Reconstruindo o Brasil

 

ZeCariocaBrasilEm exposição com cerca de 180 obras no MAR, Fernando Lindote descontrói personagens como Zé Carioca e Macunaíma para traçar um histórico da representação do Brasil aqui e no exterior

 

Em meados da década de 1940, no auge da Guerra Fria, o papagaio Zé Carioca desembarcava por aqui, a princípio pomposo, para propagar o “american way of life”. Nas mãos do cartunista Renato Canini e do roteirista Ivan Saidenberg, porém, o personagem criado por Walt Disney logo ganhou o jeitinho brasileiro e, malandro, se tornou símbolo da nação. Ele e outros, como Macunaíma, de Mario de Andrade, serão revisitados na exposição Fernando Lindote: Trair Macunaíma e Avacalhar o Papagaio, que reúne cerca de 180 obras de Lindote e de nomes como J.Carlos, Glauco Rodrigues, Walmor Corrêa e Maria Martins no Museu de Arte do Rio (MAR). Até 24 de abril, o público poderá conhecer melhor, através de desenhos, ilustrações, pinturas e esculturas, além de objetos e documentos, como o Brasil e o Rio de Janeiro vêm sendo representados ao longo dos anos.

Trailer de ‘Alô Amigos’ (1942): filme que marca a primeira aparição do personagem Zé Carioca será lembrado na mostra de Lindote  (Foto: Divulgação)

 

 

O ponto de partida da mostra é a relação de Lindote com Canini, principal ilustrador brasileiro do personagem Zé Carioca. Dos 11 aos 16 anos, aproximadamente, o artista frequentou o atelier de Canini e, até hoje, o papagaio com as cores do Brasil permeia sua obra, sendo constantemente revisitada e reinventada, assim como outros personagens estrangeiros com forte entrada na América Latina. É de Canini, inclusive, o termo avacalhar, presente no título da exposição.

 

“O Zé Carioca chega aqui de paletó, cartola e guarda-chuva e sai malandro, no contexto social da favela, com amigos negros. O título da primeira história do personagem publicada aqui, em 1942, era Como Almoçar de Graça. Canini costumava dizer que avacalhou o papagaio, no sentido de distorção da imagem hegemônica que os Estado Unidos queriam implantar no restante do continente”, explica Leno Veras, cocurador da mostra ao lado de Clarissa Diniz. Paulo Herkenhoff assina a curadoria principal.

 

Outro personagem usado para caracterizar o brasileiro e que ganha uma releitura na obra de Lindote é Macunaíma, do romance homônimo escrito por Mário de Andrade em 1928. “Originalmente, Macunaíma é um mito indígina referente a um deus que, do alto do Monte Roraima, cuidava da floresta amazônica. Foi lido por Mário de Andrade e transformado em uma figura preguiçosa, anti-heróica e indolente que é a simbologia do Brasil. Lindote reconstrói o Zé Carioca e o Macunaíma, distorcendo essas figuras na própria obra”, diz Veras.

 

Através de quatro núcleos que trazem elementos típicos do Brasil, como a fauna, a flora e a diversidade cultural, Lindote aponta elementos que contribuíram para a construção da identidade nacional, como destaca o cocurador. “A exposição se debruça sobre as simbologias do Brasil e as representações do Rio de Janeiro ao longo da história. A gente está interessado na carta que Pero Vaz de Caminha escreveu, na visão do padre jesuíta espanhol José de Anchieta, como Carmem Miranda foi enviada para os Estados Unidos para representar o Brasil tropical no começo do século XX, com frutas adornando sua cabeça, e como Pelé foi utilizado como ilustração do Brasil malandro e da ginga. Todas essas alegorias discutem o que é a construção da identidade de um país tão diverso”, afirma.

 

O primeiro núcleo apresenta o início da trajetória artística de Lindote, com destaque para a influência de Canini. Ilustrações de nomes como J. Carlos, Rivane Neueschwander e Cláudio Tozzi, assim como exemplares de gibis do Zé Carioca, da revista Cacique e do jornal O Pasquim ajudam na contextualização histórica. A segunda parte foca na biodiversidade dos trópicos e no papagaio como um dos símbolos nacionais. O núcleo mostra as relações entre os imaginários dos nativos e dos colonizadores em relação à esta biodiversidade, com obras de Lindote, Francisca Manuela Valadão, Albert Eckhout, Sérgio Allevato, Walmor Corrêa, Milton Guran, Ana Miguel e porcelanas Art Déco.

 

O terceiro módulo abarca obras de Lindote produzidas entre 1990 e 2015, que deixam claro  como distorções, deformações e transformações permeiam toda sua trajetória. “Quando nos aprofundamos na obra dele, descobrimos que está sempre transformando a própria prática e a si mesmo, desenvolvendo uma técnica e, de repente, mudando essa técnica. Lindote está sempre se reinventando a partir de uma mudança plástica que não necessariamente abandona a técnica anterior”, aponta Veras. Trechos da animação Alô Amigos (Disney, 1942), que marca a primeira aparição de Zé Carioca, completam este terceiro módulo.

 

No último núcleo, as obras, bem como bibelôs, cartões postais, tecidos, fotografias e personagens ícones do Rio e do Brasil, realçam o modo como a cidade se consolidou internacionalmente por sua capacidade de configurar símbolos plásticos e gráficos. “Em uma das obras, uma grande árvore invertida repleta de imagens de papagaios, que chegaram a valer 18 escravos no século XVIII, tem uma imagem da arara azul Blu dos filmes Rio 1 e 2 (Pixar, 2011 e  2014, respectivamente), no meio. É uma visão que continua sendo replicada até hoje (samba, praia, futebol), em um filme que foi feito por um brasileiro. A pespectiva do exterior sobre o Brasil continua sendo vendida e comprada. Através da exposição, temos a possibilidade de discutir, em um momento importante da política nacional e internacional, o brasileiro que aceita essas imposições e lida com elas de maneira malandra, que veste a camisa 10 da seleção e distorce esses estereótipos a seu favor”, conclui Veras.

 

Saiba mais em Programação Cultural.

 

Colaboração de Danielle Veras

 

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