O Bispo Negro, Kandiero, Colombo : Editora Humaitá, 2024
O livro de Kandiero, Bispo Negro, uma espécie de sermão em forma de conto filosófico, em que a voz do narrador se une à voz do personagem central, o bispo, para fazer pensar na situação do povo negro na cidade de Curitiba e no Estado do Paraná: o apagamento da sua contribuição histórica, cultural e econômica, durante três séculos, muito antes da chegada dos migrantes europeus no século XIX por aqui.
O bispo convocou os paroquianos da Catedral da Luz e Bom Jesus, na cidade de Curitiba, para uma vigília em honra à Nossa Senhora Aparecida e à Irmã Dulce dos Pobres, no ano de 2019. Mas lá fora, na Praça Tiradentes, outros pretos estão presentes: há uma roda de capoeira ali e há também pessoas moradoras de rua, testemunhas do seu passado, resistindo a todo tipo de injustiça, ao longo dos anos, para se manter vivas, atuantes, presentes em nosso meio.
Voltando à Catedral, o bispo encontra na plateia pessoas que se entusiasmam com o que ouvem porque confirmam o que já sabem com essa espécie de sermão histórico endereçado aos seus paroquianos mais conscientes. É um sacerdote, teve acesso a uma formação intelectual, mas não abraçou os valores conservadores de uma certa branquitude, permaneceu fiel à sua história de afrobrasileiro, residente na cidade de Curitiba.
Como num monólogo de uma peça de teatro, os fatos vão sendo colocados e, então, outros atores, os vários paroquianos, negros, pardos ou brancos, vão reagindo, interrompendo o bispo, uns a favor, outros contra, diante das verdades que vão sendo reveladas, sobre o passado negro de uma Curitiba que se quis embranquecida, oficialmente, a partir do século XIX.
O bispo é portador de informações preciosas deste passado que informam e “ilustram” os ouvintes numa espécie de aula de História no que diz respeito aos construtores das igrejas da cidade, enfatizando a Igreja do Rosário, no centro histórico de Curitiba, levantada pelos escravizados para se constituir no seu lugar de culto, como em várias cidades do Brasil.
Kandiero nos faz pensar nos contos filosóficos do século XVIII de um Voltaire, de Cândido ou de um Montesquieu, das Cartas Persas, fornecendo, enquanto conta uma história, dados importantes da própria História, para que o leitor se apodere de um saber soterrado por valores da migração europeia, do século XIX, que pretendeu varrer a contribuição negra desse território para reinaugurar uma história heroica de seus próprios antepassados, como quis a ideologia vigente do Segundo Império. Muitas vezes, esses mesmos brasileiros, filhos de migrantes europeus, não estão dispostos a recordar sua própria trajetória : seus antepassados, na sua maioria, vieram ao Brasil expulsos pela própria miséria da Europa onde eram também escravizados, vassalos de um sistema feudal perpetuado até a vinda para outros países, em virtude das más condições de vida.
Alguém aí sabe a origem da palavra “eslavo”? Os eslavos são um grupo étnico e linguístico que se originou dos povos indo-europeus e que vivem principalmente na Europa central e oriental. Os descendentes dos eslavos originais incluem os poloneses, russos, tchecos, eslovacos, servo-croatas, bosníacos, eslovenos, búlgaros, macedônios do norte, ucranianos, rutenos, bielorrussos e os sorbes da Alemanha. Sobre a origem da palavra eslavo há uma hipótese bastante provável: A hipótese mais comum é que a palavra tenha origem na palavra latina “slavi”, que significa “escravos”. O termo “eslavo” surgiu na Europa entre os séculos 9 e 10, após as derrotas dos povos eslavos em guerras contra os germânicos.
Logo, a escravidão faz parte da História da humanidade e, num país tão plural como o nosso, seria muito redutor colocar essa característica apenas na população negra ou indígena, seria um erro histórico.
No entanto, quando os migrantes europeus se tornam bem sucedidos do ponto de vista econômico, parece que precisam inventar uma outra história para seus antepassados e para as razões que os fizeram atravessar um oceano para sobreviver em terras livres de guerras, fome e perseguições políticas ou étnicas. Parece que esse barco é muito maior.
Por isso, o que Kandiero nos propõe, é uma literatura de ideias, de convencimento de verdades históricas de três séculos. É inacreditável que isso ainda se faça necessário nos dias de hoje porque não há conhecimento, por parte dos brancos que aqui aportaram no século XIX, da contribuição já existente e já, na época, desconsiderada pelo poder vigente que facilitou a vinda desses migrantes: a ideologia do branqueamento e a “capacidade” de trabalho da mão de obra europeia que iria transformar o Brasil. A posse da terra, que deveria ser naturalmente de negros e indígenas, passou aos poucos para as mãos dos lavradores de origem europeia.
Esse redirecionamento do país agravou ainda mais as injustiças, deixando os negros à própria sorte, tendo que inventar seu destino, como nossos primeiros pequenos empreendedores, como músicos, compositores, vendedores ambulantes, jardineiros, doceiros, padeiros, capoeiristas, pequenos comerciantes de toda sorte, lavadeiras, cozinheiras, babás, amas de leite e faxineiras. Foram à luta e prosperaram como puderam e uma minoria pôde estudar, milagrosamente, tornando-se parte da classe média. Faltou “ilustrar” os migrantes europeus sobre essa parte da História. No entanto, os negros e os indígenas a conhecem muito bem porque foram capazes de contá-la, não somente, através da literatura, mas através da música, da dança, do canto e da cultura dos terreiros, verdadeiros centros de ação social das classes menos favorecidas, incluindo aí todos os mestiços brasileiros, já que as religiões de matriz africana nunca fecharam as portas a quem quer que fosse. É importante que isso seja afirmado: a tolerância dessas religiões é uma lição que a sociedade brasileira pode oferecer ao mundo, um valor criado e sobrevivente até hoje e que nunca poderia ter sofrido perseguições, já que é genuíno, presente e acolhedor.
Aí reside, a meu ver, a diferença dessa literatura afrobrasileira dentro da tradição literária europeia: há um corte que a academia brasileira demorou muito tempo a reconhecer: o tão aclamado Iluminismo do século XVIII de um Montesquieu, em Cartas Persas, em 1.721, em que o persa Usbek, chegando a Paris, perplexo com os costumes dos parisienses, mostra a sua surpresa diante do choque cultural: eles têm um Papa, um velho ídolo, que faz acreditar que três são apenas um[1], uma referência à divina trindade dos católicos. Essas cartas são trocadas com vários outros persas, constituindo um painel de diferentes pontos de vista que vão mostrando a vida na Europa e na Pérsia, atual Irã.
Esse mesmo iluminismo europeu influenciou nossa Inconfidência Mineira, fazendo de Tiradentes um líder e um mártir. Tomás Antônio Gonzaga escreveu Cartas Chilenas, um poema satírico, influenciado pelas Cartas Persas, em que Critilo[2], supostamente escrevendo de Santiago do Chile, envia a Doroteu na Espanha, críticas ao governo de Fanfarrão Minésio. O poema se encontra repleto de referências à autoritária e desastrosa administração de D. Luís da Cunha Meneses, governador da Capitania de Minas Gerais, de 1783 a 1788. Vale lembrar que em 1788, antes de ser preso e degredado para Moçambique, Tomás Antônio Gonzaga tomou parte de uma conspiração separatista contra o governo português que mais tarde ficou conhecida como a famosa Inconfidência, já citada aqui, de que faziam parte Alvarenga Peixoto, Toledo e Melo e o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Pois bem, aí é que entra o nosso defeito de História, parafraseando o excelente romance de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor[3]. Como a Academia era somente branca e pautada pela linhagem europeia do Iluminismo, nossos heróis da história oficial permaneceram os mesmos. Nunca aprofundamos nossos conhecimentos de Zumbi dos Palmares e de outros resistentes quilombolas por todo o Brasil. Nunca aprendemos na escola o que foi a revolta dos Malês e de outros escravizados organizados na Bahia e em outros estados. Há uma lacuna na nossa formação. Há uma lei obrigando esses estudos que não é praticada nacionalmente como deveria. Lacuna esta que Kandiero tenta preencher com o seu texto, lacuna esta que eu sinto quanto tento escrever essa resenha. Me faltam dados, me faltam informações históricas, me faltam datas oficiais que marcam essas lutas.
Agora temos o 20 de novembro, é certo, mas quanto tempo demoramos para ter essa data? É uma data denominada Consciência Negra, mas deveria ser Paciência Negra… Há muito deveríamos ter adotado o conceito de Amefricanidade de Lélia Gonzáles. Com essa terminologia teórica e histórica, a autora busca superar o nacionalismo metodológico, ultrapassando as barreiras territoriais, linguísticas e ideológicas das Américas. Trata-se, antes de tudo, de uma categoria anti-imperialista, ou seja, que busca reagir às formulações norte-americanas autorreferenciadas que se impunham sobre as demais partes do continente. Ademais, é uma categoria que tem por objetivo estabelecer bases comuns críticas à formação colonial. Não se trata, porém, apenas de um termo para nomear a opressão e exploração do período da escravidão, trata-se antes de lançar bases para uma solidariedade cultural e política levando em conta as dimensões de gênero e os elementos étnicos e raciais da América Latina, a qual é chamada por Gonzalez de Améfrica Ladina, justamente para dar visibilidade aos agentes econômicos, políticos e culturais não brancos da formação desse extenso e diverso território.[4]
A que devemos esse atraso?
Muito à academia nacional, às universidades, que não incorporaram as contribuições extraordinárias de pensadores negros e negras ao longo do tempo, considerando que essas contribuições fossem mais adaptadas a entender apenas a situação do negro em nosso país. Um erro gravíssimo, porque retardou a compreensão das injustiças sociais do nosso povo como um todo: Luís Gama, Lima Barreto, Laura Santos, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzáles, Milton Santos, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Dora Lúcia Bertúlio, Djamila Ribeiro, entre tantos outros… (Machado de Assis embranquecido foi levado em conta).
E muito desse atraso se deve também aos movimentos atuais de extrema direita, cujos membros não reconhecem e não se reconhecem na cultura brasileira, tentando excluir o que há de mais valioso nela, a contribuição negra e indígena, embora utilizem culturalmente essa contribuição porque não haveria como evitá-la, está entranhada em todos nós. E também pela ignorância de não encararem as religiões de matriz africana como qualquer outra religião.
Não se trata somente de uma questão identitária, mas de uma questão de compreensão da sociedade brasileira. É fundamental recuperar esse tempo perdido e precisamos nos “iluminar” com esses autores, não como queria o Iluminismo europeu, mas levando em conta as contribuições de compositores-músicos-pensadores-poetas também, já que esses entraram e entram muito mais na nossa vida cotidiana porque estão presentes nas festas populares e nos movimentos sociais mais à esquerda e ajudam a pensar o Brasil desde o início da sua História, incorporando o batuque, as palmas, o canto, um pensar com o corpo e com a mente, uma intelectualidade que não recalca o corpo: Pixinguinha, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Cartola, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola, Leci Brandão, Candeia, Zé Keti, Wilson das Neves, Almir Gineto, Mano Brown, Emicida, Seu Jorge, Criolo, Teresa Cristina, Waltel Branco, Léo Fé, Maé da Cuíca ihhh uma lista sem fim!
Quando escuto a canção de Leci Brandão, Revolta Olodum, em que ela fala de um exército de ideias que precisamos utilizar para mudar a situação do povo brasileiro, fica evidente essa forte contribuição de uma artista completa: compositora, cantora e ativista política:
Zumbi em Alagoas comandou
Um exército de ideias, libertador
Sou mandinga, Balaiada, sou malê
Sou búzios, sou revolta, arerê.
Voltando ao texto de Kandiero, trata-se de autor que também não recalca o corpo e que expressa sua consciência social e política pela escrita na totalidade do seu ser.
Um dos seus personagens, sentado na catedral, ouvindo o sermão do Bispo Negro, é um ex-prefeito da cidade, que se considera católico fervoroso. A leitura do conto avança com facilidade e o diálogo entre o Bispo e o homem político aguça a curiosidade do leitor porque toca em contradições históricas, como a posição da igreja católica diante da escravidão, por exemplo. Mas também sobre outros posicionamentos mais dignos de parte desta mesma igreja.
Muitos outros assuntos vão sendo abordados como o Paranismo, defendido por parte de historiadores e críticos literários locais que tentaram explicar que o Paraná é um “Brasil diferente”, em função da contribuição cultural europeia. No entanto, como nos mostra o Bispo bem informado, isso só acontece em função do apagamento das contribuições culturais dos negros e negras desse estado.
Se qualquer habitante de Curitiba, por exemplo, for ao Memorial da Cidade e subir as escadas, vai dar de cara com o nome Paranismo, escrito com letras grandes vermelhas num fundo dourado. Ali, obras de artistas consagrados estão presentes e também nomes de políticos liberais da década de 1930 são lembrados como os únicos possíveis. A exposição é de caráter permanente. E talvez a parte mais impressionante seja a presença de altares de uma Capela, “A Capela dos Fundadores”, os altares laterais que pertenceram à primeira igreja matriz de Curitiba, de 1780 a 1786. As peças são portuguesas. Mas apenas uma pequena parte da população desta cidade vai se identificar com esses símbolos e com os nomes ali presentes.
Essas informações, como estão dispostas, de forma permanente e como um resumo do Paranismo, excluem realmente a presença dos negros e indígenas da cidade. Há uma redução histórica que deveria nos envergonhar, como bem coloca o Bispo Negro. Para ter uma ideia um pouco mais realista, é necessário visitar o Museu Paranaense, subindo a rua.
Mais adiante, em seu texto, Kandiero lembra os artistas negros do Paraná esquecidos pela cultura oficial que teima em recriar história e arte recentes, sem levar em conta a grande contribuição daqueles habitantes. Para finalizar, ele nos apresenta ainda a Santa Eugenia Curitibana que só reforça o racismo persistente nessas terras…
Já passou da hora de enterrar certas narrativas fantasiosas e de restabelecer os fatos históricos e os valores de culturas aqui presentes antes da chegada dos migrantes europeus.
Lúcia Peixoto Cherem
Professora aposentada do Curso de Letras da UFPR
11 de novembro de 2024
[1] Montesquieu, Lettres Persanes, Paris ; Ed. Flammarion, 1964
[2] Personagem criado por Tomás Antônio Gonzaga, em Cartas Chilenas. São Paulo : Companhia das Letras, 2006
[3] Um defeito de cor. Ana Maria Gonçalves. São Paulo : Record, 2006
[4] Lélia Gonzáles. Flávia Rios. Enciclopédia Mulheres na Filosofia, UNICAMP
Faça um comentário