há pouco, procurei documentos, qualquer um, fotos, papéis, anúncios comerciais, bugigangas, qualquer bugiganga que remetesse aos anos da primitiva infância. Aquela, quando eu mal sabia o meu nome. No entanto, descubro agora, é uma característica geral dos pobres o não ter fotos ou quaisquer lembranças materiais de suas vidas. Nada fica. Nada. Ou porque eram matérias de baixo preço, ruins, que o pouco tempo destrói, ou porque acidentes naturais, naturais como frutos da natureza, comuns, rotineiros, mas que para os pobres ganham a qualidade catástrofes, e por isso destroem os seus rastros. É como se Deus fosse mais cuidadoso em infligir aos miseráveis danos especiais, como uma provação e prova de fé, pois os que nada têm assim Lhe agradecem o bem. Tendo perdido tudo, se ficaram com restos de vida, dirão ‘graças a Deus’. Graças a Deus, portanto, por haver perdido minha única foto de infância, meus desenhos, minhas letras, o afeto de dona Maria, o seu sorriso, mas estou vivo. Graças a Deus. ‘Poderia ser pior’, ouço de um vizinho nesses anos. No que possui certa, certeira e aterrorizante razão. Há sempre possibilidades infinitas de inferno, desgraça e destruição. E se o mundo acabasse agora e Deus nos desse as costas, hem? O que seria de nós? Um fundo espaço negro, sem luz, matéria fria e mais nada. Graças a Deus que jamais isso acontecerá. Digo, não a destruição da terra, mas o infortúnio máximo, que seria Deus nos dar as costas. Pois Dele é imensurável a misericórdia.

Penso que por força mesmo da inexistência de fotos, móveis, roupas, por falta dessa história material, aos pobres só resta a documentação que vem da memória. E dos sonhos. E o diabo, o enxofre e o paradoxo é que, por consequência da miséria, os pobres sobem no espírito, naquele reino que não vira pó, uma vez que expulso foi da matéria”.

Se assim era na metade do século XX, nos anos 50, o que dizer dos escravos no século dezenove? É para esse instrumento de trabalho, as mãos dos homens desnaturalizados da sua essência livre, que o artista Tonfil realiza o seu “Memorial das Mãos sem Memória”. Belos e contundentes objetos, sem mutilação da alma dos que nos antecederam. Ou como ele fala:

“Então não sei se esse trabalho toca mais fundo essa ferida. Também quero fazer um videoarte onde as mãos vão estar presentes no fogo da queima da cana. Elas depois de serem chamuscadas, manchadas e enegrecidas pela fumaça estarão prontas”.

E conclui a nossa quase entrevista pelo inbox do Face:

“Não penso muito nessa história de identidade de artista ,não, hahaha. Embora goste de fazer, moldar e esculpir a figura humana mais que qualquer coisa,(adoro bustos!) . Não sei se as mãos serão minha grande marca. Vou fazendo, vendo ,vivendo ,assimilando(ou não), mas vou experimentando fazer imagens e figuras novas”.

A gente não precisa acreditar em tudo que um artista fala. Melhor vê-lo nas palavras que ele realiza. Ou no que vale aqui, o presente raro destas mãos:

Compartilhar:

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*