Em meados de 2013, Vagner Amaro emperrou na tarefa de montar um acervo de literatura contemporânea de autoria negra na biblioteca em que trabalhava: encontrava-se pouca coisa e com dificuldade no circuito comercial de livrarias e editoras. Passados alguns anos, em 2015, descobriu que a autora recém premiada com o prestigiado Jabuti pelo livro de contos Olhos D’Água, Conceição Evaristo, tinha grande parte da sua produção fora das prateleiras e catálogos, quando não esgotada e sem reedições. Os dois eventos, Amaro já sabia, não eram mero acaso, mas o reflexo de um mercado consolidado que torna invisível a produção literária de autores e autoras negros. Assim, pouco tempo depois, ele fundou a Malê, uma pequena editora carioca voltada para publicação de literatura de autoria negra.
Com pouco mais de dois anos e cerca de 30 títulos, a Malê – nome inspirado na revolta dos malês, levante de escravos na cidade de Salvador, que aconteceu em 1835 – alcançou um prestígio que é prova de que o editor estava certo não apenas sobre a invisibilidade de autores negros no mercado, mas também sobre a oportunidade oferecida por essa lacuna. No último dia 1º de maio, o autor moçambicano Dany Wambire participou da Feira Nacional de Livros de Poços de Caldas, e, no final de julho, o congolês Alain Mabanckou participará da Flip 2018 – Festa Literária Internacional de Paraty – ambos editados pela Malê. “Eu parti de um problema que afetava a literatura brasileira, mas hoje ampliamos este foco para autores afrodescendentes e africanos, principalmente os que ainda não foram editados aqui, como é o caso dos dois”, diz Amaro.
“Qualquer ação que vise democratizar a ampliação de leitores, terá que passar pela questão da diversidade e da representatividade na literatura”, comenta Amaro. E a falta de representatividade não é apenas uma sensação, mas uma realidade aferida, inclusive, numericamente. Uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UNB), por exemplo, mostra dados indiscutíveis sobre a publicação de romances nas principais editoras do país. Entre 2004 e 2014, apenas 2,5% dos autores publicados não eram brancos. No mesmo recorte temporal, só 6,9% dos personagens retratados nos romances eram negros, sendo que só 4,5% eram protagonistas da história. E, entre 1990 e 2004, o top cinco de ocupações dos personagens negros era: bandido, empregado doméstico, escravo, profissional do sexo e dona de casa.
A pesquisa coordenada por Dalcastagnè compila dados desde 1965 e o que se enxerga é a continuidade, quando não a piora, do cenário de homogeneidade que se estende também para outros setores da sociedade (veja tabelas abaixo). Ao contrário do cenário feminino, em que o número de mulheres autoras cresceu nos últimos 20 anos – apesar de ainda ser muito mais baixo que o de autores –, o número de escritores negros se manteve praticamente o mesmo. Segundo Dalcastagnè, historicamente há uma série de questões envolvidas nessa disparidade, mas a permanência do cenário mostra uma especificidade do mercado. “Talvez eles não sejam editados porque são sempre encarados como uma literatura de nicho. Por que a literatura de um homem branco, de classe média, é considerada universal e a de uma mulher negra não seria?”, comenta a pesquisadora.
“Ouvi de muitos leitores da Malê que eles apenas passaram a gostar de ler quando entraram em contato com textos da literatura negra. Em um país com índices de leitura tão baixos, fico pensando quantos leitores potenciais não estão sendo perdidos”, diz Amaro. Para ele, embora os elementos de identificação com os textos literários sejam complexos, e grande parte da importância da literatura seja exatamente a possibilidade de se identificar com histórias bem diferentes das nossas, não é difícil entender que para uma pessoa negra ler apenas a ficcionalização da vida de pessoas brancas é algo ruim. “Não é apenas uma questão política, mas estética. A manipulação da forma literária por diferentes grupos sociais pode gerar resultados diferentes. Por isso, também, é tão importante inserir novas vozes em nosso campo literário”, concorda a pesquisadora Dalcastagnè.
“Isso não é um chamado para que os escritores brancos passem a escrever personagens negros, pois é importante que se preserve a liberdade criativa. O que é preciso é que se amplie as possibilidades de acesso para livros de autores negros”, argumenta Amaro. E o acesso, segundo ele, passa por diferentes situações: desde dar espaço editorial para uma autora premiada, como Conceição Evaristo, até a presença em livrarias, escolas ou na mídia tradicional e especializada. A homogeneidade atual do mundo literário chama ainda mais atenção quando colocada em perspectiva. Basta dizer, como lembra Amaro, que o grande autor nacional, cânone da literatura brasileira, é Machado de Assis – que até hoje, vira e mexe, tem a cor da sua pele branqueada em representações. Ao seu lado, na passagem do século XIX para o XX, estão outras figuras, menos ou mais lembradas, como Maria Firmina dos Reis, Cruz e Sousa e Lima Barreto.
“Com raras exceções, o século XX foi de negação da literatura de autoria negra, uma realidade que apenas começou a se modificar com o movimento negro do final dos anos 1970 e a publicação dos Cadernos Negros [publicação anual, lançada em 1978, que reúne contos e poesias de autores afro-brasileiros], que serviram de base para a Malê”, diz Amaro. Agora, o lançamento da editora combina com um momento em que a representatividade está em pauta no meio literário. Dalcastagnè lembra que apesar de sua pesquisa mostrar um cenário sem muitas mudanças, microeditoras como a Malê estão furando o bloqueio das grandes. Outro exemplo disso foi a programação da edição de 2017 da Flip que, pela primeira vez, teve mais escritoras do que escritores, além de uma forte presença de autores negros – algo que reverberou em outros eventos literários do país.
O crescimento e sustentabilidade, contudo, é uma questão permanente para a Malê e outras editoras pequenas – como a paulista Hoo, voltada para literatura com temática LGBT, a mineira Nandyala, de autoras negras, ou ainda, fora de um nicho específico, a carioca Mórula, que tem publicado ficção e não ficção. Segundo Amaro, há uma dificuldade em comum: ser pequeno, mas estar em um mercado voltado para as grandes. “O que venho defendendo é que distribuidores, livrarias e os programas de aquisição de obras do governo considerem as especificidades das pequenas editoras, para que elas possam competir e se manterem no mercado”, diz. Fundamental para o trabalho, ele ressalta, tem sido a divulgação via redes sociais, o contato com projetos de formação de leitores, além de, no caso específico da Malê, uma geração de formado e universitários negros que têm se interessado cada vez mais pelas obras da editora.
“Em um momento de crise e ataque à cultura, o que editoras como a Malê têm feito é um verdadeiro trabalho de resistência”, diz Dalcastagnè. Para Amaro, a editora tem uma função social definida: democratizar a literatura a partir do investimento em autores negros que ainda não têm o alcance de leitores que merecem. “Divulgar uma literatura que apresenta subjetividades de personagens negros e negras é também fazer com que se reflita sobre a subjetividade desses indivíduos que compõem a maioria da população brasileira [53,6% da população, segundo pesquisa do IBGE”, comenta o editor. E existe uma literatura negra? “Considero que a literatura negra estudada já há décadas afirma o que vem sendo negado pelo sistema literário, que é a presença da autoria negra e a humanidade na representação dos personagens negros, mas é claro que nem todo autor negro fará uma literatura associada a estas ideias”.
Fonte: El País
Faça um comentário