Livro recém-lançado aponta ligações entre o modernismo francês e brasileiro e revela dois compositores esquecidos. O Círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil mal acaba de sair e já é fundamental na bibliografia de história da música brasileira. Trata-se de uma avaliação consistente, feita por Manoel Corrêa do Lago, do papel na música brasileira, de Debussy e do modernismo musical francês. O tema é relevante pelo fato de existir uma sobrevalorização do pós-romantismo alemão e da escola de Schoenberg, talvez pela influência dessa escola nas vanguardas pós-Segunda Guerra. Na primeira metade do século 20, o modernismo parisiense foi o aglutinador de diversas escolas de composição. E a música de Debussy foi o ponto de partida para compositores que repensaram as maneiras de organizar a forma musical.
Corrêa do Lago estudou composição na França na década de 1970. Sua tese de doutorado venceu o prêmio da Capes para artes em 2006 e sua publicação foi financiada pelo BNDES, dentro da linha de apoio à memória e ao patrimônio cultural.
O prêmio e o apoio do banco estatal são justificados tanto pela qualidade do trabalho como pela originalidade da documentação consultada e do universo que revela. A edição em bom papel e com reproduções de imagens não seria comercialmente viável.
Corrêa do Lago demonstra o quanto o meio musical do Rio de Janeiro da década de 1910 estava interado das novidades musicais francesas. A ligação cultural do Brasil com a França vinha de meados do século 19. No Rio de Janeiro da década de 1910 as obras modernas francesas, incluindo Debussy, Ravel e Koechlin, eram bem conhecidas, tocadas em concertos e em saraus privados em casas como a do compositor Henrique Oswald e a do professor Godofredo Leão Veloso.
O livro resgata o papel do professor, nome ausente dos livros de história, mas de importância capital. Foi Leão Veloso que cedeu a Villa-Lobos o manual de composição de Vincent D’Indy – o qual se tornou fundamental no aprendizado autodidata do maior compositor brasileiro. Também foi responsável por formar grandes músicos, especialmente sua filha, a pianista e compositora Ninha Leão Veloso. Ou, Nininha Veloso Guerra, nome assumido após o casamento com o compositor franco-brasileiro Oswaldo Guerra.
O chamado “círculo Veloso-Guerra” se refere à residência do casal, palco de intensa vida musical no âmbito privado dos saraus. Lá circularam os próceres do modernismo francês em suas estadas no Brasil: o pianista Artur Rubinstein, o regente Pierre Ansermet e o compositor Darius Milhaud.
Descobertas
Corrêa do Lago descobriu na França os descendentes dos Veloso Guerra e, com eles, um arquivo de correspondências, partituras, fotografias e programas de concerto. O ineditismo do material e o desconhecimento que o Brasil tinha deste mundo musical tornam a pesquisa mais reveladora.
O estudo demonstra, por exemplo, que Villa-Lobos tomou contato com a música de Stravinsky já por volta de 1917, quando pôde ouvir Pássaro de Fogo ou Sagração da Primavera em reduções para piano executadas na casa dos Veloso Guerra por Artur Rubinstein. Demonstra também que Milhaud foi praticamente o único compositor moderno a produzir no período da Guerra, e que isso foi possível graças à tranquilidade que teve para trabalhar nos anos em que morou no Rio de Janeiro (1917-1918), somado ao fato de que podia experimentar suas novas composições e discuti-las na casa dos Veloso-Guerra.
Além das descobertas sobre a importância do círculo Veloso Guerra na formação de Villa-Lobos e no trabalho de Darius Milhaud, o livro de Corrêa do Lago estabelece um primeiro conhecimento sobre estes personagens esquecidos: o professor Godofredo Leão Veloso, sua filha Nininha Veloso Guerra e o marido dela, Oswaldo Guerra. Com base na documentação do acervo da família em Paris o estudo estabelece catálogos das composições de Ninha e Oswaldo, apresentações de suas obras em concertos e publicação de suas partituras em editoras brasileiras ou francesas.
Na documentação estudada, fica evidente a importância do casal de músicos e há pistas sobre o porquê de seu “sumiço” na história da música brasileira: Nininha morreu prematuramente em Paris; Oswaldo Guerra jamais voltou ao Brasil.Tornou-se musicólogo respeitado e exerceu cargos públicos na área da cultura francesa. As obras de ambos caíram no esquecimento à medida em que perderam o contato com os movimentos musicais surgidos no Brasil a partir de 1922, especialmente a corrente modernista de Mário de Andrade.
Um aspecto que Corrêa do Lago não aborda, mas pode-se inferir a partir de outros estudos, diz respeito ao estilo de Villa-Lobos, incapaz de conceder glórias a qualquer outro que não a si mesmo. Nem sob tortura ele admitiria o que a pesquisa de Corrêa do Lago sugere: que Nininha foi importante intérprete das obras dele, e, mais do que isso, uma influência como compositora e como pianista e anfitriã capaz de oferecer estímulo intelectual a um compositor em formação.
Os Veloso-Guerra acabaram injustamente esquecidos. O trabalho de Corrêa do Lago traz o casal de volta à cena e ajuda a compor uma nova visão do modernismo musical brasileiro, ajudando a superar um problema capital da nossa historiografia – o de só conhecermos o modernismo pelo testemunho dos próprios protagonistas do movimento.
O autor é Doutor em História Social pela USP, e professor da Faculdade de Artes do Paraná.
Serviço:
O Círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil, de Manoel Aranha Corrêa do Lago. Reler, 268 págs., R$ 68.
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