Ainda bem que a escolha do representante brasileiro ao prêmio de “melhor filme estrangeiro” no Oscar não é do governo brasileiro – mas, sim, da Academia Brasileira de Cinema. Desse modo, teremos uma expressão real do Brasil com A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz. Houve uma disputa justa com o outro concorrente nordestino, o filme Bacurau, do cineasta Kleber Mendonça Filho, que recebeu um voto a menos que o escolhido.
Por Celso Marconi*
Cena do longa <i>A Vida Invisível de Eurídice Gusmão</i>, que conta a história das irmãs Eurídice (Carol Duarte, à esq.) e Guida (Julia Stockler) Cena do longa A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, que conta a história das irmãs Eurídice (Carol Duarte, à esq.) e Guida (Julia Stockler)
O cinema tem sido a arte mais presente nas lutas sociais, o que sempre foi constatado desde os tempos do início do século passado, tanto com pronunciamentos de Lênin, o maior líder soviético, quanto do filósofo alemão Walter Benjamin. Por isso o cinema tem sido tanto prestigiado por governos democratas quanto detratado, como acontece nos dias atuais no Brasil.
O fato destes dois filmes brasileiros, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão e Bacurau, terem sido premiados neste 2019 no Festival de Cinema de Cannes, com premiações muito expressivas, é certamente fundamental como elemento de luta contra um governo que busca quebrar os elementos de justiça social, além de restabelecer uma sociedade de castas e diferenças econômicas, mesmo fugindo ao que de verdade se institui no mundo com a globalização.
Ainda não vi o filme de Karim Aïnouz, mas pelas informações divulgadas podemos ter certeza de que se trata de uma obra que segue os caminhos do cinema brasileiro, os caminhos mais ligados ao melhor do nosso cinema, mesmo do chamado Cinema Novo. Lembramos que Aïnouz já dirigiu um filme com o pernambucano Marcelo Gomes e fez outro, O Céu de Suely, que tem como atriz principal a pernambucana Hermila Guedes. Ambos excelentes.
Mas não é o fato de ser da província onde vivemos que deve causar o nosso apoio ao seu cinema, e sim a dimensão social e o seu contexto cinematográfico. Apesar da ditadura militar imposta por mais de 20 anos ao povo brasileiro, e a presença do atual governo reacionário, vemos que o cinema brasileiro consegue superar esses dilemas e continuar se lançando com produtos bons e bem atuais no mercado mundial como são A Vida Invisível e Bacurau.
Seria também excelente se nosso representante Bacurau tivesse sido o escolhido. A ligação de Kleber com o atual cinema mundial é muito grande, e de certa forma é correta a observação de que seu estilo narrativo, presente em Bacurau, tem aproximações com o que nos mostra Assim Era Hollywood, de Quentin Tarantino, e também com o sul-coreano Bong Joan-ho, de Parasite, que ganhou a Palma de Ouro no mesmo Festival de Cannes deste ano. Não só a linguagem, mas também o que dizem enquanto batalha social aproxima esses três filmes, aparentemente tão longínquos um do outro.
Enfim, a verdade é que o cinema continua a ser uma arte que se aproxima muito da sociedade, mesmo que para isso tenha quase sempre de serem buscados caminhos e linguagens menos densos. Seja em salas coletivas ou através de sites e aplicativos, a arte cinematográfica perdeu a sua aura, como disse Benjamin, mas continua com uma força capaz de atuar contra as piores ou a favor da melhor sociedade. Esse cinema justo é o que continua a me interessar.
* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte
Faça um comentário