O quadro de Frida Kahlo “Meu vestido pendurado ali” não tem despertado o mesmo interesse nem a atenção como outras de suas pinturas. Talvez porque, aparentemente, a artista não esteja lá, no quadro, pelo menos não tão visceralmente presente como em muitas de suas pinturas.
Por Claudio Carvalhaes
Nos anos 90, revistas femininas nos Estados Unidos (“Elle”, “Vogue”) “traduziam” Frida Kahlo (1907-1954) em suas páginas em estilo mexicano, transformando seus vestidos em roupas atraentes nos corpos de belas modelos, posando em casas ensolaradas e supostamente também mexicanas. Queriam transformar a difícil obra dessa mulher em imagem palatável, pronta para ser consumida. Retocavam suas veias, o sangue, as cicatrizes, os pelos de sua face e a morte.
Em vez de sua imagem real, manequins esguias a retratavam com exagerada maquiagem, vestidos provocantes e pernas nuas. Ela era representada nesses novos vestidos e nos cabelos soltos das modelos. Parecia que a única maneira de introduzir Frida Kahlo nos Estados Unidos era fazê-la passar por essa lavagem cultural, como se fosse pintora da moda, bela e aceitável ao gosto dominante. Atualmente, alguns de seus quadros estão cotados em até um US$ 1 milhão.
Entretanto, nem todos gostam do que ela pintava e nem todos a reconheceram pelos olhares de “Elle” ou “Vogue”. Ao comentar com uma amiga sobre Frida, a reação não demorou: “Não é aquela pintora com bigodes, que trata de temas melancólicos? Ela é demasiadamente estropiada!”.
Nessa asserção, o que fica de Frida parece ser somente as marcas fortes de seu rosto e seus símbolos de morte. Talvez por isso, aquilo que parece ser uma enorme crueza e intensa feiúra na obra de Frida é rechaçado ou necessariamente revisado e embelezado, para torná-la aceitável aos padrões da classe média norte-americana. A própria definição que André Breton fez de Frida e de sua arte -“uma fita ao redor de uma bomba”- acaba por fazer quase o mesmo das revistas norte-americanas. Ao enlaçar a bomba com uma fita, a fita distrai a bomba e a bomba acaba por ser um mero elemento para mostrar a fita.
Se em Breton a bomba precisa da fita para traduzir beleza, nas revistas de moda o caminho é mais fundo, tentando redimir Frida de si mesma, de seus tormentos e pensamentos de morte. Uma vez redimida, sua obra torna-se sexy, colorida, bela, e ao final de tudo, mais consumível. Nas revistas, os tons revolucionários, nacionalistas e marxistas presentes em suas pinturas parecem nunca terem existidos.
Vestidos com compromissos
Os vestidos de Frida não eram escolhidos por causa apenas da beleza, mas expressavam compromissos culturais com os povos indígenas, principalmente astecas, com os quais se identificava. Sua arte envolvia e revolvia recursos intelectuais e experiências dos contextos que ela gostaria de verem refletidos em seu país.
No quadro citado (“Meu vestido pendurado ali”), ela usa um vestido tehuana. Janice Helland comenta: “É provável que a imagem dos vestidos das mulheres zapotecas que representam ideais de liberdade e de independência econômica tenham, por isso, chamado a atenção de Kahlo” [1].
Seus vestidos e colares fazem relembrar os vínculos de Frida com seu povo. Ao usar vestidos tehuanos de mulheres zapotecas, além de colares que traziam o imaginário azteca, Frida parece querer lembrar que são essas mulheres, esses povos colocados à margem da universalização cultural (não fora da estrutura, mas nas margens) que estão ali pendurados, colocados entre as fronteiras da assimilação, do extermínio, mas da resistência.
No quadro citado, uma enormidade de referências culturais, políticas, sociais, religiosas e econômicas são postas em relação e tensão, e entre essas referências mundos cheios de história e materialidade são construídos, coabitados, transformados e destruídos. Helland descreve o quadro: “Um vestido, um telefone, um troféu esportivo, a figura de um dólar ao redor da cruz entrando num edifício federal, como símbolo financeiro, e Mae West, no papel da fantasia de Hollywood. Essas fotografias destacam o destino dos desempregados da era da grande Depressão na parte inferior do quadro e mostram o contraste entre a riqueza e a pobreza na sociedade americana” [2].
O vestido tehuano de Frida pendurado num cabide, num varal de fita de laço, entre os Estados Unidos e o México, reflete a vida de povos inteiros, ao mesmo tempo presentes e ausentes, em meio a diálogos surdos e medidas culturais e econômicas excludentes que essas mesmas fronteiras constroem e destroem.
Os vestidos das mulheres zapotecas vão parar nas revistas de moda sem que nunca se saiba da significação que se dá “no chão mesmo da América Latina de uma tradição-tradução de memória libertadora de mulheres” a respeito das “variações e as rupturas com as linguagens de conhecer o corpo no mundo e o nosso, devorá-los como aprendizagem sexuada e cultivar alternativas de produção e reprodução da vida: economia, erótica, ecológica, epistêmica, ética e estética” [3].
As roupas e as fronteiras
A obra de Frida se situa entre fronteiras. Muitas vezes desenvolve uma estrutura dualista, mas sempre desafia os lados, os espaços de dentro e de fora, o que é de lá e o de cá. Mulheres têm seus órgãos internos colocados para fora, o sangue corre tanto por fora quanto por dentro das veias, duas e várias partes de nós mesmos são colocadas lado a lado, como uma coisa só e, ao mesmo tempo, quase distintas. O amor, a traição, a natureza (viva ou morta?), o suicídio, a dor, a morte -tudo acontece em meio à vida sempre pulsante de seus quadros.
Sua arte demonstra clara consciência da presença fulcral da fronteira, especialmente das consequências desse espaço tênue em que se situa a luta do povo mexicano por identidade. No final dos anos 20, o México esforçava-se para criar um sentimento de nacionalismo e de orgulho em seu povo. Os Estados Unidos pareciam já mostrar que a cultura “norte-americana” era dona de uma geografia excludente, invasiva (partes do México foram roubados pelos Estados Unidos) e parâmetro da cultura civilizada, universal e hegemônica [4].
Como tentativa de resistir a esse sistema solapador e mesmo tentar subvertê-lo e desfazer os aportes universais da cultura americana, o México foi buscar em seus elementos culturais pré-hispânicos e indígenas formas de se conscientizar, preservar, amparar e desenvolver uma cultura que fosse verdadeiramente nacional. Estas tentativas, entretanto, acabaram por abusar de elementos indígenas, e os mexicanos acabaram por criar caricaturas de si mesmos [5].
As fronteiras regulam, contêm e excluem. São aparatos de controle, concretos e simbólicos, paradoxais e determinados, misturando espaço, poder, conhecimento, economia e identidade. Têm a ver com espaços limítrofes e imaginários: margens, territórios, articulações geopolíticas, linhas e limiares em constante relação, separando, demarcando e costurando lugares e posições.
São espaços nervosos, cheios de ansiedade [6], e permeáveis ao que ainda não conhecem. Sua proteção está sempre ameaçada pela chegada do inesperado, e suas bordas vulneráveis. Nas palavras de Roxanne L. Doty, “as fronteiras já são ameaçadas desde seu aparecimento. A possibilidade sempre presente de serem atravessadas é inerente à sua instituição, coisa que as torna indecidíveis, indistintas e ameaçadas”[7].
Os vestidos de Frida vestem e despem as partes porosas das fronteiras religiosas, culturais, políticas e sexuais, não só do México e dos Estados Unidos, mas de todo o continente americano. Nada é categórico; tudo se desenvolve no vento de referências e bases culturais escolhidas.
Suas roupas tornam as fronteiras “categóricas” em passagens permeáveis e em possibilidades de práticas transgressoras, produtoras de conexões fronteiriças que tornam as linhas divisórias e invisíveis em visíveis e ideológicas.
Da mesma forma que os vestidos, Frida vestia também os “rebozos”, que eram chales feitos de vários tipos de material (algodão, seda ou lã), bordados com longas franjas e usado por mulheres de todas as classes sociais. Em diferentes fotos, Frida usa vários destes “rebozos”, por vezes de seda, próprio das classes mais altas e também de algodão, como as “revolucionarias soldaderas”8.
Novamente, a roupa con-fundia as noções de revolucionária, de “soldadera”, de classe, de cultura, de colônia e de nação. Da mesma forma ela confunde noções quando em seu quadro “Auto-retrato na fronteira entre México e Estados Unidos”, de 1932, e pintado em Detroit, ela usa um vestido colonial, com colar de estilo coatlicue da deusa da terra azteca, ao mesmo tempo que veste luvas de laço e sem dedos.
Para Rebecca Block e Lunda Hoffman-Jeep, “Kahlo se coloca na encruzilhada, elaborando e concretizando posições pessoais e políticas… Existe uma considerável ironia na maneira satírica que Kahlo faz da manipulação da cultura” [9].
Novamente, há uma enormidade de justaposições entre sua roupa, seus adereços, a bandeira de parada cívica do México, o bico dos seus seios visíveis e os enormes símbolos da cultura moderna presente ao lado dos Estados Unidos, como a Ford, os maquinários, a poluição e a pré-modernidade vivenciada no lado do Mexico, com seus templos e símbolos religiosos pré-colombianos ligados à terra.
Assim, os vestidos e as formas de vestir de Frida se misturam com a vida inteira. Eles anunciam fraquezas e forças, carregam referências culturais, econômicas, sociais, econômicas, sexuais e nacionais. São mais do que a fita na bomba que é o corpo. Permeiam, interagem, e relacionam peles, lugares, povos, toques, visões e cheiros de mundo. Como disseram Block e Hoffman-Jeep, “Kahlo era particularmente consciente da habilidade que as roupas tinham em comunicar informação acerca de gostos, princípios, carácter e sentimentos de uma nação” [10].
Seus vestidos marcam as condições das possibilidades da construção de cada país e do relacionamento entre eles, como a maneira de cada um estabelecer suas estruturas culturais e escolher seus valores simbólicos. Os vestidos apontam para corpos que o vestem ou que estão nus, de roupas que mobilizam a indústria da moda e como esta estabelece noções, que vão desde as medidas ideais do corpo até os critérios de alimentação, de ênfases econômicas e consequentemente de classes sociais.
Assim, os vestidos também indicam a fragilidade do corpo feito forte e desmesuradamente belo, o desequilíbrio, o inóspito, os lugares inabitáveis. O vestido de Frida veste uma realidade ao mesmo tempo oculta, perturbadoramente clara, e demasiada densa e complicada. Os vestidos pedem a atenção do nosso olhar entre as tantas referências. Os quadros de Frida fazem nossos olhos tornarem-se performáticos, ritualizando os contornos entre o imaginário e o real. Como diz Ronald Grimes, “Ritualizamos para tornar real o evento” [11].
Esse mapeamento dos encontros humanos e vivos anuncia, denuncia, acumula e precipita uma situação que é nossa, no mundo, encarnada nas vísceras, veias e peles de nosso próprio corpo. Nossas roupas e nossos vestidos se desgastam, perdem o lugar na moda, se modificam, são re-usados, assim como nossas referências todas. O corpo também se esvai, assim como se escoam a fama e os corpos das modelos. O que fica, ou parece ficar, é o poder econômico “que ergue e desfaz coisas belas”, que faz viscejar e renovar o eternamente novo, re-usável, banalizado, a cada nova temporada do fashion week.
Costurando mitos e religião
A referência religiosa nas obras de Frida vinha de povos abandonados e marcados pela probreza. Em seus quadros e fotos, seus vestidos e colares eram rodeados e mesmo marcados por aspectos religiosos presentes na cultura mexicana. Em seu quadro “Auto-retrato na fronteira entre México e Estados Unidos”, seu vestido está ao lado de elementos como o sol, lua, templo, caveira, sangue, o ciclo vida-morte azteca, e outros elementos da terra que servem para compor referências culturais, religiosas e teológicas do México.
Além das expressões religiosos pré-colombianas, a obra de Frida faz fortes referências ao catolicismo popular, como as coleções de milagres, os “retablos”, que Frida guardava. A Virgem Maria e os santos, Jesus Cristo, seu sofrimento e todo o imaginário católico são símbolos recorrentes na sua obra.
Andrea Kettenmann diz que Frida “via os quadros religiosos que utilizava como expressões de crenças essencialmente populares, que não dependiam, pelo seu significado, da Igreja Católica. Assim, podia utilizar livremente o imaginário cristão para seus próprios fins e apresentar-se a ela própria no papel de mártir” [12].
Notas
1 – Janice Helland, Aztec Imagery in Frida Kalho’s Paintings, in “Woman’s Art Journal”, vol. 19. nº 2. (fall , 1990 – winter, 1991), p. 10.
2 – Ibid., p. 9.
3 – Nancy Cardoso Pereira, Para Comer com os Olhos e Contemplar com a Boca – Uma leitura anti-escatológica de “Os Frutos da Terra” de Frida Kahlo, texto não publicado.
4 – Até hoje os americanos dos Estados Unidos cantam um de seus hinos prediletos chamado “America” em jogos esportivos e datas civicas, definindo todo o continente como país, esquecendo que há, ou talvez exista, outras partes dessa América que não são somente àquela da bandeira de estrelas num céu azul e faixas vermelhas e brancas.
5 – Veja Rebecca Block and Lynda Hoffman-Jeep, Fashioning National Identity – Frida Kahlo in Gringolândia, in “Woman’s Art Journal”, (autumn, 1998 – winter, 1999), p. 8.
6 – Glória Anzaldúa, Borderlands/La frontera – The New Mestiza (San Francisco: Aunt Lute Books, 1987), p. 21. Anzaldúa desenvolve a ansiedade e o nervosismo da fronteira em uma perspective feminina.
7 – Roxanne Lynn Doty, Challenging Boundaries-Global Flows, Territorial Identities, eds. Michael J. Shjapiro and Hayward Alker (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996), em “Book Reviews: The American Political Science Review”, vol. 91, nº 2, junho de 1997, pp. 510-511.
8 – Rebecca Block and Lynda Hoffman-Jeep, Fashioning National Identity, Frida Kahlo in Gringolândia, op. cit., p. 10.
9 – Ibid.
10 – Ibid., p. 11.
11 – Ronald Grimes, Rite Out of Place (Oxford University Press, 2006), p. 74.
12 – Andréa Kettenmann, Frida Kahlo (1907-1954) – Dor e Paixão. Koln Taschen, 2006, p. 56. In Faustino Teixeira, “Moisés: o Núcleo da Criação”, texto não publicado.
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