O MASSACRE CULTURA SEM PRECEDENDES 2

O MASSACRE CULTURAL SEM PRECEDENTES

O velho jabá revela-se cada vez mais perverso, impedindo que a melhor arte chegue ao público.

MAURO DIAS

A música brasileira entrou, no século vinte e um, num impressionante processo de decadência. Errado. A música brasileira continua, no ano de 2005, boa como sempre. Há grandes compositores, cantores, instrumentistas. Tentam atuar. Não têm onde. Tentam viver da música – tolice. São dentistas, fiscais do INNSS, professores, motoristas de táxi, balconistas, colunistas de jornais – essas atividades garantem a sobrevivência. Tomam tempo – a criação artística, que é a atividade principal (estamos falando de artistas), acaba sendo deixada para as horas possíveis.

A música brasileira que toca nos rádios, na televisão, nos grandes palcos, nos estádios, nas festas de São João, no carnaval, nas convenções de criadores de gado é que está em decadência. É só ela que aparece. A outra música, a boa, existe, mas não aparece. A culpa é dos radialistas, dos que montam trilhas sonoras de televisão, dos executivos de gravadoras, dos produtores de discos e espetáculos, dos marqueteiros da indústria de entretenimento. Essa gente criminosa está transformando, conscientemente, coração em tripa. É responsável pela seleção do que você ouve e deixa de ouvir. Essa gente está assassinando o que há de mais rico em nossa produção cultural. E ganhando muito, muito, muito dinheiro.

É essa a idéia. Ganhar dinheiro, e dane-se o resto. Um disco, na indústria, não é chamado de disco, mas de “produto”. O produto precisa vender. Para que o produto venda, precisa ser exibido. Até agora, apenas regra de mercado, nada demais. No entanto, para que seja exibido, paga-se ao exibidor – ao programador de rádio, ao apresentador de programa de auditório televisivo. Como são muitos, os produtos, sobe o cachê do exibidor. É uma prática antiga, tem até nome: jabá. Paga-se o jabá para que a música toque, sempre foi assim. Mas o mecanismo perverso foi ficando mais perverso. Quem pode pagar mais, consegue maior número de execuções. Isso é reproduzido no País inteiro.Quem pode pagar mais, escolhe o que você vai ouvir. E você fica achando que é só aquilo que se produz de música. Porque é só aquilo que está ao seu alcance. Quem não paga, não toca. Não existe.

Há alguns dias, uma igreja evangélica comprou a rádio FM Musical, de São Paulo, capital. Era uma rádio que só tocava música brasileira. Praticava o jabá, como todas, mas como a audiência era menor, o preço era menor. O que permitia o acesso às ondas sonoras a alguns artistas menos conhecidos – os tais que são dentistas ou fiscais do INSS. Às vezes até sem pagamento de jabá programava a execução deles. Misturava um pouco de “música de mercado” e de música de verdade. Talvez por isso não tenha resistido. Há práticas alternativas de jabá. Um famoso letrista fez um disco independente, comemorativo de tantos anos de idade e de carreira. Armou pequeno esquema, alternativo, de distribuição do disco. Fiou-se, talvez, no nome famoso. Ouviu dos intermediários dos programadores de várias rádios: “Dá um aparelho de fax para ele que ele toca seu disco”.

O retorno do investimento dos que pagam mesmo o jabá, o dinheiro alto, sai da venda de discos e shows, da venda de bonecos, camisetas, roupinhas para crianças, sorvetes, biscoitos, bicicletas, roupinhas para crianças, sandálias, lancheirinhas, pegadores de cabelo, batons, perfumes, roupas de cama e banho, coleções de lápis de cor ou o que se possa imaginar que possa ter estampada a marca do “ídolo”. O “ídolo”, por seu turno, cumpre a maratona de estar presente em todos os programas televisivos de auditório, garantindo audiência que vende os anúncios que sustentam os programas e fazendo a roda rodar, o preço subir. A presença do “ídolo” pode mesmo ser indireta: o apresentador Raul Gil, da TV Record, prepara novos consumidores de bunda-music promovendo concurso de imitação do rebolado da Carla Perez, ex-É O Tchan. As candidatas têm 5, 6, 7 anos de idade.

Não há questão moral a ser considerada. O negócio é dinheiro. O bom compositor, cantor, instrumentista vai ter de se submeter a determinados imperativos ditados pelos que pagam a execução) ou fica de fora. Quem não entrar no esquema não aparece. Quem quer entrar no sistema precisa ter muito dinheiro – precisa pagar mais ainda, porque as “vagas” são limitadas. Se entra um, sai outro. Por isso existem as vogas, as ondas – um ano de música sertaneja (sic*), um ano de axé music, um ano de falsas loiras bundudas, um ano de pagodeiros de butique, um ano de forró deformado (é o que se anuncia: preparem-se**). E o preço vai subindo, a cada nova etapa da substituição.

Só quem entra no esquema, claro, é a grande indústria, que tem o dinheiro – e que inventou o esquema, afinal. No início da década (de 90), o compositor Ivan Lins, com seu parceiro Vítor Martins, fundaram a gravadora Velas, para dar voz a uma quantidade imensa de músicos que eles conheciam, mas que estavam fora do mercado. Nomes como os de Edu Lobo, Fátima Guedes, Almir Sater, Pena Branca & Xavantinho, Guinga. Aliás, o primeiro disco da gravadora foi o primeiro disco de Guinga. A Velas tinha uma proposta musical alternativa ao padrão imposto pela grande indústria. Montou estrutura, divulgação e distribuição nacionais. O vendedor da Velas ia ao lojista oferecer o produto. Ouvia: “Quero, mas não vou pagar agora, pago se vender”. Três meses depois, voltava o vendedor, para oferecer novo produto e cobrar o outro – que havia sido vendido. Ouvia: “Quero o novo, mas não pago o antigo, porque tenho que pagar à multinacional Tal, ou ela não me entrega a dupla sertaneja (sic) Qual & Pau”.

Acontece que a dupla sertaneja (sic) Qual & Pau (pense na que quiser: Leonardos, Chitãozinhos, ou substitua dupla sertaneja (sic) por grupo de pagode ou por banda de axé) tem música na trilha da novela, paga para tocar em todos os programas de auditório e em todas as rádios – como o lojista pode ficar sem a dupla? Então, o lojista paga a gravadora que tem sob contrato a dupla sertaneja (sic) e não paga nunca a Velas, que tem o Edu Lobo (que infelizmente não tem música em novela nem toca em programa de auditório, muito menos no rádio). Perda por perda, o vendedor da Velas deixa o novo disco, sem receber pelo antigo – e assim a coisa seguiu. Em algum tempo, a Velas faliu. Está, no momento, porque os sócios são loucos idealistas, tentando voltar ao mercado.

Ou seja, estamos falando de economia, de lobbys, de pressões, não de música. Disco é negócio, todos sabemos. Precisa pagar-se, dar lucro. A questão é que os executivos do mundo do disco concluíram que o povo é burro e só vai consumir música burra. Então, o executivo da fábrica X inventa um grupo de pagode, paga para que ele apareça muito, etc.. O da fábrica Y diz “Este filão dá certo, eu vou nele”, e inventa um grupo de pagode que imita aquele primeiro. É só o que eles fazem. Clonam-se uns aos outros. Se o Chico Buarque fosse bater à porta de uma gravadora, hoje (Chico sabe disso, já disse que sabe disso), ouviria que sua música é “difícil” e não se enquadra nos “padrões da companhia”. O mesmo com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Tom Jobim, Noel Rosa, Zeca Pagodinho, Cartola, Nelson Cavaquinho, Wagner Tiso: todos “difíceis”, fora do padrão.

Claro: é preciso contratar o pagodeiro barato porque ele é orientável. Faça isso, faça aquilo, cante assim, vista-se assado, vá ao programa tal, diga tal coisa, mexa as cadeiras desse modo – e, sobretudo, não faça música. Ninguém trataria assim o Chico Buarque – e já que ele não pode ser tratado assim, como coisa, como objeto, como ponta-de-lança de uma campanha de vendas, então afaste-se o Chico Buarque. Ele é “difícil”.

Enquanto isso, o ouvinte vai acostumando o ouvido com as barbaridades criadas nos laboratórios de Marketing das companhias de disco – padres cantores, traseiros cantores, sadomasoquistas cantores, falsas louras cantoras, negões vitaminados cantores. E perde a capacidade de comparar – comparar o quê? O padre cantor com o traseiro cantor? Não há diferença. O ouvinte fica sem possibilidade de julgar (Na verdade, ele pensa que está escolhendo o grupo pagodeiro tal, quando, de fato, só sobrou para ele o grupo pagodeiro tal). E os criadores… bem, os criadores, os artistas verdadeiros, que existem, mas quase ninguém sabe, vão resistindo, o quanto podem. Um dia desistem – os novos Chicos e Caetanos, as novas Elis Reginas e Nanas Caymmis, os novos Jobins e Fátimas Guedes um dia desistirão. Precisam comer, vestir-se, sustentar filhos. A ganância dos executivos está promovendo um massacre da cultura brasileira que talvez não tenha similar na história da humanidade. Estão matando de fome o que temos de mais rico – nossa música. Matando de fome a inteligência e a sensibilidade. A faxina ética do Kosovo perde.

 

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