TRÊS APITOS: UMA ANÁLISE

 

 

 

 

 

O presente trabalho tem por objetivo analisar uma composição de Noel Rosa, o poeta de Vila Isabel, que é considerado um paradigma da MPB, como um letrista profissional pioneiro. Noel deu nobreza ao samba e ajudou a projetá-lo como gênero de primeira grandeza no cenário musical brasileiro, foi dos primeiros a trazer a modernidade  para esse rico veio de nossa cultura popular. Foi cronista arguto que bem soube observar o meio em que vivia, tirando daí rico material para suas composições e contribuindo para definir o perfil poético desse tipo que hoje chamamos de carioca.  Esta é uma característica importante na obra de Noel Rosa. Ela é centrada em um microcosmo social caracterizado pelo samba, Vila Isabel e a sociedade carioca dos anos trinta.  Este universo está bem presente nesta canção que analisaremos:  Três apitos, feita em 1933. Esta canção traz no título o espaço social em que se desenvolve a história narrada pelo autor, a emergente sociedade industrial brasileira, que originava duas classes sociais nascentes: a burguesia industrial e o proletariado tipicamente urbano que começa a surgir com o início do desaparecimento das oligarquias agrícolas. O samba relata a paixão do poeta por uma moça que trabalha em uma fábrica de tecidos, portanto ,  no novo espaço criado pela industrialização recente implantada no Pais, que não escapa aos olhos atentos do poeta sempre conectado  aos acontecimentos e  fatos de sua época, que também soube bem apanhar como o surgimento da classe proletária no Rio de Janeiro retratada, na música, no personagem objeto de seu  amor , que é operária da fábrica de tecidos, e  não lhe dá a menor atenção, como se vê do contexto onde se passa a história:

 

 

 

Quando o apito

Da fábrica de tecidos

Vem ferir os meus ouvidos

Eu me lembro de você.

 

 

 

O eu poético, nestes primeiros versos demonstra todo o sofrimento que lhe vai na alma em razão da ausência da amada. Para o poeta que é músico, ao seu ouvido sensível repugna o som frio , desarmônico, agressivo e perturbador do apito. Na verdade, o apito da fábrica enquanto signo representativo de  um sistema de controle regulador da vida das pessoas que age, inclusive, sobre sua amada, provoca-lhe uma imensa sensação de  dor, traduzida na palavra ferir, porque  materializa , na verdade, o obstáculo que impede a atenção do seu amor, causando-lhe remordido ciúme desse ente desumano que toma todo o tempo e a atenção de seu grande afeto.

A sensibilidade do poeta repudia o apito da fábrica de tecidos porque ela simboliza um conjunto de idéias pelas quais ele não tem a menor simpatia: a desumanização das relações pessoais, a exploração da classe trabalhadora, a obrigação de dedicar-se ao trabalho dito produtivo, onde não há espaço para o artista, o músico, o poeta , o cancioneiro, que vê neste ponto tolhida a sua liberdade de criação e atuação porque a sua arte é vista no conjunto do sociedade como coisa de malandro, de marginal, de classes baixas do estrato social , do qual é preciso sair, mesmo à custa da perda de autenticidade pelo afastamento das raízes mais puras dos criadores populares. 

 

Mas você anda

Sem dúvida , bem zangada

E está interessada

Em fingir que não me vê.

 

Nesta estrofe o poeta deixar antever que os problemas com seu amor são maiores. Além do empecilho representado pela fábrica (Conquista, Vila Isabel, onde trabalhava Fina , namorada de Noel), também para seu infortúnio o poeta parece não contar com as graças da amada que faz pouco caso dos seus protestos, demonstrando indiferença pela sua declaração de amor mediante uma atitude de fingimento. Aliás, este tema será bastante constante na obra romântica do Noel Rosa, principalmente nas composições que tem por tema seu relacionamento amoroso com Ceci do qual Prá que mentir é o maior exemplo. Mas o poeta é esperançoso. Quem sabe não será apenas fingimento a desatenção demonstrada ou a raiva talvez seja passageira. No fundo , o poeta crê na afeição da mulher amada.

 

Você que atende ao apito

De uma chaminé de barro

Por que não atende ao grito

Tão aflito,

Da buzina do meu carro.

 

Nesta estrofe o poeta apanha a contradição da convivência conflituosa entre o antigo e o moderno , revelando sua capacidade de observação em relação às transformações de seu tempo, representada pelas expressões chaminé de barro X buzina do  carro.  O eu poético demonstra o choque deste antagonismo do qual aparentemente  sai vencido, quer dizer, de seu lado o poeta representa o mundo da  canção, da arte, da poesia, da sensibilidade,  num espaço marginal regido por valores distantes da sociedade de consumo;  de outro  lado opondo-se-lhe à afetividade da amada estão  a fábrica, as máquinas, o progresso industrial, o capitalismo e sua busca de lucro.  Esse o espaço da canção, onde o poeta não consegue sobrepujar a força do sistema.

 

Você no inverno

Sem meias vai pro trabalho,

Não faz fé com agasalho,

Nem no frio você crê.

Mas você é mesmo

Artigo que não se imita,

Quando a fábrica apita

Faz reclame de você.

 

Nesta estrofe o poeta reitera seu antagonismo com o ente fábrica que continua a se interpor entre ele e a amada. Denuncia nos dois primeiros versos a precária condição de vida do operariado recrutado à nascente indústria, do qual sua amada é a figura representativa na canção , e  que em contrapartida ao trabalho estafante  na empresa e de longa jornada , recebe tão pouco que não chega nem para comprar meias para se agasalhar do frio  quando se desloca de manhã para o trabalho.

Nas estrofe seguinte o poeta reclama da reificação operada pelo capitalismo moderno que transforma o ser humano, no caso sua amada, em coisa, em objeto,  em artigo e dele faz reclame, faz propaganda, que é um dos pilares da sociedade de  consumo sempre  tão apta para produzir e vender coisas. A indignação do poeta também dirige-se contra um outra ingerência da fábrica que é a de cantar o seu amor. Na visão do poeta, lhe cabe enaltecer as qualidades de sua amada, sendo indevida mais esta intrusão do sistema (fábrica ) em sua vida, mormente quando faz reclame de sua amada para glorificar a sua inimitabilidade e torná-la cada vez mais distante do amor do poeta.

 

Nos meus olhos você lê

Que eu sofro cruelmente

Com ciúmes do gerente

Impertinente

Que dá ordens a você.

 

Nesta estrofe o eu poético revela que o seu sofrimento atingiu um grau agudo de dor, o seu sofrer é cruel e pode ser lido de modo explícito no seus olhos, que como janelas da alma revelam a intensidade do padecimento do poeta por causa do seu amor. Nos dois últimos versos Noel faz, ao que parece, uma das primeiras denúncias de assédio sexual no âmbito das empresas, assunto que viraria tema de grandes debates na atualidade. O poeta questiona aqui mais uma vez  a desumanidade  do capitalismo que coloca as pessoas numa relação de desigualdade. De um lado,  aqueles que detêm o poder econômico e tem o poder diretivo da empresa à qual o operário adere integralmente sem poder  fazer qualquer oposição sob pena de perder seu emprego. No caso da canção o poeta denúncia o assédio do gerente que abusando de seu poder de autoridade na empresa procura se valer  desta condição para obter os favores amorosos da  humilde operária. Esta ilação nada tem de viagem, trata-se na verdade de transposição para o plano poético de fatos ocorridos com Noel Rosa, que após ver sua namorada assediada pelo contra-mestre Jerônimo Feliciano da Encarnação acrescentou estes versos a Três Apitos.

 

Sou do sereno

Poeta muito soturno,

Vou virar guarda noturno

E você sabe por quê

Mas você não sabe

Que, enquanto você pano

Faço junto do piano

Estes versos pra você.

 

 

 

 

O poeta reitera aqui o seu direito, opondo-o à fábrica, de bendizer as qualidades da amada. Cabe ao  poeta boêmio, ao poeta cantor , no seu espaço mais legítimo, (os bares, as casas de dança, os cabarés ) e no tempo mais  condizente  (à noite) para se cantar as coisas do amor , fazer  o elogio da amada, por isto o poeta quer virar guarda noturno fugindo do espaço diurno onde impera o mundo  do trabalho representado pela fábrica que se configura como um obstáculo à sua felicidade.

Nos três últimos versos o poeta reflete sobre  a impossibilidade de seu  enquadramento nesse mundo moderno, organizado e dominado pela razão, onde começa a imperar um regime técnico-industrial, e revela a sua relação com esse mundo moderno onde a arte se contrapõe ao trabalho, o piano à máquina.

Essa canção  nos apresenta, pelo olhar do poeta, uma série de características  do mundo burguês, onde ele crítica seus valores e simbologias,  através de fina ironia e grande sensibilidade. 

O início dessa canção com uma seqüência de quatro semi-tons ascendentes representam um lamento, que o ritmo salienta e complementa. Quando essa semi-tonalidade abre para notas mais altas enfatiza a tentativa  desesperada do poeta de ser ouvido pelo seu amor. O tom fica mais alto durante um compasso no ultimo verso de cada estrofe, descendo depois até o final, o que denuncia a aflição do poeta pela não audiência da amada e por se encontrar fora do espaço em que ela vive.

Três Apitos, sem dúvida, uma das mais belas canções de Noel Rosa é permeada de ironia, de humor , de um tom prosaico, onde o poeta se coloca na posição de quem está falando normalmente com outra pessoa, demonstrando que Noel soube como poucos se livrar da linguagem romântica e simbólica vigente então, mostrando perfeita afinidade com o movimento modernista ao aderir a uma linguagem coloquial, despojada, utilizando uma sintaxe e um léxico bem brasileiros.

A obra de Noel sintetiza a idéia de que o Brasil possui uma cultura única, um idioma intraduzível, que na sua visão atenta é brasileiro, já passou de português.

 

 

 

 João Carlos de Freitas

 Especialista em MPB, pela Faculdade Artes do Paraná.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

MÁXIMO, João; DIDIE, Carlos. Noel Rosa – uma biografia. Brasília, Ed. Unb, 1990.

NAVES, Santuza Cambraia. Modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.

 

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