Em entrevista veiculada no dia 23 de setembro, por uma rádio de alcance nacional, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, disse que até o final deste ano mandará um projeto de lei para o Congresso alterando a atual lei de direitos autorais. As razões que ditariam a necessidade de tal mudança, repetidas pelo ministro na entrevista, podem ser vistas pelo prezado leitor na palestra do advogado do cartel das TVs por assinatura e do Cinemark, além de outros grandes conglomerados estrangeiros de redes de cinema, Dr. Marcos Bitelli, durante o Fórum de Direito Autoral realizado nos dias 30 e 31 de julho, no Rio de Janeiro. Palestra que está reproduzida no sítio do MinC na internet.
Declarou o ministro que, entre as mudanças reclamadas, está o controle externo do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), por um orgão do MinC que regule a atuação e a gestão coletiva pelos autores, que determine quanto, como e de quem os autores, intérpretes e produtores podem cobrar remuneração pelo uso comercial de suas criações, interpretações e produções.
E o que ditaria tal necessidade? O advogado do cartel esclarece: “fazer a arrecadação e distribuição ser consensada (sic) entre usuários e titulares, através de mediação, remetendo na hipótese de conflito à arbitragem judicial ou câmara especializada…”. É importante esclarecer o usuário não é o público, a sociedade. O termo “usuário” está na lei 9610/98 e define as empresas que usam, que fazem exploração comercial de obras de arte. São rádios, TVs, cinemas, casas de espetáculo, hotéis…
Numa linguagem menos inventiva, o que o cartel das TVs por assinatura e das grandes redes de cinema defende é que os autores só possam cobrar pelo uso de suas obras quando e se os usuários concordarem. Se não houver consenso remete-se “à arbitragem judicial ou câmara especializada”, que resolverão, evidentemente, com a celeridade tão característica da nossa Justiça.
Afirmou o ministro que “o controle externo é uma unanimidade”. Dele com o cartel. E mais ninguém. Nenhuma associação de autores ou produtores manifestou, até hoje, tal desejo masoquista. O ministro repete o feio vício de seu predecessor de selecionar algumas palavras das idéias e propostas alheias e apresentá-las como se fossem o todo e o oposto do que realmente são. O que o presidente de uma das sociedades de autores administradoras do Ecad, o compositor Fernando Brant, da UBC (União Brasileira dos Compositores), fez foi desafiar publicamente os detratores do Ecad e da gestão coletiva dos direitos autorais a criarem mecanismos para que o Tribunal de Contas da União passe a auditar as contas do Ecad. Mas Juca Ferreira prefere fugir do repto e copiar as calúnias em que se esmera o rábula dos cartéis.
Desafiar os que acusam o Ecad de ser uma “caixa preta”, um suposto esconderijo de, sabe-se lá, que manipulações diabólicas, a aceitarem a auditoria regular do TCU é, em primeiro lugar, uma clara demonstração de segurança na limpidez dos procedimentos do Ecad e é, também, um inequívoco repúdio à proposta Bitelli-Ferreira. É o oposto da pretendida unanimidade que o ministro alardeia.
Durante a entrevista, Juca Ferreira, usou o mesmo engodo em pelo menos uma outra ocasião: Afirmou que o Brasil precisa “modernizar” a lei de direitos autorais até porque vários outros países estão mudando as suas leis. O ex-ministro Gilberto Gil já tinha afirmado a mesma coisa, como demonstração de que o que pretendem para o Brasil estaria em sintonia com o que de mais moderno se está fazendo no mundo.
O estímulo para tal afirmação de Gil, repetida por Ferreira, vem da Europa, particularmente da Espanha, país do qual adotou até a terminologia – talvez motivado por sua afeiçoada relação com a Telefonica. Os países da Europa estão, de fato, alterando, complementando, modernizando suas leis de direitos autorais, depois de sete anos de discussões e debates. Mas para fazer o contrário do que Gil e Ferreira pretendem fazer crer. Têm complementado as suas leis de direitos autorais aumentando a proteção aos criadores e produtores e a abrangência da cobrança pelo uso das obras.
Em maio de 2001, o Parlamento Europeu publicou a diretiva 2001/29/CE “relativa à harmonização de certos aspetos da direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação”. Nessa diretiva, o Parlamento Europeu deliberou que “O enquadramento jurídico comunitário para a protecção jurídica do direito de autor e direitos conexos deve, assim, ser adaptado e completado na medida do necessário para assegurar o bom funcionamento do mercado interno…”. Para tanto, estabeleceu as bases para essas adaptações e complementos que os diversos países deveriam fazer: “Um enquadramento legal do direito de autor e dos direitos conexos, através de uma maior segurança jurídica e respeitando um elevado nível de protecção da propriedade intelectual (grifo nosso), estimulará consideravelmente os investimentos na criatividade e na inovação, nomeadamente nas infra-estruturas de rede, o que, por sua vez, se traduzirá em crescimento e num reforço da competitividade da indústria europeia, tanto na área do fornecimento de conteúdos e da tecnologia da informação, como, de uma forma mais geral, num vasto leque de sectores industriais e culturais. Este aspeto permitirá salvaguardar o emprego e fomentará a criação de novos postos de trabalho.
E ainda considerou que “o desenvolvimento tecnológico multiplicou e diversificou os vectores da criação, produção e exploração”. Mas alertou: “Apesar de não serem necessários novos conceitos para a protecção da propriedade intelectual (grifo nosso), a legislação e regulamentação atuais em matéria de direito de autor e direitos conexos devem ser adaptadas e complementadas para poderem dar uma resposta adequada à realidade econômica, que inclui novas formas de exploração.”.
O resultado é que os países europeus complementaram as suas leis de direitos autorais para garantir a remuneração de autores, intérpretes, diretores, roteiristas, escritores, produtores pelo uso de suas criações e produções pelas empresas que comercializam meios, mídias e aparelhos que têm permitido a banalização da cópia. É uma remuneração compensatória pela cópia privada, ou “canon digital”, como se diz na Espanha e no MinC, que é cobrada dos fabricantes ou importadores de CDs e DVDs virgens, de aparelhos de MP3, de reprodutores e gravadoras de CDs e DVDs, dos computadores, etc. e das empresas que exploram comercialmente a utilização dos meios e aparelhos digitais.
Afinal, “a divulgação dos aparelhos que possibilitam a cópia privada em larga escala veio criar um novo mercado através do qual os fabricantes desses aparelhos e as empresas que exploram comercialmente a sua utilização se locupletam à custa dos titulares de direitos” escreveu o jurista Dário Moura Vicente em estudo em que tratou de questões do “enriquecimento obtido à custa alheia” e do “enriquecimento sem causa no domínio do Direito de Autor” e que inspirou as mudanças na lei de direitos autorais em Portugal.
Já a proposta de Juca Ferreira é “flexibilizar” os direitos, é facilitar a locupletação do cartel estrangeiro das TVs por assinatura e das redes de cinema. É desproteger os criadores e produtores nacionais e o nosso mercado para facilitar a sua ocupação.
http://www.musicnews.art.br/Files/News/Docs/Minc%20-%20Direitos%20Autorais.pdf
João Moreirão