SAPATARIAS

 

DEBRET, Jean-Baptiste. Sapatarias

O europeu que chegasse ao Rio de Janeiro em 1816, mal poderia acreditar, diante do número considerável de sapatarias, todas cheias de operários, que esse gênero de indústria se pudesse manter numa cidade em que os cinco sextos da população andam descalços. Compreendia-o entretanto, logo, quando lhe observavam que as senhoras brasileiras, usando exclusivamente sapatos de seda para andar com qualquer tempo por cima de calçadas de pedras, que esgarçam em poucos instantes o tecido delicado do calçado, não podiam sair mais de dois dias seguidos sem renová-los, principalmente para fazer visitas. O luxo do calçado é elevado ao máximo sob o céu puro do Brasil, onde as mulheres geralmente favorecidas por um lindo pé, desenvolvem, para ressaltá-lo, toda a   faceirice natural aos povos do sul. As únicas cores usadas eram o branco, o rosa e o azul-céu; a partir de 1832 acrescentaram-se o verde e o amarelo, cores imperias e usadas na Corte.

Esse luxo, aliás, não é exclusivo aos senhores; ele obriga a brasileira rica a fazer calçarem-se como ela própria, com sapatos de seda, as seis ou sete negras que a acompanham na igreja ou no passeio. A mesma despesa tem a dona de casa menos abastada, com suas três ou quatro filhas e suas duas negras. A mulata sustentada por um branco faz questão também de se calçar com sapatos novos, cada vez que sai e o mesmo ocorre com sua negra e seus filhos. A mulher do pequeno comerciante priva-se de quase todo o necessário para sair com sapato novo e a jovem negra livre arruina seu amante para satisfazer essa despesa por demais renovada.

No entanto, essa faceirice só pode brilhar durante o trajeto da casa à igreja pois aí de joelhos sobre o tapete estendido no chão, a brasileira esconde escrupulosamente seus saltos com o vestido e só abandona essa posição para ir sentar-se à moda asiática, isto é, com as pernas encolhidas sob o corpo, hábito que se observa nas reuniões particulares das classes inferiores da população, as quais sentam sempre no chão.

É, portanto, exclusivamente nos dias de festa, que se vêem no Rio de Janeiro mulheres de todas as classes calçadas de novo, pois chegando em casa os escravos guardam os sapatos e a criada de quarto somente conserva um par já velho que usa como chinelas. O mesmo acontece na intimidade da maioria das famílias onde as mulheres quase sempre sem meias e sentadas em geral nas esteiras ou na sua   marquesa, conservam habitualmente a seu lado um par de sapatos velhos, que servem de chinelas, para não andarem descalças dentro de casa.

Em resumo, esse desperdício de calçados, feito por mulheres que não os usam em casa, basta para sustentar os sapateiros, os quais, ademais, fabricam sapatos de seda muito finos e de cores extremamente sensíveis, como já vimos.

A anglomania portuguesa de alguns cortesãos vindos com o séquito do rei, e imitada a princípio pelos ricos negociantes do Rio de Janeiro, os levara a mandarem vir os seus calçados de Londres. Mas logo que o Rio se tornou a capital do reino, aí se instalaram sapateiros e boteiros alemães e franceses, abastecidos com excelentes couros da Europa; como era de se esperar, os trabalhadores negros ou mulatos empregados nessas sapatarias logo se tornaram rivais de seus amos e hoje se encontra, nas lojas desses indivíduos de cor, toda espécie de calçados perfeitamente confeccionados.

Quando de nossa chegada, as sapatarias se situavam na pequena rua dos Barbeiros, primeira travessa da rua Direita, ao longo da capela do Carmo; em menos de dois anos, o progresso dessa indústria levou-a até parte da rua do Cano, quase contígua à dos Barbeiros, e hoje as sapatarias começam a se espalhar por outras ruas do Rio de Janeiro.

A distribuição interna dessas lojas e a harmonia do cenário não variam. O branco, o verde-claro e o rosa são as cores adotadas exclusivamente. As mais pobres, entretanto, privadas de armários envidraçados, apresentam um simples tabique no fundo, que serve também para esconder o leito e uma porta que comunica com um pequeno pátio onde se acham a cozinha e o local em que dorme o escravo do sapateiro.

O desenho representa a loja opulenta de um sapateiro português castigando seu escravo; a mulata, sua mulher, embora aleitando uma criança, não resiste ao prazer de espiar o castigo.

O instrumento de suplício de que se serve o sapateiro chama-se palmatória, espécie de férula com furos de modo a não comprimir o ar e dar maior força ao golpe. O castigo, dado de conformidade com a falta, vai de uma a três dúzias de bolos seguidos.

Os outros negros são diaristas com os quais o sapateiro age do mesmo modo quando necessário.

(DEBRET, Jean-Baptiste)

Compartilhar: