Militares de baixa patente denunciam horrores causados pelo Exército durante e depois da guerrilha: além de terem sido humilhados e torturados, hoje são ignorados pela corporação.
Por Xandra Stefanel
“Minha cabeça estourou três vezes com bomba. Saiu sangue do nariz, saiu sangue da boca, do ouvido, me deu mancha de sangue nos olhos (…) Enchiam a boca de açúcar com água, a gente amarrado nos pés e mãos e eles chegavam e jogavam aquele açúcar no corpo da gente pelado. Dali a pouco, era tanto marimbondo, tanta mosca, tanto mosquito, tanta formiga roendo… Você gritava, chorava e tudo, mas, como, amarrado nos pés e mãos? Perna aberta, braço aberto e aqueles bichos mordendo a gente de todo jeito…”
Em um filme que trata sobre o período da ditadura brasileira, este relato pode ser confundido como o de um civil capturado e torturado pelo regime. Mas não. A declaração é de alguém que fez parte da máquina repressora e dela também foi vítima. Episódios como este vivido pelo soldado Guido, enviado para uma missão no sul do Pará pelo Exército Brasileiro no começo da década de 1970, fazem parte do documentário Soldados do Araguaia, de Belisario Franca, que estreou nos cinemas na quinta-feira (22).
O longa-metragem de pouco mais de uma hora é uma viagem pelas profundezas do terrorismo de Estado perpetrado contra civis e militares no Pará entre 1972 e 1975. Com roteiro de Franca e Ismael Machado, o filme conta a história de soldados de baixa patente enviados para o interior da selva amazônica com a missão de exterminar a guerrilha do Araguaia, de resistência à ditadura.
As Forças Armadas recrutaram 60 jovens da região sem informá-los nada sobre a missão que seriam obrigados a cumprir e, segundo os oito depoentes do documentário, o que eles viveram foi pior do que o inferno. Quarenta anos depois do fim da guerra, eles descrevem pela primeira vez a sua versão dos fatos em frente às câmeras e o resultado é extremamente desconcertante mas, acima de tudo, poderoso e esclarecedor.
“A gente ficou vendo fantasma”
O clima tenso começa já nos primeiros minutos do filme, com sons de floresta, passos, insetos e a aproximação de um helicóptero. O que vem em seguida faz o estômago revirar. Jovens, em sua maioria campesinos, os soldados foram mandados para a guerrilha com apenas duas semanas de um treinamento que incluía tortura. “Aquilo tudo que eles (o Exército) faziam era pra nós não sofrermos dor, pena da pessoa que está apanhando. Então, eles faziam aquilo na gente que era pra saber, quando chegasse lá, a aplicar tortura também”, declara o soldado Fonseca.
Todos os episódios de tortura e humilhação vividos por esses militares de baixa patente começaram a vir à tona quando alguns soldados decidiram procurar ajuda no projeto Clínica do Testemunho, criado em 2012 pelo Ministério da Justiça com o objetivo de reparar os danos psicológicos causados à vítimas da violência causada pelo Estado.
“’Como assim militares se inscrevendo? Do que se trata?’ A gente não conhecia essa história, a gente não conhecia o que eles tinham sofrido dentro das Forças Armadas. Houve também nossas desconfianças e resistências enquanto equipe. O senso comum, digamos assim, e também os relatos tão duros com os quais a gente trabalha há tanto tempo falam do militar nesse lugar de torturador, de repressor. ‘O que que esses militares estão querendo? Expurgar algum tipo de culpa? O que está fazendo eles buscarem [ajuda]?’ Então, a gente decidiu ouvir”, afirma Cristiane Cardoso, psicóloga clínica-institucional do projeto.
Segundo a equipe da Clínica do Testemunho, as consequências psicológicas dos traumas vividos por esses soldados são enormes e continuam presentes no dia a dia dessas pessoas. Medo constante, crises de pânico, psicose, alcoolismo, pensamentos suicidas são algumas das manifestações de estresse pós-traumático apresentadas nas sessões.
“’Pega esse saco aqui!’ Você pegava como se fosse um saco de côco da praia. Você pegava e estava escorrendo sangue, era cabeça de gente, cabeça de mulher, cabeça de homem. ‘Pega esse saco aí!’ Pegava o saco cheio de mão. Você se melava todo de sangue e aquilo ficava fedido no corpo, mesmo que você tomasse banho. Você estava dormindo e parecia que aquele saco de cabeça estava perto da gente. Parece que aquele saco de mão caía em cima da gente. Meu deus do céu! Então, a gente ficou vendo fantasma”, conta o soldado Guido.
“Eu pensei em dar um tiro na cabeça”
Além dos efeitos psicológicos, esses homens já beirando os 70 anos contam como foram descartados pela corporação. Ao final da guerrilha, receberam um “muito obrigada” pelos serviços prestados e saíram em fila indiana marchando por quilômetros à pé. Não receberam a baixa militar nem comprovante de que fizeram parte do Exército. Muitos lutam até hoje pelos seus direitos e vivem situações financeiras bastante precárias.
“Eu que fui treinado para ser um herói, para defender a pátria em nome do Exército Brasileiro, hoje em dia sou rejeitado pelo Exército, por aqueles que foram meus amigos e hoje em dia tudo me negaram e viraram as costas pra mim. Então, não interessa mais viver. Eu pensei em dar um tiro na cabeça porque o mesmo revólver que eu usava na guerrilha, eu tinha ainda”, declara o soldado Góes.
O roteiro do longa-metragem acerta em cheio ao construir a narrativa de forma linear: o recrutamento inesperado junto das comunidades ribeirinhas e rurais, a tortura durante o curto treinamento, os horrores que viram e que foram obrigados a cometer, o descarte dos soldados sem qualquer direito, a reivindicação pelo reconhecimento do Exército e a luta para que este episódio seja passado à limpo. Com uma fotografia monocromática, a produção traz entrevistas permeadas por imagens de arquivo, de florestas, treinamentos militares e do cotidiano ribeirinho.
Ao final do filme, resta a certeza de que é preciso continuar trazendo à tona todo tipo de violência perpetrada pelo Estado para cobrar pela reparação dos danos causados durante a ditadura militar e cessar este ciclo de brutalidade. Quem sabe assim, no futuro, as instituições militares e policiais não se tornem mais humanas, sem as práticas repressoras tão amplamente utilizadas ainda nos dias de hoje.
Soldados do Araguaia, que participou da 41ª Mostra Internacional de Cinema, dá sequência à Trilogia do Silenciamento, um projeto de Belisario Franca que pretende recuperar histórias e personagens brasileiros que vivem à margem da historiografia nacional. O primeiro filme, Menino 23, foi lançado em 2016 e resgata a descoberta de um projeto de limpeza social amparado por teorias nazistas em uma fazenda em São Paulo.
Assista ao trailer:
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