Programa do Itaú perdeu seu rumo

 

 

 

 

O Programa Rumos Dança tem como meta ser “um diagnóstico da situação da dança contemporânea no cenário cultural do País”, de acordo com o texto de abertura publicado no seu catálogo e assinado pelo próprio Instituto Itaú Cultural, seu promotor. Contudo, a sua edição 2006/2007 funcionou mais como um sintoma do que vem acontecendo com a produção de dança contemporânea no Brasil. Para chegar ao diagnóstico, serão necessárias outras ações e estas, evidentemente, dependerão do entendimento, por parte da instituição, da importância de não deixar de transformar o sintoma em diagnóstico.

 

São vários os componentes desse sintoma, mas um deles tem presença mais ostensiva que os outros. Por apontar para uma questão de fundo, é também o mais preocupante e pode ser resumido no seguinte: parece haver uma incapacidade em distinguir o que seja pesquisa em dança de uma outra situação, bastante diferente e muito mais popular, que é a de ter uma boa idéia e saber realizá-la bem. Pesquisa acontece a partir de objetivos e objetos bem definidos, sobre os quais se tecem hipóteses com instrumentos e metodologias adequadas para a sua investigação. Já as boas idéias, elas se resolvem quando encontram uma forma eficiente de exposição. A pesquisa é da natureza da continuidade, e é somente nessa perspectiva que pode ser avaliada, enquanto que para as boas idéias basta a produção de um bom espetáculo.

 

Há um segundo componente do sintoma, igualmente preocupante, que decorre do primeiro. Quando o Rumos Dança escolhe reunir uma maioria de obras que partilham um identificável padrão clichê de dança contemporânea, ele passa a trabalhar como um agente replicador desse padrão clichê, e um replicador da mais alta eficiência, uma vez que todo o material apresentado foi registrado e será distribuído para centenas de Escolas, Universidades, Centros Culturais, Associações, etc.

 

O princípio do padrão clichê firma-se justamente na gratuidade das suas escolhas, regidas por inúmeras demandas, mas não por uma necessidade nascida dentro da pesquisa. Quando a dança coloca no lugar da pesquisa a obediência ao modelo da moda, vai pasteurizando e/ou estetizando as suas pseudopropostas contemporâneas. A mesmerização de corpos e palcos nus, a trivialização da ausência ou do emprego de certos tipos de música, ou a substituição do passo pelo gesto como item a ser ticado em uma receita identificam somente alguns dos cacoetes hoje proliferantes.

 

O terceiro dos outros componentes do sintoma vem do atual perfil do evento. Infelizmente, ao hipertrofiar a apresentação dos espetáculos, oferecendo dois ou três a cada noite, o Rumos Dança adotou o formato dos festivais voltados para o mercado – uma escolha que induz tanto artistas quanto o público a lidar com a dança através das nefastas práticas de consumo que pautam hoje a vida em sociedade. Ficou evidente a necessidade de o programa ser repensado a partir do seu propósito inicial – hoje abandonado – no qual o desenvolvimento da sua importantíssima Base de Dados precisa voltar a ocupar um espaço mais nobre nesse programa. Para tal, será igualmente indispensável requalificar o papel e as atividades dos pesquisadores de dados.

 

Das 534 inscrições recebidas, uma comissão composta por Adriana Farias (pesquisadora e professora), Alejandro Ahmed (coreógrafo da companhia de dança Cena 11), Eduardo Bonito (produtor e curador do Dança Panorama Rio de Janeiro) e Paulo Paixão (professor da Universidade Federal do Pará) selecionou 25 obras, que foram distribuídas entre os três espaços oferecidos para sua escolha: o mais que inadequado auditório do Itaú Cultural, o Teatro Gazeta e a Sala Crisantempo, onde a visibilidade também estava inteiramente comprometida a partir da terceira fila da platéia lá montada. Ou seja, tomando-se como hipótese a possibilidade de os 25 escolhidos representarem muitos dos não-escolhidos, cabe ponderar que o mesmo sintoma aqui descrito pode estar acometendo centenas de outros membros da comunidade da dança contemporânea brasileira.

 

Como não caberia realizar aqui uma reflexão de cada uma das 25 obras com a necessária propriedade, elas serão comentadas ao longo de tempo, em futuras ocasiões. Todavia, torna-se indispensável ao menos destacar a maturidade da pesquisa de duas duplas, a de Roberto e Gustavo Ramos (Spiro), e a de Helena Bastos e Raul Rachou (Vapor). Não são apenas eles que fazem o que pode nomear, de fato, como pesquisa, mas a consistência do que trouxeram não somente os destaca como, pelo seu exemplo, confirma a premência de o Rumos Dança voltar a fazer valer o seu nome.

 

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Helena Katz

21/03/07

 

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