Na época, o estudo foi saudado por Rudá Andrade, em carta ao ensaísta, pelo fato de “esclarecer certos pontos-chaves da obra-vida do escritor”. Segundo o filho de Oswald, o trabalho constituía-se numa “bela abertura para novos estudos”, assim como revelava o “carinho pelo homem e a objetividade intelectual”.
Na ocasião da morte do crítico literário e sociólogo – nesta sexta-feira (12) – trazemos alguns trechos do ensaio.
Leia a seguir:
Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade
Hoje, sou um pouco mais velho do que ele era quando o conheci, e já me acostumei a ouvir dos moços as mesmas perguntas que eu fazia aos mais velhos. As mesmas não. Os de agora perguntam coisas mais objetivas e mais ligadas ao interesse pela obra, porque hoje é que florescem os verdadeiros chato-boys[1]. Nós ainda não queríamos deslindar o anedotário que o cercava como garoa singular.
“É verdade que é irmão de Mario de Andrade e brigou com ele?” “É verdade que casou dez vezes em várias religiões?” “É verdade que roubou uma moça na Escola Normal da Praça?” “É verdade que prega o amor livre?” “É verdade que baleou os estudantes de Direito, num tiroteio, do alto de uma escada?” “É verdade que andou com a quadrilha do Pulo dos Nove?”
Nada era verdade, embora nalguns casos houvesse uma semente real do boato inchado em volta. Mas esse Oswald lendário e anedótico tem razão de ser: a sua elaboração pelo público manifesta o que o mundo burguês de uma cidade provinciana enxergava de perigoso e negativo para os seus valores artísticos e sociais. Ele escandalizava pelo fato de existir, porque a sua personalidade excepcionalmente poderosa atulhava o meio com a simples presença.
[…]
De um homem assim, pode-se dizer que a existência é tão importante quanto a obra. Pelo menos a nós isto parecia evidente, porque o víamos intervir, vituperar, louvar até as nuvens, xingar até o inferno, aclamar e depois destruir, remexendo sempre com uma paixão em brasa pela literatura. “Admito ofensa pessoal”, dizia, “mas não admito burrice em relação à minha obra”. De fato, só o vi brigar por divergências literárias e, nalguns casos, políticas. É nesta chave que a sua integridade deve ser definida. Quanto ao resto, mandava as normas e os princípios para o devido lugar.
Ele era tão complexo quanto contraditório, que a única maneira de traçar o seu contorno é tentar simplificações mais ou menos arbitrárias. Como explicar, de fato, a coexistência permanente, dentro dele, de um bom e mau escritor? De um passadista e um anunciador do futuro? De um discernimento infalível e áreas da mais completa opacidade? Mas destes choques e outros muitos é que se formava o homem singular, às vezes quase ilhado no seu tempo.
Tomemos, como tentativa, apenas dois traços com generalidade bastante para definir aspectos comuns à sua personalidade humana e literária: devoração e mobilidade.
Devoração é não apenas um pressuposto simbólico da Antropofagia, mas o seu modo pessoal de ser, a sua capacidade surpreendente de absorver o mundo, triturá-lo para recompô-lo. Frequentemente a inteireza da sua visão precisa ser elaborada pela percepção do leitor, pois no seu discurso o que ressalta são os fragmentos da moagem de pessoas, fatos e valores. Daí a sua atitude constante de preensão, traduzida na curiosidade, na insistência em manter contato com os outros, usá-los de todas as maneiras para os transformar em substância de enriquecimento pessoal. A este propósito, lembro um traço característico da sua fisionomia: os olhos arregalados e fixos, a boca aberta, um fácies imobilizado na absorção, que de repente se desfazia na fuzilada de risos, trocadilhos e conceitos. Imaginemos que esta aparência simbolize a abertura sôfrega em relação ao mundo.
[…]
Nisto tudo vejo a confirmação do traço que estou sugerindo: fome de mundo e de gente, de ideias e acontecimentos. Daí a sua devoração não ser destruidora, em sentido definitivo, pois talvez fosse antes uma estratégia para construir, não apenas a sua visão, mas um outro mundo, o das utopias que sonhou com base no matriarcado.
Apesar de muito patriarcal nos gostos e na conduta, o que havia de ruim no mundo lhe parecia vir do patriarcalismo, causador da propriedade, da sociedade de classes, da exploração do homem, da mutilação dos impulsos. A sua atividade política se entroncava neste pressuposto e era uma espécie de técnica devoradora (aí sim, em sentido arrasador) do mundo burguês oriundo da supremacia imemorial do pai. O seu comunismo foi profundamente vivido – comunismo do decênio de 1930, romântico e libérrimo, significando não apenas anticapitalismo e anti-imperialismo, mas aceitação da arte moderna, ataque desabrido às coisas estabelecidas, desafogo dos costumes. Foi o tempo do jornal O Homem do Povo (1931) e da militância intensa com a admirável Patrícia Galvão (Pagu)[2].
[…]
No fundo, o seu timbre era um certo era um certo anarquismo, que permite vislumbrar a liberdade total pela dissolução das amarras. No prefácio de Serafim Ponte Grande afirmou que o seu modo de ser inicial, católico e burguês, fora compensado por este anarquismo espontâneo de boêmio, que depois teria superado pela adesão ao marxismo. Engano. Felizmente nunca o superou, porque ele foi o segredo da sua elasticidade e um dos fatores da sua mobilidade sem fim.
E aqui chegamos a este grande princípio da sua personalidade, vida e obra. Quando é boa, a sua composição é muitas vezes uma busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo. É o que explica a sua escrita fragmentária, tendendo a certas formas de obra aberta, na medida em que usa a elipse, a alusão, o corte, o espaço branco, o choque do absurdo, pressupondo tanto o elemento ausente quanto o presente, tanto o implícito quanto o explícito, obrigando a nossa leitura a uma espécie de cinematismo descontínuo, que se opõe ao fluxo da composição tradicional. Frequentemente a sua escrita é feita de frases que se projetam como antenas móveis, envolvendo, decompondo o objeto até pulverizá-lo e recompor numa visão diferente.
Também na sua visão da sociedade avulta o senso do que é móvel, a miragem de uma transição necessária ao matriarcado redentor, sob a percussão dos movimentos ideológicos que dissolvem as estruturas. E em sua vida procurou sem cessar a renovação em todos os campos, para evitar o pecado maior da esclerose, da parada que lhe parecia negar a própria essência da liberdade e portanto do seu ser. Até o gosto pela viagem, a variação dos lugares, a mudança de casas e alianças, a sucessão dos contactos humanos e de uma certa volubilidade manifestavam esta lei da sucessão vertiginosa e reconstituinte.
Notas:
1-Manuel Bandeira, em nota explicativa, no livro de correspondências entre ele e Mário de Andrade, escreve o que essa expressão significou. Ela aparece em momento próximo à inauguração da revista Clima, para onde convergiram “universitários na faixa dos 20 anos, ligados à USP, entre os quais despontavam Antonio Candido de Mello e Sousa, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Rui Coelho e Gilda Rocha”. E detalha: “Eclética, ideologicamente heterogênea, mas consistente em seus fundamentos intelectuais, a revista, iniciada em maio de 1941, parecia personificar o ideal de introspecção e convivência desejados por MA. Oswald de Andrade mimou essa sisudez, apelidando esses jovens de ‘chato-boys’”. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp: IEB, USP, 2ª. ed., 2001, p. 657. (Nota do Outras Palavras)
2-Neste ano, Oswald encontra-se com o líder comunista Luís Carlos Prestes e funda o jornal, de divulgação da causa operária. É dessa época a sua filiação ao Partido Comunista. Em 1945, abandona o partido, segundo Candido, “decepcionado por se sentir posto de lado, e querer ser mais do que um instrumento no campo intelectual”. (Nota do Outras Palavras).
Fonte: Outras Palavras
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