O queijo e a história

 

 

 

 

 

 

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) busca reconhecer a cultura tradicional do Brasil como patrimônio cultural imaterial, deslocando o olhar da interpretação do patrimônio para além das edificações de pedra e cal. Nesse processo, o modo de fazer do queijo artesanal mineiro se inscreve para obter o registro de patrimônio cultural do Brasil. Coordenei o processo interpretativo, a ser julgado em breve pelo Conselho Nacional de Cultura, e, tenho certeza, teremos uma tradição memorável e identificadora reconhecida oficialmente como fazer, rico em permanência que identifica e dá significados à mineiridade e à cultura nacional.

 

No processo interpretativo, mais aprendi que apliquei conhecimentos. A reflexão teórica a partir da banalidade cotidiana amplia nossa capacidade de compreender saberes e fazeres de homens e de mulheres simples. Ela dá sentido ao exercício comum; ela esclarece a economia simples e sustentável, ainda viva e instigante em nosso tempo. Pelas três regiões trabalhadas in loco, que refletem um fazer rural, trivial (e sofisticado) em todo território do interior de Minas, foi possível perceber (e interpretar) a dinâmica diversa de uma atividade rural que é expressão da construção cultural eivada de riquezas e de atribuições de significados vários.

 

O queijo artesanal de Minas Gerais, feito de forma tradicional, mas distinta no Serro, na Serra da Canastra, no Alto Paranaíba – regiões trabalhadas por nós – em Araxá, no Sul de Minas ou no Norte do estado, expressa valores sócioeconômicos e culturais e dá sentido a vidas de numerosas famílias e de municípios inteiros. É saber que sustenta economias e é fazer que representa modos de viver, de sentir e de expressar o mundo. É processo cultural complexo, historicamente edificado em tempos e territórios distintos, em paisagens humanas e naturais identificáveis em sua dinâmica transformação. Por tudo isso, é modo de fazer digno de representar a identidade de uma cultura por inteiro: denota heranças e evidencia transformações.

 

Ao homem contemporâneo, a convivência com vestígios do passado costuma gerar conforto identificador, segurança por saber-se parte de uma construção antiga que lhe sustenta e justifica costumes e ações. Quando a construção passada é permanência e é tradição, vivas e arraigadas na dinâmica das construções culturais, esse conforto se transforma em orgulho identificador e supera o temor pelo esquecimento que geraria sentimento de perda. Modos de fazer tradicionais se enquadram nessa categoria de permanências que sinalizam ao homem moderno sentimentos de orgulho pelos saberes construídos em seu passado. Aos mineiros contemporâneos, os modos de fazer artesanais de queijo a partir do leite cru, tradição persistente e em dinâmica transformação em sua cultura, identificam seus modos costumeiros e dá conforto a suas vidas. Além disso, embasa a sobrevivência de numerosas famílias e fundamenta a economia de municípios e de regiões.

 

A idéia de “perda” e o temor que ela incutiu na mentalidade ocidental dos tempos modernos, fatores tão importantes na tradição das buscas de reconhecimento do patrimônio histórico no nosso tempo, são decorrentes da concepção de que a história é um processo de destruição de “coisas”, de objetos e de bens materiais. A dinâmica das culturas, no entanto, nos leva a pensar a história como processo de construção de saberes, de fazeres, de estruturas materiais e simbólicas, de sentidos e de representações da realidade. Assim, entendendo como patrimônio cultural a herança histórica e a sua dinâmica transformação (da mesma forma histórica) é que podemos pensar na interpretação e no reconhecimento de modos de fazer tradicionais de um produto sui generis importante economicamente para um determinado território cultural.

 

Interpretar os saberes e as técnicas de fatura de um produto artesanal é, sobretudo, enquadrá-lo em um repertório de expressões da cultura que referenciam a constituição identificadora de grupos sociais. É tomá-lo como prática enraizada nas relações humanas que se forjaram em um processo histórico específico, identificável e interpretável e que continua em movimento dinâmico de construção cultural, mesmo que marcado por uma reprodução tradicional em seu lento transcurso de mudanças e de adaptações.

 

O queijo artesanal de Minas Gerais e as características formas de sua confecção denotam uma tradição dinâmica radicada em sua origem nas técnicas típicas da Serra da Estrela, em Portugal, e que em nossa história formataram modos próprios de fazer. Essa origem técnica que chega à América portuguesa com o colonizador é raiz de uma nova construção intimamente ligada, a cada tempo, à sobrevivência de colonos ibéricos, de indivíduos luso-brasileiros e, por fim, de mineiros. Sua confecção se estabelece, com variações por todo o território da Minas Gerais dos tempos antigos, e hoje tem características específicas reconhecidas para regiões geográficas distintas do estado de Minas Gerais, com condições físico-naturais, econômicas e socioculturais particulares.

 

Serro, Canastra, Alto Paranaíba (Serra do Salitre ou do Cerrado), Araxá e serras do Sul de Minas, entre outras, são microrregiões onde se estabelecem e se edificam em dinâmica tradição os modos de fazer de um queijo reconhecido mundialmente como “artesanal tipo Minas”. Ele se elabora a partir de leite cru, radicado em uma tradição familiar e em uma economia local que o associa à atividade fundamental da fazenda mineira típica. É o queijo – de -minas, que, a despeito de ter gerado formas industriais de fatura em todo o estado, não perdeu a força de sua tradição artesanal e não deixou de ser importante, cultural e economicamente, em seu modo de fazer original.

 

SENTIDOS DO TEMPO

Como historiador, sou sensível à variedade de tempos do território cultural do queijo artesanal em Minas Gerais. A historicidade do tempo extrapola a visão narrativa da tradição histórica e tem na cronologia apenas um componente básico, mas não único, da percepção da vivência histórica. Ao percorrer e tentar interpretar esse território do queijo artesanal mineiro, dimensiono, em nossa contemporaneidade, um “tempo colonial”, em que seres colonizadores idealizaram e manipularam uma dinâmica real mestiça e complexa. Apreendo um “tempo rural”, lento e permanente, por um lado ensimesmado, e por outro integrado à dinâmica do mundo contemporâneo. Percebo um “tempo de família”, em que valores de integração e de partilhamento compromissado entre membros evidenciam-se na disciplina do fazer cotidiano. Vislumbro um “tempo da fazenda”, autárquico, que busca a sustentabilidade arraigada na tradição da independência do mundo urbano. Um “tempo econômico” é claro, atento à perspectiva de integração do fazer tradicional de um produto demandado pelo mercado de consumo que valoriza o alimento de boa qualidade. Sou sensível a um “tempo da sociabilidade e da solidariedade” que se mostra entre os produtores vizinhos que trocam informações sobre o queijo e os segredos de sua fatura. Um “tempo natural”, cíclico e estacional, atento às intempéries de sol e de chuva, de pastagens verdes ou secas e de integração do homem rural à natureza, explicitado nas mudanças mínimas e importantes no comportamento do queijeiro. Interpreto um “tempo identificador” que reconhece os significados do fazer queijo e vê nesse fazer o sentido da atividade profissional e da economia da fazenda.

 

Outros tempos podem ser percebidos, como o “tempo do turismo”, que visualiza oportunidades econômicas com o reconhecimento do outro que visita e valoriza uma cultura; o “tempo dos caminhos”, atento ao escoamento da produção nas rústicas veredas do interior mineiro; o “tempo do alimento”, que percebe a importância do queijo na mesa e na produção quitandeira de Minas. À riqueza temporal correspondem a dinamicidade e a complexidade de saberes e de fazeres permanentes e identificadores do que são a fazenda mineira, o produtor rural mineiro, o alimento tradicional das Minas.

 

O registro do modo de fazer e da tradição do queijo artesanal de Minas Gerais, nos parâmetros do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do Iphan/Ministério da Cultura, se apresenta como um instrumento inovador de política cultural. Como ação política, objetiva mais que a simples guarda memorialística de um bem ou de uma herança. Posto que busca reconhecer uma tradição dinâmica, visa, para além do reconhecimento em si, ao desenvolvimento local e regional e à valorização e diversificação do potencial do patrimônio reconhecido. Referência cultural quer significar informação sobre uma cultura, modelo e padrão de qualidade de uma identidade, apoio a uma marca distintiva de um grande grupo social.

 

O registro formalizado do patrimônio considerado imaterial não fica restrito a um bem em si, mas abre o espectro de percepção do modo de fazer do queijo artesanal de Minas na busca de interpretar significados e representações simbólicas que envolvem a prática cotidiana de um grupo social. Nesse sentido, aprofunda o olhar e verticaliza a reflexão sobre um cotidiano específico, valorizando sua construção histórica e reinventando seus significados.

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