Era uma dessas tardes frias de um dia preguiçoso em Curitiba. O telefone toca. Era Hermeto Pascoal. Conversa vai, conversa vem, o conterrâneo diz que estava com muita saudade de casa. É bom explicar que para nós nordestinos saudade de casa é uma coisa muito profunda, dessas que dói até na alma, pois vai muito além de lembrar dos amigos e familiares. É uma coisa que mexe e remexe com a gente e chega a doer na alma fazendo lembrar o povo, as feiras, os cantadores, a bagunça gostosa onde ninguém se perde, os cheiros e as cores que tão bem nos faz aos sentidos. É um bicho que mexe tanto que se a gente não se cuidar fica zuruó.
Eu também andara meio jururu pelo mesmo motivo, então o convidei para jantar lá em casa no sábado, quando eu cozinharia uma comida bem gostosa lá das nossas bandas e a gente aproveitaria para botar o papo em dia proseando no nosso sotaque que tão bem faz aos ouvidos quando se está no exílio.
Para a janta também vieram os amigos, jornalista e compositor Cláudio Ribeiro e seu filho Rafinha. Lá pelas oito da noite chega o Mestre acompanhado da nossa querida Aline Morena e uma garrafa de bom vinho pra espantar o frio.
Meio dedo de prosa e uma taça; outro dedo de prosa e outra taça… Eu continuei na cachaça e cerveja que já estava emborcando desde muito antes deles chegarem. Nos vinhos ficaram os convidados e mais dona Fátima, que sempre os tinha em estoque como arma de combate ao frio curitibano.
Servimos o jantar e na mesa sentaram-se uma pá de gente que já estava de orelha quente de tanto tomar remédio pra frio. Hermeto estava vermelho, e a prosa caiu no espetáculo que ele e Aline apresentariam em São Paulo na semana seguinte. Era o primeiro espetáculo da dupla Chimarrão e Rapadura, que, inclusive, gravou um lindo disco.
Terminando o jantar o amigo resolve apresentar um pouco do que seria o espetáculo. Mas como, se não tinha instrumentos? Não tinha??? Bem isso mesmo, não tinha, pois Hermeto começou a andar pela casa e pegar tudo que é coisa de onde pudesse tirar um som. Como ele tira som até da própria barba, foi mole. Num instante montou uma bateria de instrumentos improvisados com panelas, garrafas afinadas com água, colheres, pratos, xícaras, taças… E apresentaram o espetáculo.
Não vi o original, mas acredito que esse tenha sido bem melhor pela força da improvisação.
Lá pela madrugada a gente continuava naquela de meio dedo de prosa, uma taça, mais um dedo de prosa, outra taça… E eu na cerveja e cachaça… De repente a conversa enveredou para coisas de infância e o mestre lembrou que foi goleiro – vai ver foi ruim de bola que nem eu. Nós, os perna de pau, essa gente sem ginga e sem graça para driblar, somos sempre empurrados pro gol, e não adianta querer outra função -. Mas ele resolveu demonstrar como foi bom de bola, imagina…
Hermeto pode não parecer, mas é um cabra organizado. Num instante, assim como fez com a bateria, improvisou um campo e um gol para a sua demonstração atlética na minha sala. Me deu um apito e mandou que comandasse o jogo. Por falta de uma bola disse que meu chapéu servia, e botou Cláudio Ribeiro para chutar. Chuta, Claúdio, gritava antes do apito, que ficou sem função. Cláudio metia o pé e o chapéu voava, e o mestre se esburrachava no sofá, tapete…
Enquanto minha vizinha, que a tudo ouvia lá de sua janela, se matava de rir.
E quem disse que gol de chapéu não vele?
Ceara do Calamengau
- O autodidata Hermeto Pascoal é um dos maiores nomes da música brasileira. Tocando todos os instrumentos e objetos que produzam sons, o compositor demonstrou sua criatividade e versatilidade em festivais como o Montreux na Suíça e o Live Under the Sky, no Japão. Recebeu o título de doutor honoris causa do New England Conservatory, de Boston e da Universidade Federal da Paraíba.
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