O palhaço triste: Reflexões sobre a obra de Adoniran Barbosa

“A sua poesia e a sua música [de Adoniran] são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular”, afirmou Antônio Cândido

 

por André Luiz Barbosa da Silva

 

Adoniran Barbosa

Em plena uma quarta-feira de cinzas chuvosa fui ao cinema assistir um documentário sobre samba, na verdade, mais especificadamente sobre João Rubinato. Aquele que Antônio Cândido descreveu como “lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade”. Quem é paulista talvez já tenha sacado quando da ‘voz rouca’. O homem que fez o trem das onze e saudosa maloca, dentre outras canções que retrataram aquela São Paulo que ainda existe nas ruínas do “violento progresso”.

 

São quase 11 (onze) horas de uma quarta-feira de cinzas e não me contenho em fazer esse convite para que todos assistam o documentário do diretor Pedro Soffer Serrano “Adoniran, meu nome é João Rubinato”.

 

Um filme que não só retrata a vida da estrela principal, Adoniran Barbosa, mas que também, de modo inescapável, uma vez que falar desse grande sambista é falar da terra da garoa (chove em São Paulo nesse exato momento), faz pensarmos nesse solo que habitamos, dessa selva de Pedra que Rubinato viu crescer e que Adoniran narrou em seus versos certeiros, mais certeiros que a ‘frechada desse seu olhar’.

Adoniran barbosa o palhaço triste

Dentre as histórias, muitas podiam ser apenas estórias, duvidosas, com várias versões, não se sabe ao certo, apenas que, como dizia Adoniran “É tudo verdade”. No entanto, nada disso importa, pois como disse Fernando Pessoa em seu poema “autopsicografia”: “[o] poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Adoniran era um poeta!

 

 

Um poeta das mazelas sociais, da tristeza que o povo sofria e continua a sofrer. Da ordem de despejo, ao sumiço dos amigos e da mulher amada, à morte de Iracema até a pouca comida na mesa. No entanto, não nos esqueçamos que estamos falando de Adoniran Barbosa, que além de poeta tinha também um pouco de palhaço, ainda que triste, ainda que chore, um palhaço que com toda sua acidez arrancava risos daqueles personagens que ele próprio narrava, um riso doído, sarcástico, mas ainda riso. E talvez esta seja a importância do artista popular, transformar o sofrimento em arte, em poesia, não promovendo a aceitação, mas sim a denúncia, a indigestão dos poderosos. Tão é verdade que em seu enterro, como apresenta logo de início o documentário, nenhum figurão político, prefeito, nada; apenas os amigos, as pessoas comuns dos botequins daqueles bairros que frequentou.

 

João Rubinato, descendente de italianos, Adoniran Barbosa, brasileiro paulistano fez o inimaginável. Com sua “anti-voz”, seu timbre rouco e seu mau-humor engraçado, contou as histórias da cidade em crescimento, ou como ele mesmo disse, em constante mudança, narrou o mundo que se apagou sob seus olhos, contou a dor fingida que deveras sentia.

 

Assista o trailler do filme:

 

Adoniran Barbosa, retratado com um vasto arquivo de imagens, um prosador, contador de histórias e de piadas, artista completo, engraçado, dramático, músico e ator, alegre e triste, resultado de uma miscigenação cultural, que o grande crítico literário Antônio Cândido expressou do seguinte modo: “A sua poesia e a sua música [de Adoniran] são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular”.

 

Cômico e trágico, o documentário tem essa faceta, alcança com os arquivos disponíveis os dois níveis que se misturam nas composições de Adoniran, como Luiz Zanin sinalizou: “Um mergulho nos meandros dessa cidade triste”. Um mergulho nos registros do palhaço triste, que com sua simplicidade de narrativa alcançava a todos e realizava uma crítica implacável a modernização, ao dito progresso desmensurado que criava prédios e mais prédios, enquanto enxotava gente, gente essa que tinha e ainda tem fome, sem teto e sem abrigo. Adoniran com suas tristezas fazia samba e com suas músicas oferecia a essa gente um abrigo na história

 

Enfim, lanço o convite para assistirem ao excelente documentário.

 

Fonte: Portal Disparada

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