Trane, 75 2

 

 

 

 

Aldir Blanc

 

Julio Cortázar escreveu sobre Clifford Brown palavras que, leves, caem como folhas de outono sobre a memória do jovem John Coltrane: “o xamã no mais alto da árvore de passagem, cara a cara com a noite fora do tempo…”

Mircea Eliade, estudando o xamanismo, descreveu uma primeira forma de transmissão hereditária, e ainda uma qualificação pelo “chamado”, a vocação espontânea, além da vontade própria ou do clã. Tudo isso se aplica ao Grande Pregador Coltrane, em seus sermões para todos e para ninguém, proclamados do alto das montanhas que só ele visitava, transformando, milagre dos milagres, os pães e os peixes em brisa, e é bacana os músicos de jazz desmentirem o truísmo que afirma: não se pode viver de brisa.

O Pregador, em seu púlpito de chamas (incendiário ou vítima da KKK?), transmite a mensagem musical cuja Graça está em não ser decifrada, nunca, mas amada pelos (des)crentes e (in)fiéis acólitos atraídos pelo Exemplo: o Pregador é o primeiro a se crucificar em sua estranha mistura de dádiva e narcisismo, os dois lados da mesma moeda com que o público de fariseus pensa em vendê-lo (e comprá-lo), as duas faces-fácies de Janos, quadros de uma exposição alada, Picasso, Magritte, Dufy, Pixinga, Morengueira – o maior jazz.

John Coltrane (1926-1967) amba saman sola a experiência transmissível e indecifrável, das Novas Hébridas à Amazônia, o fogo primitivo, o sonho libertário do escravo, a agonia do espírito, no que é contemporâneo e ancestral, como sangue escorrendo do sacerdote-vítima que se auto-imola, lábios rachados, pulmões enfisematosos, veias picadas, as mãos erguendo o saxofone como se apontassem a faca de obsidiana contra o próprio peito.

Melhor encerrar a sessão de hoje com a prata da casa, Luis Fernando Verissimo, não por acaso um saxofonista, com as palavras do prefácio ao livro História Social do Jazz, de Eric Hobsbawn: “E a sua integridade nunca dependeu de sair do porão enfumaçado ou da briga por um lugar no mercado da música popular, sempre foi o resultado de uma avaliação particular, de uma ética auto-imposta – um pouco como a da prostituta que faz tudo mas não beija na boca.”

Coltrane, morto, tem infinitamente (êpa!) mais a dizer que nossos espertíssimos sambolas e sertanojos. Parabéns, Train Trane, com setenta e cinco velinhas em bolo confeitado, cascata de camarão, tio fanho contando piada de papagaio, desquitada que fuma recebendo santo quando passam a mão na bunda dela. Muitos anos de vida.

Aldir “Cachimbo” Blanc

P.S. – Em meu modesto dicionário, Train quer dizer cauda de vestido, de cometa, de pavão; séquito, comitiva, trem, cortejo; fila, procissão, caravana; série, sucessão, seqüência, rosário; ensinar, instruir, educar; etc, etc…
Legal, né?

Aldir Blanc é compositor.texto extraindo do  no.com.br  que é o endereço de Notícia e Opinião, revista eletrônica feita por jornalistas que procuram combinar na Internet as maiores virtudes dos jornais e das revistas publicados em papel.

 

 

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