Pouco importa o que Regina Duarte vai fazer da vida depois de ter deixado a Secretaria Especial de Cultura. Essa (mais essa) crise institucional serviu para jogar luz onde realmente merece atenção e precisa de socorro, a situação da Cinemateca Brasileira. Com 70 anos de história e dona do maior acervo de imagem em movimento da América Latina, a instituição corre o risco de desaparecer sob o comando obscurantista de Bolsonaro.
Na última sexta-feira (29), depois de uma reunião entre a Associação Roquette Pinto (Acerp) – órgão responsável pela administração da Cinemateca – e o Ministério do Turismo, o governo federal anunciou que pretende fechar a Cinemateca. Simples assim.
Uma nota do ministério enviada ao Estadão diz que a instituição “não será fechada e agora entra na fase natural de reincorporação pela União, uma vez que não existe respaldo contratual para a Organização Social permanecer”.
Imediatamente os trabalhadores da Acerp – que administra além da Cinemateca, a TV Escola e a TV INES – reagiram. Em uma carta aberta ao ministro do Turismo, Álvaro Antônio, e à Regina Duarte, fazem um pedido urgente: “Salvem a comunicação educativa e a Cinemateca Brasileira”.
Alertam para o risco que representa deixar o acervo sem manutenção: “ao suscitar rescindir contratos ou dar calote na ACERP, o Governo também joga fora todo o patrimônio, tangível e intangível, construído até aqui, em mais de décadas, com dinheiro público”.
A Cinemateca é responsável pela preservação da produção audiovisual brasileira. Localizada na capital paulista, no prédio onde até 1927 funcionava o Matadouro Municipal de São Paulo, a instituição foi criada nos anos 40 e desde então desenvolve atividades para preservar, divulgar e restaurar um acervo com mais de 200 mil rolos de filmes, trata-se do maior da América Latina.
A biblioteca Paulo Emílio Sales reúne um acervo bibliográfico especializado sobre o audiovisual brasileiro com mais de 70 mil itens entre livros, periódicos, recortes de jornais, catálogos, produção acadêmica e folhetos. Abriga ainda cerca de 4.700 documentos como certificados de censura, convites, além de uma coleção de 3 mil roteiros e oito mil cartazes de filmes, dos quais mais de 2.500 são de filmes nacionais.
Tudo isso está à espera de uma resposta do governo federal. Este governo federal que ataca as universidades, corta recursos da Educação, tem uma postura negacionista diante da maior crise sanitária que o Brasil enfrentou na história recente, ameaça a autonomia das instituições democráticas e a liberdade de imprensa e por fim ainda flerta com o fascismo. A ideia de apagar a História, as Artes, a Literatura e construir uma nova narrativa não é de hoje. Basta lembrar que em 1933 a turma de Hitler queimou livros em toda a Alemanha, o objetivo era “limpar a literatura”.
Fechar a Cinemateca significa cancelar todos os projetos em andamento? Deixar à mercê do tempo o maior acervo cinematográfico do país? Impor uma nova política de produção e preservação? Como em muitas outras áreas geridas pela trupe de Bolsonaro, na Cultura também a única certeza é o desmonte.
Conversei com um funcionário da Cinemateca sobre como essas questões afetam o quadro profissional e o acervo. As denúncias são graves e ele terá a identidade preservada, uma vez que corre o risco de sofrer represália.
“Existe um jogo político ali: Olavistas, PSL, militares… Parece que nenhum deles está preocupado com a preservação da memória do cinema brasileiro”, contou o servidor que continua desempenhando sua função mesmo sem receber há meses e agora ainda sob o risco de ficar sem a cobertura do plano de saúde em plena pandemia. “O corpo técnico é altamente qualificado, mas uma boa parte já se cansou. É preciso ter muita força psicológica”, desabafou.
Segundo ele, a crise entre a Acerp e o governo coloca em risco o acervo de forma “irreversível”. Neste imbróglio, a Cinemateca está sem receber cerca de R$12 milhões, referentes ao ano de 2019, que serviriam para acertas as infinitas despesas atrasadas, entre elas o salário dos funcionários. “Esse descaso e o desrespeito com quem trabalha aqui vai conduzir a Cinemateca para um caminho sem volta”, alerta.
Com este anúncio do governo feito sexta-feira – que não foi bem um anúncio porque não esclareceu o futuro da instituição – as incertezas apenas aumentam. E quem trabalha para preservar o patrimônio do cinema exige ao menos uma resposta. “A direção da ACERP tem nos pedido paciência na promessa de que tudo se resolverá através de um novo contrato firmado com a Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, entretanto, já se passaram quase 6 meses e o pior aconteceu: colegas de trabalho que ousaram cobrar e questionar foram demitidos, salários, serviços e demais benefícios deixaram de ser pagos e, em meio a pandemia que assola nosso país, podemos ficar sem plano de saúde. Os trabalhadores e prestadores de serviço seguem desempenhando suas funções sem receber para tanto”, diz a carta.
O documento é assinado pelos sindicatos dos Trabalhadores em Rádio e TV e dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro; dos Trabalhadores em Radiodifusão e Televisão e dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo; além da Federação Nacional dos Radialistas, a CUT e a Intersidincal. Eu, enquanto jornalista sindicalizada da capital paulista me somo ao grito de socorro dos colegas: salvem a Cinemateca! Ainda está em tempo de reverter essa barbárie que seria a destruição do nosso patrimônio.
Incorporar a Cinemateca à União, desmontar o quadro de funcionários que cuidam do acervo e deixar que o tempo se encarregue de dar fim à nossa história é uma tragédia anunciada que remonta o incêndio do Museu Nacional. Só que dessa vez soa ainda mais perverso porque parece mesmo feito de propósito. A quem interessa um país sem sua documentação histórica?
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