Um sarau para Maé

No fim de 2012 perguntaram onde eu gostaria de estar no dia 21 de dezembro, suposto dia do apocalipse. De pronto respondi que seria no colo de uma morena. Coincidentemente, nesta data eu estava nos braços da nega que adoro quando soube do falecimento do seu Maé da Cuíca.

Apesar da idade avançada, foi um choque. Fui provocado no dia de seu enterro a escrever uma nota para mandar aos jornais locais. Não deu e nem foi preciso, pois logo os suplementos culturais e de esportes da cidade noticiaram. Se fossem em poucas palavras, naqueles espacinhos dedicados aos obituários, assim o definiria: “Ismael Cordeiro, ferroviário, boleiro e boca negra. Maior sambista dessas paragens, fundou a Colorado, primeira agremiação carnavalesca de Curitiba e os primeiros grupos de samba. Faleceu aos 85 anos de idade, 66 de batucada. Deixa grandes composições e centenas de órfãos”.

Lógico, não dá pra resumir uma trajetória tão longa e intensa em uma nota de jornal. Faltaria dizer que como jogador foi campeão do Centenário pelo Ferroviário e que criou uma das primeiras baterias de torcida de futebol do país. Entre tantos outros feitos, formou diversas gerações de ritmistas, superou barreiras sociais ao dominar os clubes e sociedades da cidade e que no seu Partido Alto Colorado até Raul de Souza tocou. Sem dizer que sua “Bateria nota 10” encantou Cartola, Grande Otelo, Leci Brandão, entre outras figuras de renome que foram jurados do carnaval curitibano na década de 70.

Não pode ficar de fora a história de quando subiu o morro da Mangueira com seus batuqueiros e encantou a negrada de lá num tempo em que a polícia não subia, nem malandro descia. Ajudou seus parceiros de Colorado, Claudio Ribeiro e Homero Réboli, a vencer um festival e entrar para a Ala de Compositores da Estação Primeira. Veja bem, isso não é para qualquer um. Venceram sob aprovação de Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, superando o samba “Lama” do grande Mauro Duarte, que mais tarde seria eternizado na voz de Clara Nunes.

Passou incólume por todas as modas, sempre levantando a bandeira do samba e do carnaval. Nos últimos anos, mesmo com o fim de sua escola, participou ativamente dos desfiles como Cidadão Samba. Foi figura constante nas rodas organizadas pelo Anildo Guedes no Cimples Ócio, chegando a tocar com as lendas da Velha Guarda da Portela, Jair do Cavaquinho e Argemiro Patrocínio, além de muitos outros ícones do samba que passaram pela casa.

Tive o prazer de participar do projeto “Acabou a Vila Tassi, mas não acabou o samba” que registrou a memória da Colorado e culminou no lançamento do livro do pesquisador João Carlos de Freitas e num CD com depoimentos e composições do Maé, Claudio e Homero. Nas diversas entrevistas em seu apartamento ao lado da praça Tiradentes, gravamos 15 composições que ele recordava, algumas feitas há mais de 50 anos. O registro simples, fora de estúdio, guardou o som de sua cuíca e de sua voz entoando “A Vila está de luto”. Tudo isso o animou a gravar um disco em estúdio só com suas músicas. Falava até em montar um show reunindo a velha guarda da Colorado.

Apesar de não ter concretizado esses planos, a pesquisa de João Carlos acabou cristalizando a produção de Maé, levando alguns de seus sambas ao conhecimento de compositores locais que supriram a falta de referências legítimas ao tomar conhecimento da história e do legado de um sambista deste quilate. Além de homenagens prestadas pelos projetos Samba do Compositor Paranaense e Samba da Tradição, nos últimos dois anos de vida Ismael pôde ver suas composições serem cantadas em coro por uma geração 65 anos mais jovem.

Abaixo disponibilizo a parte que mais gosto dos depoimentos do Maé. A história de como impediu que malandros e prostitutas, que no contraturno eram ritmistas e passistas de sua escola, fossem perseguidos pela polícia e a passagem em que relembra a morte da passista Sonia, um dia antes do carnaval.

por Téo Souto Maior

 

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