A estranha aventura vivida por Pedrinho que conseguiu pegar um saci com a peneira e conservá-lo preso numa garrafa. O diabinho de uma perna só proporciona ao garoto ensejo de conhecer a vida noturna e fantástica das matas – com visões da Mula Sem Cabeça, da Caapora, do Lobisomem, do Boitatá, e das principais criações mitológicas do nosso folclore (1932)
Tio Barnabé era um negro de mais de oitenta anos que morava no rancho coberto de sapé lá junto da ponte. Pedrinho não disse nada a ninguém e foi vê-lo. Encontrou-o sentado, com o pé direito num toco de pau, à porta de sua casinha, aquecendo o sol.
– Tio Barnabé, eu vivo querendo saber duma coisa e ninguém me conta direito. Sobre o saci. Será mesmo que existe saci?
O negro deu uma risada gostosa e, depois de encher de fumo picado o velho pito, começou a falar:
– Pois, seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que exéste. Gente da cidade não acredita – mas exéste. A primeira vez que vi saci eu tinha assim a sua idade. Isso foi no tempo da escravidão, na fazenda do Passo Fundo, do defunto major Teotônio, pai desse coronel Teodorico, compadre de sua avó dona Benta. Foi lá que vi o primeiro saci. Depois disso, quantos e quantos!…
– Conte, então, direitinho, o que é saci. Bem tia Nastácia me disse que o senhor sabia – que o senhor sabe tudo…
– Como não hei de saber tudo, menino, se já tenho mais de oitenta anos? Quem muito véve muito sabe…
– Então conte. Que é, afinal de contas, o tal saci?
E o negro contou tudo direitinho.
– O saci – começou ele – é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de Sansão estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci fica por toda a vida senhor de um pequeno escravo.
– Mas que reinações ele faz? – indagou o menino.
– Quantas pode – respondeu o negro. – Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos. Bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta prá riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça.
– E a gente consegue ver o saci?
– Como não? Eu, por exemplo, ja vi muitos. Ainda no mês passado andou por aqui um saci mexendo comigo – por sinal lhe dei uma lição de mestre…
– Como foi? Conte…
Tio Barnabé contou.
– Tinha anoitecido e eu estava sozinho em casa, rezando minhas rezas. Rezei, e depois me deu vontade de comer pipoca. Fui ali no fumeiro e escolhi uma espiga de milho bem seca. Debulhei o milho numa caçarola, pus a caçarola no fogo e vim para este canto pitar fumo pro pito. Nisto ouvi no terreiro um barulhinho que não me engana. “Vai ver que é saci!” – pensei comigo. E era mesmo. Dali a pouco um saci preto que nem carvão, de carapuça vermelha e pitinho na boca, apareceu na janela. Eu imediatamente me encolhi no meu canto e fingi que estava dormindo. Ele espiou de um lado e de outro e por fim pulou pra dentro. Veio vindo, chegou pertinho de mim, escutou os meus roncos e convenceu-se de que eu estava mesmo dormindo. Então começou a reinar na casa. Remexeu tudo, que nem mulher velha, sempre farejando o ar com o seu narizinho muito aceso. Nisto o milho começou a chiar na caçarola e ele dirigiu-se para o fogão. Ficou de cócoras no cabo da caçarola, fazendo micagens. Estava “rezando” o milho, como se diz. E adeus pipoca! Cada grão que o saci reza não rebenta mais, vira piruá.
– Dali saiu para bulir numa ninhada de ovos que a minha carijó calçuda estava chocando num balaio velho, naquele canto. A pobre galinha quase que morreu de susto. Fez cró, cró, cró… e voou do ninho feito uma louca, mais arrepiada que um ouriço-cacheiro. Resultado: o saci rezou os ovos e todos goraram.
– Em seguida pôs-se a procurar o meu pito de barro. Achou o pito naquela mesa, pôs uma brasinha dentro e paque, paque, paque… tirou justamente sete fumaçadas. O saci gosta muito do número sete.
– Eu disse cá comigo: “Deixe estar, coisa-ruinzinho, que eu ainda apronto uma boa para você. Você há de voltar outro dia e eu te curo”.
– E assim aconteceu. Depois de muito virar e mexer, o sacizinho foi embora e eu fiquei armando o meu plano para assim que ele voltasse.
– E voltou? – inquiriu Pedrinho.
– Como não? Na sexta-feira seguinte apareceu aqui outra vez às mesmas horas. Espiou da janela, ouviu os meus roncos fingidos, pulou para dentro. Remexeu em tudo, como da primeira vez, e depois foi atrás do pito que eu tinha guardado no mesmo lugar. Pôs o pito na boca e foi ao fogão buscar uma brasinha, que trouxe dançando nas mãos.
– É verdade que ele tem as mãos furadas?
– É, sim. Tem as mãos furadinhas bem no centro da palma; quando carrega brasa, vem brincando com ela, fazendo ela passar de uma para o outra mão pelo furo. Trouxe a brasa, pôs a brasa no pito e sentou-se de pernas cruzadas para fumar com todo o seu sossego.
– Como? – exclamou Pedrinho arregalando os olhos. – Como cruzou as pernas, se saci tem uma perna só?
– Ah, menino, mecê não imagina como saci é arteiro… Tem uma perna só, sim, mas quando quer cruza as pernas como se tivesse duas! São coisas que só ele entende e ninguém pode explicar. Cruzou as pernas e começou a tirar umas baforadas, uma atrás da outra, muito satisfeito da vida. Mas de repente, puf! aquele estouro e aquela fumaceira!… O saci deu tamanho pinote que foi parar lá longe, e saiu ventando pela janela fora.
Pedrinho fez cara de quem não entende.
– Mas que puf foi esse? – perguntou. – Não estou entendendo…
É que eu tinha socado pólvora no fundo do pito – exclamou Tio Barnabé, dando uma risada gostosa. – A pólvora explodiu justamente quando ele estava tirando a fumaçada número sete, e o saci, com a cara toda sapecada, raspou-se para nunca mais voltar.
– Que pena! – exclamou Pedrinho. – Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse saci…
– Mas não há um só saci no mundo, menino. Esse lá se foi e nunca mais aparece por estas bandas, mas quantos outros não andam por aí? Ainda na semana passada apareceu um no pasto do seu Quincas Teixeira. E chupou o sangue daquela égua baia que tem uma estrela na testa.
– Como é que ele chupa o sangue dos animais?
– Muito bem. Faz um estribo na crina, isto é, dá uma laçada na crina do animal de modo que possa enfiar o pé e manter-se em posição de ferrar os dentes numa das veias do pescoço e chupar o sangue, como fazem os morcegos. O pobre animal assusta-se e sai pelos campos na disparada, correndo até não poder mais. O único meio de evitar isso é botar bentinho no pescoço dos animais.
– Bentinho é bom?
– É um porrete. Dando com cruz ou bentinho pela frente, saci fede enxofre e foge com botas-de-sete-léguas.
***
Tão impressionado ficou Pedrinho com esta conversa que dali por diante só pensava em saci, e até começou a enxergar saci por toda parte. Dona Benta caçoou, dizendo:
– Cuidado! Já vi contar a história de um nenino que de tanto pensar em saci acabou virando saci…
Pedrinho não fez caso da história, e um dia, enchendo-se de coragem, resolveu pegar um. Foi de novo em procura do tio Barnabé.
– Estou resolvido a pegar um saci – disse ele – e quero que o senhor me ensine o melhor meio.
Tio Barnabé riu-se daquela valentia.
– Gosto de ver um menino assim. Bem mostra que é neto do defunto sinhô velho, um homem que não tinha medo nem de mula-sem-cabeça. Há muitos jeitos de pegar saci, mas o melhor é o de peneira. Arranja-se uma peneira de cruzeta…
– Peneira de cruzeta? – interrompeu o menino – Que é isso?
– Nunca reparou que certas peneiras têm duas taquaras mais largas que se cruzam bem no meio e servem para reforço? Olhe aqui – e tio Barnabé mostrou ao menino uma das tais peneiras que estava ali num canto. – Pois bem, arranja-se uma peneira destas e fica-se esperando um dia de vento bem forte, em que haja rodamoinho de poeira e folhas secas. Chegada essa ocasião, vai-se com todo o cuidado para o rodamoinho e zás! – joga-se a peneira em cima. Em todos os rodamoinhos há saci dentro, porque fazer rodamoinhos é justamente a principal ocupação dos sacis neste mundo.
– E depois?
– Depois, se a peneira foi bem atirada e o saci ficou preso, é só dar um jeito de botar ele dentro de uma garrafa e arrolhar muito bem. Não esquecer de riscar uma cruzinha na rolha, porque o que prende o saci na garrafa não é a rolha e sim a cruzinha riscada nela. É preciso ainda tomar a carapucinha dele e a esconder bem escondida. Saci sem carapuça é como cachimbo sem fumo. Eu já tive um saci na garrafa, que me prestava muitos bons serviços. Mas veio aqui um dia aquela mulatinha sapeca que mora na casa do compadre Bastião e tanto lidou com a garrafa que a quebrou. Bateu logo um cheirinho de enxofre. O perneta pulou em cima da sua carapuça, que estava ali naquele prego, e “até logo, tio Barnabé!”
Depois de tudo ouvir com a maior atenção, Pedrinho voltou para casa decidido a pegar um saci, custasse o que custasse. Contou o seu projeto a Narizinho e longamente discutiu com ela sobre o que faria no caso de escravizar um daqueles terríveis capetinhas. Depois de arranjar uma boa peneira de cruzeta, ficou à espera do dia de São Bartolomeu, que é o mais ventoso do ano.
Custou a chegar esse dia, tal era a sua impaciência, mas afinal chegou, e desde muito cedo, Pedrinho foi postar-se no terreiro, de peneira em punho, à espera de rodamoinhos. Não esperou muito tempo. Um forte rodamoinho formou-se no pasto e veio caminhando para o terreiro.
– É hora! – disse Narizinho. – Aquele que vem vindo está com muito jeito de ter saci dentro.
Pedrinho foi se aproximando pé ante pé e de repente, zás! – jogou a peneira em cima.
– Peguei! – gritou no auge da emoção, debruçando-se com todo o peso do corpo sobre a peneira emborcada – Peguei o saci!…
A menina correu a ajudá-lo.
– Peguei o saci! – repetiu o menino vitoriosamente. – Corra, Narizinho, e traga-me aquela garrafa escura que deixei na varanda. Depressa!
A menina foi num pé e voltou noutro.
– Enfie a garrafa dentro da peneira – ordenou Pedrinho – enquanto eu cerco os lados. Assim! Isso!…
A menina fez como ele mandava e com muito jeito a garrafa foi introduzida dentro da peneira.
– Agora tire do meu bolso a rolha que tem uma cruz riscada em cima – continuou Pedrinho. – Essa mesma. Dê cá.
Pela informação do tio Barnabé, logo que a gente põe a garrafa dentro da peneira o saci por si mesmo entra dentro dela, porque, como todos os filhos das trevas, tem a tendência de procurar sempre o lado mais escuro. De modo que Pedrinho o mais que tinha a fazer era arrolhar a garrafa e erguer a peneira. Assim fez, e foi com o ar de vitória de quem houvesse conquistado um império que levantou no ar a garrafa para examiná-la contra a luz.
Mas a garrafa estava tão vazia como antes. Nem sombra do saci dentro…
A menina deu-lhe uma vaia e Pedrinho, muito desapontado, foi contar o caso ao tio Barnabé.
– É assim mesmo – explicou o negro velho. – Saci na garrafa é invisível. A gente só sabe que ele está lá dentro quando a gente cai na modorra. Num dia bem quente, quando os olhos da gente começam a piscar de sono, o saci pega a tomar forma, até que fica perfeitamente visível. É desse momento em diante que a gente faz dele o que quer. Guarde a garrafa bem fechada, que garanto que o saci está dentro dela.
Pedrinho voltou para casa orgulhosíssimo com a sua façanha.
– O saci está aqui dentro, sim – disse ele a Narizinho. – Mas está invisível, como me explicou tio Barnabé. Para a gente ver o capetinha é preciso cair na modorra – e repetiu as palavras que o negro lhe dissera.
Quem não gostou da brincadeira foi a pobre tia Nastácia. Como tinha um medo horrível de tudo quanto era mistério, nunca mais chegou nem na porta do quarto de Pedrinho.
– Deus me livre de entrar num quarto onde há garrafa de saci dentro! Credo! Nem sei como dona Benta consente semelhante coisa em sua casa. Não parece ato de cristão…
(LOBATO, Monteiro. O Saci
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