Estamos vivendo um processo histórico de definição dos marcos de propriedade intelectual e a possibilidade de rever nossos compromissos nesta área e da cultura de um modo geral como um direito humano.
Assim como em outras áreas do direito, atualmente há maior percepção de que na década de 90 – período de maior incidência neoliberal nas políticas públicas do país – houve demasiada e indevida concessão da dimensão pública e social aos marcos jurídicos de interesse ligados ao comércio internacional e, especialmente, aos grandes temas como investimentos, serviços e propriedade intelectual.
A avaliação é de Carol Proner, doutora em direito, é coordenadora do Procade Democracia e Inclusão Tecnológica (UFSC/UniBrasil/PUC-PR/UNISANTOS), em entrevista ao Adverso, publicação do Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior de Porto
Alegre (Adufrgs Sindical).Autora dos livros Propriedade intelectual e direitos humanos: Sistema Internacional de Patentes e Direito ao Desenvolvimento (Fabris, 2007), Propriedade Intelectual: para uma outra ordem jurídica possível (Cortez, 2008) e Inclusão Tecnológica e Direito à Cultural (Org. Funjab, 2012), Carol Proner é uma critica da ofensiva privatizadora na área da propriedade intelectual e da cultura de um modo geral. “O marco ideológico patrimonial é o
mesmo, tendente a não permitir qualquer objeção de ordem social à lógica prevalecente da privatização sem limites”, afirma Proner.
Qual sua avaliação sobre o atual estágio do debate sobre propriedade intelectual e direito autoral no Brasil? Estamos caminhando para uma legislação mais restritiva ou mais flexível?
A pergunta exige uma breve recuperação histórica do processo de revisão da Lei de Direito
Autoral (LDA – Lei nº 9.610/98). Quando, já em 2007 e, em especial, na gestão do Ministro Juca Ferreira, se discutia a possibilidade de revisão e modernização da LDA, havia grande expectativa quanto ao surgimento de um marco vanguardista em matéria de inclusão cultural, acesso ao conhecimento, direito à cultura, valores que são a priori incompatíveis com modelos clássicos de livre iniciativa na comercialização de bens culturais. O debate tomou rapidamente
grande proporção, tendo o governo contabilizado mais de mil contribuições apenas no primeiro mês de consulta pública.
O processo amplo e participativo de reuniões
periódicas também apresentou resultados qualitativamente surpreendentes, com
propostas criativas e inéditas quando comparadas à legislação de países
europeus. Ainda que muitas das propostas não tenham sido incorporadas na versão
final do anteprojeto, havia espaço político e institucional para a discussão e
a disputa de valores e direitos que supõem a grande propriedade do século 21: a
propriedade intelectual.
Obviamente o governo não estava estimulando a
socialização da propriedade intelectual, mas uma tentativa de correção de rumos
e assimetrias na concepção do direito de autor e na ideia de Indústria
Cultural, bem como na identificação do intermediário, dos direitos do
consumidor e da dimensão coletiva da cultura, do conhecimento, dos direitos de
cidadania; a proposta foi a de construção de um novo marco legal capaz de
compatibilizar a relação entre autores, investidores, usuários e cidadãos com o
fim de estimular as criações e os investimentos, ampliar o mercado dessas obras
e diminuir o número de processos judiciais que até hoje evidenciam os problemas
decorrentes dessas assimetrias.
Nesse sentido, a gestão Ana de Holanda foi
desconcertantemente diferente. A partir de então, como é sabido, produz-se um
desânimo generalizado em razão da brusca interrupção do debate democrático e,
no lugar, passa a prevalecer uma desconfiança a respeito dos atores
privilegiados do Ministério.
Na gestão da ministra deu-se seguimento ao
anteprojeto de lei de Modernização da Lei de Direito Autoral, embora tendo
resultado em uma versão menos flexível que a proposta do ministério anterior. O
anteprojeto segue na Casa Civil desde outubro de 2011 e, após essa etapa,
seguirá para avaliação do Congresso Nacional.
A nova Ministra Marta Suplicy devolve esperança
quanto ao debate democrático, vez que já manifestou o desejo de rediscutir o
tema, de estudar as opiniões que desde 2007 (gestão do então ministro Gilberto
Gil) foram defendidas por grupos diversos. No dia 24 de setembro, ela disse à
Agência Brasil: “Tem muitos grupos, muitas posições divergentes. Eu vou ter que
entrar e conversar com todos os grupos até chegar na forma que preserve o autor
e converse bem com o século 21, que é a contemporaneidade da internet”.
Portanto, há expectativa para que o debate da
flexibilidade ganha força, bem como um adensamento da participação de atores e
movimentos deixados de fora nos últimos dois anos.
Quais seriam as principais ameaças hoje decorrentes da pressão pela adoção de leis mais restritivas (nesta área). Poderia citar alguns exemplos?
Além do anteprojeto de lei de Modernização da Lei de Direito Autoral, decorrente da
gestão de Ana de Hollanda e que está na casa civil, é preciso lembrar, como o
fez Manoel J. de Souza Neto, atual membro do Conselho Nacional de Políticas Culturais, que existem outros dois projetos em andamento e em disputa, um na Câmara dos Deputados, com base no projeto do ex-ministro Juca Ferreira e outro que resulta do relatório da CPI do ECAD, que está no Senado e ainda não virou PEC.
Um dos principais pontos dessa disputa decorre do monopólio de sociedades arrecadadoras, em especial as polêmicas envolvendo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), sociedade civil, de natureza privada, instituída pela Lei Federal nº 5.988/73 e mantida pela atual Lei de Direitos Autorais brasileira – 9.610/98. As denuncias contra o ECAD, por
um lado, expõem as irregularidades diante da falta de fiscalização (CPI do ECAD realizada em 2011), e, por outro, mostram a crise deste órgão obsoleto diante das possibilidades de comunicação advindas da Internet.
A polêmica do ECAD simboliza outras disputas e problemas mais específicos: a ausência de política adequada para o exercício de fiscalização e controle dos direitos autorais e, em decorrência, a naturalização de abusos, irregularidades e crimes cometidos por entidades não
legitimadas; a ausência de políticas que estabeleçam limites ao privado ao
mesmo tempo em que defenda a função social da propriedade intelectual; a
prática de uma cultural elitista de direitos autorais em contraposição a
alternativas democráticas, socializantes e de compartilhamento da cultura e do
saber, das quais são exemplos as Licenças Gerais Públicas, os Creative Commons,
entre outras formas de transferência dos bens derivados do direito autoral.
As possibilidades de compartilhamento são cada vez maiores e a pressão das grandes empresas por fechar conteúdos também. Quem ganha essa queda de braço?
A notícia dos últimos dias é o adiamento da votação pela Câmara, pela 6ª vez, do Marco Civil
da Internet (PL 2126/2011). Trata-se do projeto de lei que visa estabelecer direitos e deveres na utilização da rede mundial de computadores. Podem-se imaginar as tensões que decorrem desse processo que visa definir as condições de uso da Internet em relação aos direitos e deveres de usuários, prestadores de serviços e provedores de conexão, bem como a adequação do papel do poder público nesse processo, um verdadeiro campo minado!
O processo de construção do Marco Civil da Internet no Brasil é modelo de vanguarda quanto à forma. Foi construído com ampla participação democrática, de forma aberta, transparente e acessível, utilizando os debates e as propostas apresentadas na consulta pública e outros espaços
promovidos nos últimos três anos, o que justifica a perplexidade dos atores que participaram do processo democrático diante das alterações de último minuto.
Um dos pontos polêmicos está no tema da liberdade de
expressão. Há temores, principalmente a partir das modificações de última hora
feitas ao artigo 15º, quanto à possibilidade de censura prévia e da abertura
para punir conteúdos. Na redação anterior estabelecia-se que seria proibido que
qualquer provedor de Internet retirasse do ar conteúdos de seus clientes sem
mandato judicial, ou seja, somente o judiciário poderia determinar a retirada
de conteúdos da Internet. Já o novo texto abre, como exceção, a possibilidade
de retirada de conteúdos por meio de denuncia de direito autoral, transferindo
a responsabilidade sobre o julgamento a respeito do conteúdo para o provedor da
Internet. Os próprios provedores são contrários a essa mudança trazida pela
nova redação do artigo 15º (conf. posição da Associação dos Provedores de
Internet).
O temor tem conexão com a polêmica Lei Azeredo, proposta que está atualmente na Câmara dos Deputados e que visa estabelecer punições para determinados crimes na web. No plano internacional há iniciativas em sintonia, como o projeto de lei em discussão nos Estados Unidos conhecido como SOPA (Stop Online Piracy Act, ou Lei de Combate à Pirataria Online),
iniciativa apoiada pela Motion Pictures Association of America (MPAA) e pela
Recording Industry Association of America (RIAA), que alegam prejuízos na indústrias cinematográfica e fonográfica.
Outro tema de desgosto está na questão da
neutralidade da rede. De acordo com o princípio da neutralidade, todas as
informações que trafegam na rede devem ser tratadas da mesma forma, navegando a
mesma velocidade. É esse princípio que garante o livre acesso a qualquer tipo
de informação na rede.
O modelo a que se chegou no Marco Civil da Internet
foi o de que, via de regra, prevalece a neutralidade dos conteúdos e que, por
exceção, haveria interferência do poder público em consulta ao Comitê Gestor,
órgão composto por múltiplos representantes, inclusive da sociedade civil. Na
queda de braço com as operadoras de telecomunicações houve modificação de
última hora no artigo 9º, fazendo prever a Anatel como responsável pela
regulação da neutralidade.
Para Marcelo Branco, representante da Associação
SoftwareLivre.org, a Anatel é o setor que mais tem, no mundo inteiro,
interesses em quebrar a neutralidade. Além disso, segundo expressa, há também
uma quebra grave de expectativa com relação ao princípio de participação e de
construção do texto, submetido a consulta pública durante um ano e que agora é
desrespeitado por modificações por lobby de interesses.
Tendo a concordar com Marcelo Branco, não apenas no
conteúdo, como também na forma, pois as consultas públicas são uma ferramenta
das mais fundamentais quanto à participação da sociedade no processo de
construção legislativa e de políticas públicas. O desrespeito ao processo de
consulta pública – nesse caso em temas estruturais como a questão da liberdade
de expressão e o princípio da neutralidade – acarreta necessariamente um
problema de legitimidade ao texto imposto fora das regras do jogo democrático.
Em que medida, as evoluções tecnológicas e de
comportamento na internet, especialmente a partir da explosão das redes
sociais, podem influenciar a definição de novas leis?
São tantas as possibilidades de exemplificar o fenômeno da Internet na participação social e política, mas creio que o melhor e mais atual pode ser o papel das redes nas recentes eleições municipais, consideradas históricas justamente por isso. As redes sociais foram usadas como
estratégia de campanha pela maioria dos candidatos, inclusive para corrigir
vantagens de tempo de televisão e rádio.
Ao mesmo tempo, a possibilidade livre de manifestação de opinião a respeito dos candidatos, propostas, partidos, faz da rede um espaço inigualável de participação livre quando comparado com as mídias tradicionais nas quais, entre tantos problemas, o espectador é passivo e
inativo. Essas são razões suficientes para reafirmar as preocupações manifestadas anteriormente, quanto à censura prévia e ao cuidado com o princípio de neutralidade na rede (até, nesse caso, por preocupações quanto a censura política).
A Internet também favorece processos de participação
fomentados pelo Governo, entre os quais está a ferramenta de consulta pública
via Internet, fazendo parte das chamadas Tecnologias da Informação (TICs) na
administração pública.
Como visto com a LDA e o Marco Civil da Internet,
trata-se de uma tendência de ampliação da participação democrática que
acompanha os melhores e mais avançados princípios da administração pública,
favorecendo a transparência e o controle social. No entanto, esses “convites à
participação” devem vir acompanhados do respeito ao processo participativo de
elaboração de propostas, argumentos e considerações sem o qual o instrumento
passa a se transformar no exato oposto, na demagogia cruel da ilusão
participativa.
Você tem uma tese de doutorado sobre Propriedade
Intelectual e Direitos Humanos? Em que medida o debate sobre Direitos Humanos
entra na questão da propriedade intelectual?
A propriedade intelectual e a propriedade tradicional de bens experimentaram semelhante
trajetória jurídica. No entanto, a primeira, por ser invisível, levou mais
tempo para se projetar como elemento essencial na divisão de direitos e valores
da sociedade moderna. Passou por fases de pouco ou nenhum reconhecimento até se
destacar como fator essencial para o desenvolvimento da economia capitalista
internacional.
A categoria propriedade intelectual envolve múltiplas temáticas associadas e, por consequência, inúmeros efeitos nas necessidades humanas: pode versar sobre direitos autorais, desenhos e processos industriais, marcas, patentes de invenção, denominações de origem, contratos de
transferência de tecnologia, saberes tradicionais, costumes populares, artes
reproduzidas em pintura e escultura, música, enfim, estamos falando da grande
propriedade do século XXI cujas consequências são complexas e necessariamente
afetam os direitos humanos, o direito ao desenvolvimento, o acesso a bens
resguardados por sistemas de exclusividade e monopólios industriais.
No momento da tese doutoral minha preocupação maior
era identificar as normativas internacionais – e os espelhos de legislação
interna – que ocasionaram um sentido único de proteção jurídica de PI e suas
implicações ao desenvolvimento ou não desenvolvimento de economias de Estados e
regiões, seguindo a hipótese de que a dependência tecnológica gera dependência
econômica e esta, por sua vez, gera pobreza e miséria capazes de violar a
plenitude dos direitos humanos.
No campo do direito autoral a reflexão possui
peculiaridades, é necessariamente diferente da que é feita no campo do direito
da patentes e invenções industriais, mas o marco ideológico patrimonial é o
mesmo, tendente a não permitir qualquer objeção de ordem social à lógica
prevalecente da privatização sem limites.
Esse debate está sendo feito hoje dentro da Academia, no Brasil?
Na academia, como retrato da sociedade brasileira, vivemos processos de disputa permanente pelo modelo de sociedade que se deseja construir, entre os quais está também a releitura do recente processo histórico de definição dos marcos de propriedade intelectual e a possibilidade de rever nossos compromissos na área de PI e da cultura como um direito humano.
Assim como em outras áreas do direito, atualmente há
maior percepção de que na década de 90 – período de maior incidência neoliberal
nas políticas públicas do país – houve demasiada e indevida concessão da
dimensão pública e social aos marcos jurídicos de interesse ligados ao comércio
internacional e, especialmente, aos grandes temas como investimentos, serviços
e propriedade intelectual. A sociedade brasileira amadurece ao perceber que o
passado autoritário não foi apenas o período autoritário militar, mas também o
autoritarismo dos mercados em sintonia com governos subservientes.
Os centros de direito são, normalmente, mais
conservadores nas críticas aos marcos legais hegemônicos na área de PI, mas há
iniciativas importantes que estão trabalhando o tema da democratização cultural
como linha prioritária de investigação e de realização de direitos
fundamentais.
Nesse sentido, recentes iniciativas governamentais
de políticas públicas são animadoras, como as formuladas pelo Sistema Nacional
de Cultura e também propostas como a PEC 150 que propõe o Vale Cultura, que
visa fornecer renda aos trabalhadores para o consumo cultural.
Fonte: Carta Maior
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