Artigo de Adalberto Paranhos, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia, no qual discute a transformação do samba em símbolo nacional a partir de análise da produção musical das décadas de 20 a 40 do séc. XX.
“O samba, a prontidão e outras bossas,
São nossas coisas, são coisas nossas!”
(Noel Rosa)
Num distante junho de 1980, o jornal inglês The Guardian deu a conhecer o resultado de uma pesquisa de opinião pública realizada pelo Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Essex. Tendo como tema-alvo as particularidades que notabilizariam internacionalmente os países da América Latina, as respostas oferecidas pelos pesquisados continham, à primeira vista, no mínimo uma surpresa. Solicitados a indicar três coisas que poderiam ser associadas ao Brasil, eles vasculharam a memória e, com uma freqüência bastante significativa, fizeram com que ressurgisse como símbolo nacional ninguém menos que Carmen Miranda. Como se sabe, a “brazilian bombshell”, como foi chamada nos Estados Unidos, correu mundo, a bordo dos filmes de Hollywood, especialmente nos anos 40, na condição de “embaixadora do samba”. Passados mais de 30 anos, a lembrança dela não se apagara, figurando em nono lugar nas referências do público britânico.
Não por mera coincidência, Rio de Janeiro, samba e carnaval despontaram em quarto, sétimo e oitavo lugares, respectivamente. Alguém questionará a existência de uma estreitíssima relação entre esses três elementos? Somados à fama desfrutada por Carmen Miranda, todos esses fatores remetem, numa palavra, ao processo de invenção social do Brasil como “terra do samba”, imagem que perdura até os dias de hoje, atravessando os tempos apesar de todos os contratempos no terreno da música popular brasileira.
Denominador comum da propalada identidade cultural brasileira no segmento da música, o samba urbano teve que enfrentar um longo e acidentado percurso até deixar de ser um artefato cultural marginal e receber as honras da sua consagração como símbolo nacional. Essa história, cujo ponto de partida pode ser recuado até a virada dos séculos XIX e XX, foi toda ela permeada por idas e vindas, marchas e contramarchas, descrevendo, dialeticamente, uma trajetória que desconhece qualquer traçado uniforme ou linear.
Os caminhos trilhados pelo samba – mais especificamente pelo “samba carioca” – estão conectados ao contexto mais geral do desenvolvimento industrial capitalista. Embora me dispense de abordar, aqui, em detalhes as transformações que estavam em andamento, aponto, de passagem, algumas mudanças fundamentais que levaram o samba – mesmo sem perder contato com suas raízes negras – a incorporar outras atitudes e outros tons. Enquanto música popular industrializada, sua expansão girou, e nem poderia ser diferente, na órbita do crescimento da indústria de entretenimento ou, como queira, da indústria cultural. Para tanto jogaram um papel decisivo a própria urbanização e a diversificação social experimentada pelo Brasil nas primeiras décadas deste século.
Interligada a essas transformações, a música popular, convertida em produto comercial de consumo massivo, revelará a sua face de mercadoria. Pelo menos quatro fatores básicos, a meu ver, convergirão no sentido de favorecer esse processo que atingirá em cheio o samba: a) originariamente, bem cultural socializado, isto é, de produção e fruição coletivas, com propósitos lúdicos e/ou religiosos, o samba alcança também o estágio de produção e apropriação individualizadas com fins comerciais; b) ancorada nos processos elétricos de gravação, a indústria fonográfica, com suas bases sediadas no Rio de Janeiro, avança tecnologicamente em grande escala e conquista progressivamente consumidores de setores médios e de altas rendas; c) o autoproclamado “rádio educativo” cede passagem, num curto lapso de tempo, ao rádio comercial, que adquire o status de principal plataforma de lançamento da música popular, deixando em segundo plano os picadeiros dos circos e os palcos do teatro de revista; d) a produção e a divulgação do samba, num primeiro momento praticamente restritas às classes populares e a uma população predominantemente negra ou mulata, passam a ser igualmente assumidas por compositores e intérpretes brancos de classe média, com mais fácil acesso ao mundo do rádio e do disco.
Não constitui novidade alguma falar sobre a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais, inclusive no caso do samba. Uma extensa bibliografia já se ocupou do assunto e não pretendo repisar, a todo momento, fatos e argumentos ao alcance de todos. O que me proponho fazer nesta comunicação consiste simplesmente em destacar apenas mais um ângulo de visão do mesmo tema, por entender que, em geral, ele não foi suficientemente explorado. Por outras palavras, sem pretensões a um trabalho de caráter musicológico, me disponho a tomar como ponto de referência um aspecto particular: o discurso musical de compositores e intérpretes da música popular brasileira industrializada entre o final dos anos 20 e 1945, período que cobre desde o surgimento do “samba carioca” até sua consolidação como expressão musical de “brasilidade”.
Buscarei, por conseqüência, privilegiar os registros sonoros – a produção fonográfica – como corpo documental. Tomando como ponto de referência a audição de gravações da época, trata-se de evidenciar como, no campo de forças que se delineia na área da produção musical, o samba vai sendo inventado como elemento básico da singularidade cultural brasileira por obra dos próprios sambistas.
Obviamente não se deve ignorar a presença em cena de outros sujeitos sociais engajados nesse movimento de fabricação/invenção dessa tradição. No entanto, irei me concentrar no papel desempenhado pelos produtores/divulgadores do samba como protagonistas de uma história cujo enredo não foi tão somente ditado pela ação das elites e/ou do Estado.
À medida que o Estado entra em campo para empreender uma operação simultânea de institucionalização e/ou ressignificação do samba – notadamente a partir do “Estado Novo” –, ele atuará seletivamente na perspectiva de aproximar o samba dos seus projetos político-ideológicos e de apartá-lo daquilo que era tido e havido como dissonante frente ao ideário do Governo Vargas. Esbarrando em limitações de espaço, não poderei, neste trabalho, deter-me na análise da ação estatal. Quero, desde já, entretanto, deixar registrado que este texto está em sintonia com as críticas que, não é de hoje, se vêm formulando às tendências historiográficas que erigem o Estado como “o grande sujeito” ou o sujeito demiúrgico que faz a história, relegando os demais atores à condição de meros coadjuvantes, quando não de massa carente de voz própria.
Gostaria de enfatizar que a ação estatal – que não é única nem uniforme – aparece em meio a tensões permanentes que marcaram esse processo de legitimação do samba. Tensões presentes seja na trincheira da produção musical brasileira, seja no interior das classes dominantes e elites intelectuais, seja entre integrantes do próprio aparelho de Estado. Tensões, aliás, que se estenderão inclusive às relações entre a música popular e o “Estado Novo”, que alimentou um dia a ilusão da criação do coro da unanimidade nacional.
I. Salve o prazer: o samba como produto nacional
Nos últimos anos da década de 20, um terremoto de efeito prolongado abalou, de alto a baixo, a música popular brasileira. Seu epicentro foi o bairro de Estácio de Sá, encravado entre o Morro de São Carlos e o Mangue, nas proximidades do centro do Rio de Janeiro. Reduto de gente pobre, com grande contingente de pretos e mulatos, era um prato cheio para as associações que normalmente se estabelecem entre “classes pobres” e “classes perigosa omo lembra Tinhorão, “em seus botequins reuniam-se os representantes da massa flutuante da população, que, figurando como excedente de mão-de-obra num quadro econômico-social acanhado, dedicava-se a biscates, ao jogo e à exploração de mulheres da região do Mangue” Daí viverem cercados de especial atenção por parte da polícia. Berço do novo samba urbano, o Estácio não terá, todavia, exclusividade no seu desenvolvimento. Quase simultaneamente, o “samba carioca”, nascido na “cidade”, irá galgar as encostas dos morros e se alastrar pela periferia afora, a ponto de, com o tempo, ser identificado como “samba de morro”.
Até impor-se como tal e, mais ainda, como ícone nacional, uma batalha, ora estridente, ora surda, teve que ser travada. Estava-se diante daquilo que Roger Chartier caracteriza como “lutas de representações” Tornava-se necessário remover resistências até no próprio campo de produção do samba, das gravadoras e dos hábitos musicais dos maestros.
Para alguns, o novo samba urbano em gestação representaria, na verdade, uma deturpação do samba. Sinhô, Donga e outros mais cerravam fileiras contra a modalidade de samba à la Estácio & cia. Figuras proeminentes da primeira geração de “fundadores” do samba urbano baiano-carioca, eles não se conformavam com o estilo que ganhava mais e mais adeptos. Em vez da sua feição amaxixada, emergia um samba que, sem deixar de ser batucado, adquiria uma característica de música mais “marchada”, como decorrência da aceleração rítmica, considerada mais apropriada para os desfiles de carnaval.
Para quem fora educado na tradição do samba amaxixado – a chula raiada ou samba raiado ou, tanto faz, o samba de partido-alto –, os “modernistas” estavam indo longe demais. Em tempos de expansão da indústria fonográfica e da mercadoria disco, outras mudanças se processavam, contribuindo para maior adequação da música gravada às novas realidades. Com o samba do Estácio ocorria, por exemplo, a valorização da(s) segunda(s) parte(s) da música e letra das composições. Em lugar da improvisão costumeira das rodas de samba de partido-alto –apoiado numa célula-mãe, o estribilho, com base no qual corriam soltos os versos improvisados – tinham-se agora seqüências preestabelecidas, com unidade temática e possibilidade de se encaixar tudo no tempo médio das gravações de 78 rpm, algo ao redor de três minutos.
Por algum tempo nem as gravadoras nem os maestros conseguiram apreender muito bem o significado dessa ebulição na área do samba. Para provar isso basta um exercício comparativo que ponha frente a frente quatro gravações de sambas típicos da safra do Estácio. De um lado, Novo Amor (de Ismael Silva), com Mário Reis e acompanhamento da Orquestra Pan-American, regida pelo russo Simon Bountman, de 1929, e Se Você Jurar (de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves), com Mário Reis e Orquestra Copacabana, de 1930. De outro lado, Adeus (de Ismael Silva, Noel Rosa e Francisco Alves), com Jonjoca e Castro Barbosa, acompanhados pelo Grupo da Guarda Velha, de 1932, e Agora É Cinza (de Bide e Marçal), com Mário Reis e Diabos do Céu, de 1933. No primeiro caso, a combinação rítmico-sonora é marcada por uma orquestração amaxixada, que pouco tinha a ver com a concepção que inspirara os compositores do Estácio. Essa constatação nos adverte quanto aos nexos existentes entre percepção e experiência, ou ainda quanto à historicidade da percepção. Não sendo a partitura um fato em si, dotado de sentido unívoco, o próprio olhar e/ou a própria leitura é interpretação. Por isso, nessa linha de raciocínio, Gombrich ressalta o peso dos “hábitos conceituais” ou de uma schemata, a partir dos quais “pedir um olhar (ou um ouvir, acrescento eu) inocente é pedir o impossível”.
Rompendo com os músicos que ficavam reféns de uma lógica tradicional, Pixinguinha, regente e orquestrador, líder do Grupo da Guarda Velha e dos Diabos do Céu, ajustava seus passos e seus compassos à situação musical emergente. Não é à toa que acabou por ser enaltecido como o inventor da linguagem orquestral brasileira. Ele que dera um salto que o projetou à frente de si mesmo, como se percebe ao ouvi-lo, anos antes (1929), conduzindo, à moda antiga, a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, no registro do samba de sua autoria, Gavião Calçudo, interpretado por Patrício Teixeira.
Debaixo daquilo que agora parecia ser cinza do passado, ainda ardia fogo em plenos anos 30. Caninha, que devia seu apelido à condição de ex-vendedor de roletes de cana, um dos pioneiros do samba, também tinha suas razões para manifestar inconformismo. O autor do famoso samba carnavalesco Esta Nega Qué Me Dá, de grande sucesso em 1921, se aliava a Visconde de Bicoíba (pseudônimo de Horácio Dantas) para protestar em É Batucada, pela voz de Moreira da Silva: “samba de morro/ não é samba/ é batucada/(…) cá na cidade/ a história é diferente/ só tira samba/ malandro que tem patente”. Ao insistir em apartar morro e cidade, samba e batucada, essa composição – vencedora, em 1933, do primeiro concurso oficial de músicas carnavalescas do Rio de Janeiro – tomava rumo oposto à evolução dos acontecimentos.
Vinculados nas suas origens a práticas lúdicas e religiosas de escravos e seus descendentes, o batuque e, mais explicitamente, a batucada já estavam intimamente associados ao samba e à malandragem. Como cantava de novo Moreira da Silva em Confissão de Malandro (de Gilberto Martins), também de 1933:
O samba, confissão de um malandro/ Que neste mundo vive sempre a sonhar/ É o eterno companheiro da orgia/ Das batucadas e das noites de luar/ (…) Samba de morro com batuque de pandeiro/ Tu és a alma deste Rio de Janeiro/ Quem te conhece desta vida tudo esquece/ És o consolo do malandro que padece.
Quando se pesquisam os registros fonográficos, o que se constata é que o samba – originalmente ligado à idéia de festa regada a música – começa ser designado como gênero específico a partir da primeira metade da década de 10. Após conhecer um incremento significativo nos anos 20, tanto sob a rubrica de “samba” como de “samba carnavalesco”, se torna hegemônico na década de 30, na área da produção musical brasileira. Quanto à denominação de batuque ou batucada, ela aparecerá com alguma freqüência ao longo de todo o período pesquisado. Seja como for, aparadas as arestas, um sentido de equivalência irmanava agora samba e batucada, como no clássico Alegria (de Assis Valente e Durval Maia), com Orlando Silva, gravação na qual Pixinguinha, com seus Diabos do Céu, faz com que os instrumentos de sopro se integrem admiravelmente à cozinha rítmica:
Alegria/ Pra cantar a batucada/ As morenas vão sambar/ Quem canta tem alegria/ Minha gente/ Era triste, amargurada/ Inventou a batucada/ Pra deixar de padecer/ Salve o prazer!/ Salve o prazer!
Sim, trazidos para o mesmo campo semântico, feitos sinônimos, samba e batucada se darão as mãos em inúmeras composições. É o que se vê em Noel Rosa, por exemplo, em Quando o Samba Acabou, Quem Dá Mais e principalmente em Feitio de Oração (“batuque é privilégio/ ninguém aprende samba no colégio”), na qual o acompanhamento da Orquestra Copacabana se mostra à altura dessa obra-prima, com particular destaque para a marcação da bateria. É o que acontece igualmente em Ao Voltar do Samba (de Sinval Silva) ou na modelar Em Cima da Hora (de Russo do Pandeiro e Walfrido Silva), que, flagrando instantâneos comuns naqueles tempos, conjuga mais uma vez samba, batucada, lua e orgia. E, se alguém julgar necessário, o argumento mais categórico pode ser buscado não numa letra de música, mas num discurso nu de palavras: no criativo arranjo do maestro Fon-Fon (Otaviano Romero Monteiro), elaborado na década seguinte (1941), para o “samba-exaltação” Isto Aqui O Que É (de Ari Barroso), cantado com o peito estufado por Moraes Neto. Para além das modulações melódico-harmônicas da orquestra – uma marca registrada de Pixinguinha nestes trópicos –, o que se ouve na seção de pancadaria é samba/ batucada da pesada.
Na corrida do samba para afirmar-se como produto nacional, era preciso saltar outros obstáculos dispostos pelo caminho. Ao enfocar aqui a área da produção musical, chamo a atenção para a necessidade do samba incorporar outros grupos e classes sociais, promovendo um deslocamento relativo de suas fronteiras raciais e sociais. Esse avanço em direção a outros territórios encontra a sua figuração simbólica mais acabada nas relações Estácio-Vila Isabel e na parceria Ismael Silva-Noel Rosa.
Estácio de Sá, centro populsor do “samba carioca”, do “samba de carnaval” ou do “samba de morro”, era, como já vimos, bairro de gente simples. Nele as práticas musicais das classes populares contavam com o talento de pessoas que ganhariam projeção na história da música popular brasileira, como Ismael Silva, Bide (Alcebíades Barcelos) e Armando Marçal. Esbanjando engenho e arte, eles confeccionavam freqüentemente seus próprios instrumentos de percussão, uma forma de tentar contornar crônicos problemas financeiros (consta, por sinal, que Bide foi o inventor do surdo de marcação utilizado nas escolas de samba, feito de couro de cabrito ou de gato que por vezes se comia aqui ou ali…). Ao compor, em 1936, música e letra da belíssima O X do Problema, Noel Rosa simplesmente se rendia aos encantos do samba do Estácio, que admirava de há muito. E exprimia a atração que parcela ponderável das classes médias sentia pelo novo tipo de samba que viera à tona a partir da segunda metade dos anos 20.
Ainda na passagem das décadas de 20 e 30, integrantes do Bando de Tangarás tinham lá seus pudores em mexer com “esse negócio de música” e se meter com “gente do rádio”. Tamanho preconceito de setores significativos das classes médias e das elites, em relação ao samba e a cantores profissionais de rádio, levaria – para me fixar num único exemplo – o filho de um executivo de indústria, o tangará Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, a adotar o pseudônimo de João de Barro ou mesmo de Furnarius Rufus, nome pelo qual é conhecido o pássaro joão-de-barro no jargão científico.
Noel Rosa, no entanto, lançaria uma ponte entre bairros e segmentos sociais diversos, e transitaria muito à vontade entre os bambas do Estácio. “Poeta da Vila”, ele reconhecia como ninguém o Feitiço da Vila (Isabel) nos versos com os quais deu voz à sofisticada melodia de Vadico:
Quem nasce lá na Vila/ Nem sequer vacila/ Ao abraçar o samba/ Que faz dançar os galhos do arvoredo/ E faz a lua nascer mais cedo/ (…) Eu sei tudo que faço/ Sei por onde passo/ Paixão não me aniquila/ Mas tenho que dizer:/ Modéstia à parte/ Meus senhores, eu sou da Vila!
A Vila Isabel do final dos anos 20 e início dos 30 transpirava musicalidade. A tal ponto que o compositor e radialista Haroldo Barbosa costumava, muitos anos mais tarde, compará-la à Ipanema da década de 60. “Point” do agito cultural, a Vila, bairro de classe média, legou à história da música e do rádio no Brasil nomes da envergadura de Almirante, João de Barro, Francisco Alves, Nássara, Cristóvão de Alencar, Orestes Barbosa, Antonio Almeida, Ciro de Sousa, J. Cascata, os irmãos Evaldo Rui e Haroldo Barbosa, Barbosa Jr. etc., mais “agregados” como Lamartine Babo e as amizades “estranhas” de Noel, recrutadas entre “gente do morro”.
Mas não se pense que a Vila cultivasse pretensões hegemônicas relativas à apropriação do samba, apesar de sua contribuição para o refinamento da canção popular no Brasil. O que se evidencia nas palavras de Noel Rosa é que o samba carioca não pertence ao Estácio ou à Vila Isabel. Ele é produto do Rio de Janeiro, como está dito, com todas as letras, em Palpite Infeliz, com Araci de Almeida, composição que fez parte da polêmica musical travada entre Noel e Wilson Batista:
Quem é você que não sabe o que diz/ Meu Deus do céu, que palpite infeliz!/ Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira/ Oswaldo Cruz e Matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila não quer abafar ninguém/ Só quer mostrar que faz samba também/ (…) A Vila é uma cidade independente/ Que tira samba mas não quer tirar patente/ Pra que ligar a quem não sabe/ Aonde tem o seu nariz?/ Quem é você que não sabe o que diz.
Como que pondo fim, musicalmente, a qualquer discussão envolvendo a oposição morro x cidade, o mesmo Noel, figura central na definição das feições do samba urbano carioca, dissera, de forma categórica, dois anos antes (1933), em Feitio de Oração (dele e Vadico), que “o samba na realidade/ não vem do morro nem lá da cidade/ e quem suportar uma paixão/ sentirá que o samba então/ nasce do coração”. E outros compositores de alguma maneira fariam coro com ele. Benedito Lacerda e Herivelto Martins, via interpretação despojada de Alzirinha Camargo, frisavam em Ritmo do Coração (de 1936) que “o samba é paixão/ o samba tem o mesmo/ ritmo do coração”. Ari Barroso, pela voz de Sílvio Caldas, emendaria em Morena Boca de Ouro (de 1941), um primor de combinação percussiva entre ritmo, melodia e letra: “meu coração é um pandeiro/ marcando o compasso de um samba feiticeiro”.
Diferentemente, porém, dos compositores de sua origem social, Noel Rosa revelava um apego às coisas e às pessoas do subúrbio e do morro que, também sob esse aspecto, o transformava num tipo excepcional, cruzando e intercruzando mundos distintos, numa palavra, aproximando-os como autêntico “mediador cultural”.. Francisco Alves tinha um faro extraordinário para garimpar novidades e talentos onde quer que eles surgissem, para, em seguida, produzir discos de sucesso. Noel ia muito além: de modo mimético, se integrava aos “sambistas de morro”, como atestam as suas parcerias com Canuto (do Salgueiro), Cartola e Gradim (da Mangueira), Ernani Silva, o Sete (do subúrbio de Ramos), Bide e Ismael Silva (do Estácio), sem falar no exímio ritmista Puruca, em Antenor Gargalhada e outros mais. Não é por si só emblemático que o ex-estudante de Medicina e boêmio Noel Rosa tivesse justamente em Ismael Silva o parceiro com quem mais músicas compôs? Justo ele, um negro pouco afeito ao trabalho, que vivia de biscates, trapaças de jogo, e que, imbuído do orgulho de criador artístico de respeito, proclamava em O Que Será de Mim, uma espécie de auto-retrato:
Se eu precisar algum dia/ De ir pro batente/ Não sei o que será/ Pois vivo na malandragem/ E vida melhor não há/ (…) Deixa falar quem quiser/ Deixa quem quiser falar/ O trabalho não é bom/ Ninguém pode duvidar/ Oi, trabalhar só obrigado/ Por gosto ninguém vai lá.
A vida e a obra de Noel Rosa fornecem um testemunho eloqüente do movimento de “transregionalização”do “samba carioca”. Nascido numa determinada região do Rio de Janeiro, o samba migra, num processo dinâmico de permanente recriação, para outras áreas da cidade. Simultaneamente, conduzido pelas ondas do rádio, ele se transporta para outros lugares do país, que elevarão o “samba carioca” à condição de “samba nacional”, embora não se excluam outras pronúncias ou outras dicções do samba.
Esse reconhecimento surgiria na linguagem musical dos sambistas. “O samba já foi proclamado/ sinfonia nacional”, enfatizavam, em 1936, por meio de Carmen Miranda, os compositores Custódio Mesquita e Mário Lago, em Sambista da Cinelândia. Enquanto isso, o piano de Custódio Mesquita, com sua habitual elegância, aderia, em breves passagens, à marcação rítmica da batucada. Aparentemente estavam derrotados os preconceitos mencionados, dois anos atrás, por Maércio de Azevedo e Francisco Matoso em Abandona o Preconceito, com o Bando da Lua. Afinal, em 1935, numa gravação em que música, letra e acompanhamento do conjunto regional estão estreitamente ajustados, Carmen Miranda cantava em Se Gostares de Batuque (cuja autoria se atribui a Kid Pepe):
Oi, se gostares de um batuque/ Tem batuque que é produto nacional/ Sobe o morro e vai ao samba/ E lá verás que gente bamba/ Está sambando no terreiro/ Pois tudo aquilo é bem brasileiro.
E isso com direito, ao final da gravação, a um provocativo e escrachado yeah!
II. Yes, nós temos samba: o nacionalismo musical
Yes, nós temos samba. E o samba se converteria na principal peça da artilharia musical brasileira na batalha desencadeada contra as “más influências” culturais norte-americanas, que, no front da música popular, seriam encarnadas acima de tudo pelo fox-trot.
Se para uns era perfeitamente admissível que o sambista e o compositor de fox habitassem uma mesma pessoa, para outros essa dualidade era intragável. Se de ambos os lados se podiam recolher manifestações de afirmação do samba como símbolo musical da identidade nacional, os usos de um ritmo de procedência estrangeira os dividiam, mesmo quando pudessem até atuar como parceiros, como foi o caso, por exemplo, de Noel Rosa e Custódio Mesquita.
Ao se examinar a discografia brasileira em 78 rpm, verifica-se também que há elementos suficientemente expressivos da penetração do fox-trot desde a segunda metade da década de 10. A influência de gêneros musicais norte-americanos, com o fox à frente, se acentuou nos anos 20. É a época da constituição de diversas jazz-bands, dentre as quais a do Batalhão Naval do Rio de Janeiro. Nos anos 30, quando o fox-trot rodava pelo mundo com inegável sucesso, sua presença continuou a crescer, notadamente na primeira metade da década, para, depois, voltar a estar em grande evidência até, a grosso modo, o término da Segunda Guerra Mundial.
Durante esses aproximadamente 30 anos do fox-trot em terras brasileiras, as etiquetas dos discos aqui gravados farão menção a uma gama imensa de foxes: fox-canção, fox-cançoneta, fox-cowboy, fox-marcha, fox-sertanejo e … fox-samba. E se ouvirão foxes nacionais e estrangeiros, no original ou em versões (em compensação, também serão registrados fado-samba, guarânia-samba, mazurca-samba, samba-rumba, samba-tango e … samba-fox, sem contar samba-boogie e samba-swing).
Armado esse cenário, pode-se então compreender por que, já em 1930, num samba amaxixado de Randoval Montenegro, Carmen Miranda descarregava a ira do setor nacionalista contra o fox-trot, esse intruso, e espalhava aos quatro cantos que Eu Gosto da Minha Terra:
Sou brasileira, reparem/ No meu olhar, que ele diz/ E o meu sabor denuncia/ Que eu sou filha deste país// Sou brasileira, tenho feitiço/ Gosto do samba, nasci pra isso/ O fox-trot não se compara/ Com o nosso samba, que é coisa rara.
E por aí ia esse precursor do “samba-exaltação”, a transbordar de felicidade com as belezas naturais do Brasil. Sem ser dado a compartilhar de qualquer ufanismo tolo – supondo-se, é claro, a possibilidade de existir ufanismo que não seja tolo –, Noel Rosa era um dos que compactuavam, no entanto, com as restrições feitas ao modismo do fox-trot. Na verdade, com freqüência ele torcia o nariz diante do que lhe parecesse americanizado, da mesma maneira como achava deplorável ver brasileiros cantando em outras línguas. Por ser, também nessa discussão, uma figura da maior importância na cena musical brasileira, vale a pena nos determos um tanto mais nas implicações do seu nacionalismo, algo que recendia a um nacionalismo popular.
Nas palavras dos seus melhores biógrafos, “os estrangeirismos simplesmente não combinam com seu jeito de ser. São chiquês de grã-finos e intelectuais enfatuados, pura moda, mania de exibição”. Sob a ótica de Noel, o Brasil está “aqui perto, na cidade do interior, no morro, no bairro, na esquina. Ou mesmo no botequim, na gafieira, na pensão de mulheres, no carnaval, na roda de jogo, nos lugares enfim onde todos os brasileiros se igualam. Seu nacionalismo tem esse sentido. De gostar das ‘coisas nossas’. De preferir o samba ao fox-trot”.
Tudo isso está sintetizado de forma magistral por Noel Rosa numa composição de 1933, Não Tem Tradução, na qual música e letra se integram à perfeição num corpo só:
O cinema falado/ É o grande culpado/ Da transformação/ Dessa gente que sente/ Que um barracão/ Prende mais que um xadrês/ Lá no morro, se eu fizer uma falseta/ A Risoleta/ Desiste logo do francês e do inglês// A gíria que o nosso morro criou/ Bem cedo a cidade aceitou e usou/ Mais tarde o malandro deixou de sambar/ Dando pinote/ E só querendo dançar o fox-trot!// Essa gente hoje em dia/ Que tem a mania/ Da exibição/ Não se lembra que o samba/ Não tem tradução/ No idioma francês/ Tudo aquilo que o malandro pronuncia/ Com voz macia/ É brasileiro, já passou de português// Amor, lá no morro, é amor pra chuchu/ As rimas do samba não são “I love you”/ Esse negócio de “alô”, “alô, boy”/ “Alô, Johnny”/ Só pode ser conversa de telefone.
Música-plataforma, por assim dizer, Não Tem Tradução entrava em linha de sintonia com Macunaíma, personagem gerado pelo modernista Mário de Andrade, que já percebera e procurava apre(e)nder as “duas línguas da terra, o brasileiro falado e o português escrito”. Como se sabe, a preocupação básica de Mário de Andrade, no caso, se nutria do desejo de captar a fala que nasce do Brasil popular, do “Brasil brasileiro”, como que a saborear o coco que o coqueiro dá. Nessa perspectiva, a sintaxe é submetida a um processo de abrasileiramento em busca de uma “língua brasileira”. E essa sintaxe, musicalmente falando, para Noel era o samba.
Seria, de fato, o cinema falado o vilão apontado por Noel Rosa? Exageros à parte, era indiscutível que, ao desembarcar no Brasil em 1929 – trazendo consigo o idioma inglês e os musicais norte-americanos –, ele contribuiria poderosamente para originar uns tantos modismos. Do cultivo da aparência física ao vestuário, passando pela incorporação de expressões inglesas à linguagem cotidiana, seu raio de influência foi amplo. E Noel estava a postos para satirizar certas situações que precipitavam no ridículo os cultores dessas ondas, como o fez no samba-choro Tarzan (O Filho do Alfaiate). Aqui seu alvo são os jovens de famílias de “boa cepa”, que, querendo ombrear-se ao musculoso Tarzan do cinema, muitas vezes corriam ao alfaiate para rechear de algodão as ombreiras dos paletós…
Mas o deboche, de certo fundo nacionalista, não era obra apenas de Noel Rosa. Lamartine Babo, autor de classe média, aberto a todo tipo de música, não era, logo se vê, exatamente um nacionalista. Nem por isso, entretanto, deixou de elaborar, em 1931, uma obra-prima do non-sense, o fox-charge Canção Para Inglês Ver:
Morguet Five Underwood/ I shell/ No bonde Silva Manuel/ Manuel/ Manuel/ I love you/ To have steven Via-Catumbi/ Independence lá do Paraguai/ Studebaker… Jaceguai!/ Yes, my glass/ Salada de alface/ (…) Elixir de inhame/ Reclame de andaime/ Mon Paris je t’aime/ Sorvete de creme…/ (…) Isto parece uma canção do Oeste/ Coisas horríveis lá do Far West.
Nacionalista assumido, Assis Valente se insurgia contra esse estado de coisas. Mulato de origem humilde, que dividia seu tempo entre a arte de fazer prótese dentária e a arte de compor. Numa marcha de 1932, Good-Bye, ele aconselhava: “good-bye, boy, good-bye, boy/ deixa a mania do inglês/ fica tão feio pra você/ moreno frajola/ que nunca freqüentou/ as aulas da escola”. Aliás, já na sua estréia em disco, com Tem Francesa no Morro, ele confiava a Araci Cortes, estrela cintilante do teatro de revista nas décadas de 20 e 30, a missão de mostrar, com muita graça, que samba e “morrô” (ou seria “morreau”?) não rimavam com França: “vian/ petite francesa/ dancê/ le classique/ em cime de mesa”. Alguns anos mais tarde, em Oui… Oui…, Floriano Pinho tornaria a bater na mesma tecla: “as francesas sambando/ eu fiquei a sorrir/ marcação de bailado/ à moda chic de Paris!/ (…) no Brasil o samba é patenteado/ e nós, os brasileiros, somos diplomados”.
As conseqüências da chegada do cinema falado ao Brasil não se resumiam, contudo, à área dos costumes. Ela provocou, no começo dos anos 30, desemprego em massa de instrumentistas, até então habitualmente convocados para trabalhar nas salas de projeção ou nas salas de espera dos cinemas. O número de músicos atirados ao “completo abandono” era calculado em cerca de 30.000 por todo o país. Daí uma manifestação de protesto por parte da corporação musical” do Rio de Janeiro, que, recebida em palácio, passou às mãos de Getúlio Vargas um documento no qual, entre outras coisas, se reivindicavam: a) “a obrigatoriedade da inclusão de dois terços de música brasileira em todo e qualquer programa das casas de diversões”; b) “obrigatoriedade de conservação de orquestras típicas nacionais nos salões de espera ou nos salões de exibição, quando aqueles não existirem”.
Essa iniciativa de cunho protecionista combinava com a proposta de constituição de uma Orquestra Típica Brasileira. Defendida em 1933 por Orestes Barbosa e bancada por Mário Reis, a idéia que os animava era a de fazer frente às jazz-bands, estrangeiras ou nacionais, formadas sob inspiração do figurino norte-americano, bem como às “orquestras típicas argentinas”. Isso propiciou até uma experiência natimorta, por falta do esperado amparo oficial: sob a liderança de Pixinguinha, ocorreu uma única apresentação da Orquestra Típica Brasileira, cujo precedente tinha sido a formação, em 1928, da Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Por essas e outras, em 1935, Noel Rosa lamentava a inexistência no Brasil de uma “orquestra típica” como as dos Estados Unidos e Argentina.
O panorama musical brasileiro da época era, obviamente, um campo de forças, com suas disputas e concorrências. O samba, hegemônico, não reinava sozinho, como também é óbvio. A verificação dos gêneros musicais veiculados no mundo dos discos indicava, em segundo lugar, a freqüência de gravação de marchas (por sinal, era muito comum a dobradinha samba-marcha, figurando em cada um dos lados dos discos de 78 rpm, especialmente nos meses que antecediam o carnaval). Mas se gravavam em grande quantidade “canções”, valsas (estas, quase exclusivamente de autores nacionais, em escala bem maior que o fox), músicas “sertanejas” ou “regionais” (agrupando muitos gêneros ou subgêneros). Sem o mesmo peso quantitativo de antes, o choro era outra modalidade sempre presente, inclusive sob a nova designação de samba-choro. Já o samba-canção, que despontara como rubrica musical em 1928, ainda contava com um número de registros relativamente reduzido.
O fado, o tango e o fox-trot eram, sem dúvida, os gêneros populares “estrangeiros” mais em voga nos anos 30, no Brasil. Até meados da década o fado tinha aqui considerável ressonância. Orestes Barbosa, misto de jornalista, compositor e boêmio, nacionalista até a medula, nunca escondeu sua particular aversão aos estrangeiros. E crivava de críticas os portugueses, que a seu ver eram sinônimo de atraso de vida. Ele tapava os ouvidos diante de um fado e partia logo para a esculhambação: “o fado é um arroto! O fado só fala de miséria. Em cadelas de rua. Em bacalhau. Em catres de hospital. É sempre a mesma lamúria: ‘Minha mãe, minha mãe, minha mãe…’ Rimando com tambãe”. Sua impressão sobre o tango, com coisas tipo Por Vos Yo Me Rompo Todo (Por Ti Eu Me Rasgo Todo, na versão gravada por Orlando Silva), certamente não era muito diferente.
A maior influência, entretanto, continuava a ser exercida pelos foxes, nacionais ou estrangeiros (incluindo-se versões de João de Barro, Alberto Ribeiro, Lamartine Babo e… Orestes Barbosa, muitas delas de filmes musicais norte-americanos). O versionista-mor do momento era Osvaldo Santiago, posto ocupado por Haroldo Barbosa na década de 40. Até o encarniçado nacionalista Orestes Barbosa se tornou co-autor de fox-canções e de fox-trots, em parceria com o maestro J. Tomás. Chegarão ao ponto de compor um “fox-samba”, Flor do Asfalto, em 1931. Nesse campo, todavia, ninguém excedeu musicalmente em qualidade Custódio Mesquita, com impecáveis composições em que dava mostras da assimilação criativa de procedimentos musicais norte-americanos, tais como em Nada Além (dele e Mário Lago) e Mulher (dele e Sadi Cabral).
Nesse cenário, de novo se pode recorrer a Noel Rosa como uma espécie de tipo-ideal weberiano da trincheira do samba. O exame da sua obra é um atestado eloqüente disso. Desço aos detalhes, aqui. Num esforço de recuperação meticuloso, João Máximo e Carlos Didier arrolaram 259 canções de Noel, entre as que foram gravadas (em vida ou postumamente), não gravadas e/ou das quais se teve conhecimento de sua existência (mesmo quando melodia e/ou letra se perderam) por informações várias. Limitei-me apenas ao trabalho de quantificá-las para que o perfil musical do autor pudesse emergir mais claramente.
A imensa maioria de suas composições é constituída por sambas, 164 ao todo, dos quais, na prática, se se considerar a existência de diversas parcerias fictícias, cerca de metade é tão-somente dele (música e letra). Em segundo lugar aparecem as marchas, 31 no total, 23 delas em regime de parceria. Todos os demais gêneros têm uma presença pouco significativa no conjunto da produção de Noel. Sozinho ele compôs a sério não mais do que uma valsa e uma “canção”, dentre as 7 valsas e as 6 canções que integram seu repertório, sendo 4 valsas e 4 “canções” meras paródias, além de uma valsa e uma “canção” feitas nos moldes de opereta ou com fim humorístico. A pouca ou quase nenhuma importância desses dois gêneros para Noel vale como um indicador do seu entranhado e moderno anti-romantismo.
4 emboladas, 3 marchas-rancho, 3 sambas-canções 3 sambas-choros, 2 choros, 2 canções sertanejas e uma toada completam sua obra, ao lado de 20 peças não identificadas e 3 musicadas postumamente. E quanto aos gêneros “estrangeiros”? Tango, rumba e fox-trot têm também o seu lugar, mas um lugar gritantemente menor na obra desse parodista notável que jamais compôs sozinho qualquer fox-trot, rumba ou tango. Os dois tangos em que Noel aparece como co-autor são paródias; a única rumba se reveste de feição nitidamente teatral, para os devidos fins. Dos 7 fox-trots a que associou seu nome, 3 assumem a forma de paródia, um é parte de uma opereta e outro atende a finalidades teatrais. O nacionalismo musical de Noel fala, portanto, através da análise da sua produção.
Em sua curta vida, interrompida por complicações pulmonares aos 26 anos, nada mais do que um fox-trot com letra sua (música do irmão Hélio Rosa, aliás, coisa de irmão pra irmão) chegou ao disco: Você Só… Mente. Estátua da Paciência, com música do regente de orquestra de teatro de revista Jerônimo Cabral, teria que amargar mais de 50 anos de esquecimento até ser gravada pela primeira vez.
Gozador de marca maior, Noel foi autor de operetas, “óperas bufas cariocas” ou “revistas radiofônicas”. Parodista implacável, parodiou a si próprio com a mesma facilidade com que seus traços o caricaturizaram, ele que, “sem queixo”, fazia a alegria dos caricaturistas. Num período em que a febre dos musicais norte-americanos arrastava multidões aos cinemas, ele não respeitou sequer Irving Berlin. Cheek to Cheek, música ao som da qual Fred Astaire e Ginger Rogers contracenavam em Picolino, virou nada mais nada menos do que um reles Vagolino de Cassino (não gravada).
O procedimento parodístico sublinha a diferença, quando não institui a inversão. Afasta-se radicalmente da paráfrase, que atua como recurso argumentativo de reforço e de celebração da identidade. No caso, a ação de Noel novamente o aproxima de um dos elementos críticos utilizados pelos poetas modernistas, o poema-piada, em meio à reavaliação que fizeram, na década de 20, da cultura brasileira. Como salienta Affonso Romano de Sant’Anna, “da mesma maneira que é possível estabelecer um paralelo entre a paródia – como efeito cáustico e crítico em Noel Rosa – e a paródia em Oswald de Andrade, Murilo Mendes e Carlos Drumond de Andrade, talvez seja possível aproximar a paráfrase – como endosso e cópia – tal como aparece através do ufanismo de poetas como Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida, e o ufanismo de Ari Barroso na década de 30 e 40 sob os auspícios da ditadura de Getúlio Vargas”.
O nacionalismo popular de Noel não se permite arrebatamentos ou derramamentos grandiloqüentes. O Brasil lhe deu régua e compasso para desenhar o “Brasil de tanga”, o Brasil da “prontidão”. De olhos voltados para o corpo-a-corpo do dia-a-dia, seu mundo é povoado pela mulher, pelo pandeiro, batuque, violão, prestamista e vigarista, como em Coisas Nossas, que ele canta com sua voz pequena e em tom coloquial: “malandro que não bebe/ que não come, que não abandona o samba/ pois o samba mata a fome/ (…) e o bonde que parece uma carroça/ coisa nossa, muito nossa!”
Noel Rosa, Ari Barroso, João de Barro, Alberto Ribeiro e muitos outros mais, quaisquer que fossem as diferenças que os separassem, tinham em comum traços nacionalistas, mais ou menos pronunciados, e, acima de tudo, erigiam o samba como produto nacional. Com a marchinha Yes! Nós Temos Bananas…, sucesso carnavalesco de 1938 em diante, João de Barro e Alberto Ribeiro faziam uma réplica a um fox-trot que deu volta ao mundo, Yes! We Have No Bananas, de Frank Silver e Irving Cohn. Isso equivalia a um brado nacionalista, de quem se sabia subdesenvolvido, sim, mas achava, ainda assim, razões para se orgulhar de seu país: “yes! nós temos banana/ banana pra dar e vender/ banana, menina/ tem vitamina/ banana engorda e faz crescer”. E, musicalmente, quem ia para o trono, no Brasil, era, de fato, o samba, como cantava Almirante em Touradas em Madri, da mesma dupla que se celebrizou com suas marchas:
Eu conheci uma espanhola/ Natural da Catalunha/ Queria que eu tocasse castanhola/ E pegasse o touro à unha/ Caramba/ Caracoles/ Sou do samba/ Não me amoles/ Pro Brasil eu vou fugir/ Isso é conversa mole/ Para boi dormir.
III. Essa gente bronzeada: o samba e a mestiçagem
A escalada do samba para obter seu lugar ao sol na galeria dos símbolos nacionais o levou a percorrer territórios minados. Sofrendo nos primeiros tempos com as investidas policiais, que não poupavam a malandragem e a capoeiragem, ele foi achincalhado como “coisa de negros e de vadios”. O violão, companheiro das horas certas e incertas, foi desqualificado como “instrumento de capadócios”.
O reconhecimento de que o samba era negro de nascença provinha inclusive de compositores e intérpretes brancos que não viam nisso, necessariamente, algo de negativo. Como no amaxixado O Nego no Samba (de Ari Barroso, Luiz Peixoto e Marques Porto), com Camen Miranda, que zombava, em 1929, da falta de jeito dos brancos ao cairem no remelexo do samba:
Samba de nego/ Quebra os quadri/ Samba de nego/ Tem parati/ (…) Num samba, branco se escangaia/ Num samba, nego bom de saia/ Num samba, branco não tem jeito, meu bem/ Num samba, nego nasce feito.
Coisa de nego que envolve negaça (sedução, provocação, requebro) e parati (cachaça) para festejar o momento lúdico, eis, em suma, o retrato falado do samba. Poucos anos mais tarde, porém, já não seria esta a imagem que outros compositores fariam dele.
Na realidade, o samba – no seu fazer-se e refazer-se permanente – ia incorporando outra tez e outro tom, quer dizer, outras dicções e tonalidades, imerso num processo simultâneo de relativo “embranquecimento” e “empretecimento” dos grupos e classes sociais que lidavam com ele. Sua prática o conduzia rumo a direções opostas e complementares, tecendo a dialética da unidade dos contrários, tão bem expressa nas contraditórias trocas culturais realizadas entre as classes populares e as classes médias. Abria-se, assim, caminho para a entronização do samba como ícone cultural de toda a nação e não apenas desse ou daquele segmento étnico. Testemunha ocular e ativo participante dessa história da nacionalização do samba, Orestes Barbosa prestava o seu depoimento em Verde e Amarelo, calcado em música de J. Tomás, revelando, em 1932, sinais de um novo tempo:
Vocês quando falam em samba/ Trazem a mulata na frente/ Mas há muito branco e bamba/ Que no samba é renitente/ Não me falem mal do samba/ Pois a verdade eu revelo/ O samba não é preto/ O samba não é branco/ O samba é brasileiro/ É verde e amarelo.
Para acentuar o clima nacionalista, essa gravação é entrecortada por acordes do hino nacional. E mais: nos versos seguintes (“nesta terra de palmeiras/ onde canta o sabiá/ as almas das brasileiras/ são da flor do resedá”) há uma citação de “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, poeta romântico repetidamente parodiado pelos modernistas. Nada aí é casual: o arremate recorda a coloração amarela da flor do resedá.
O Brasil parecia se encher de cores, a julgar ainda pela denominação de algumas formações musicais. Entre fins dos anos 20 e princípio dos 30, estava em ação o Grupo Verde e Amarelo, liderado pelo compositor e cantor Paraguassu, cujo interesse se direcionava para as “coisas brasileiras”. Temperando o café com leite, entre março de 1934 e dezembro de 1939, a Dupla Preto e Branco (respectivamente, Francisco Sena, depois Nilo Chagas, e Herivelto Martins) emplacou diversos sucessos. Para culminar, de 1937 em diante, a Dupla Verde e Amarelo (com Wilson Batista e Erasmo Silva) coloca no mercado seus primeiros discos. Tudo isso parecia ser sintoma de alguma coisa.
Sintoma da mestiçagem que passou a ser cantada como nunca se viu por estas terras. Sua trilogia pode ser buscada, por exemplo, na seqüência das marchas compostas por um dos maiores nomes dos carnavais brasileiros, o branco Lamartine Babo, originário da classe média. Em O Teu Cabelo Não Nega (dele e dos Irmãos Valença), de 1931, a mulata é reverenciada. No ano seguinte ela cede seu lugar à Linda Morena. Em 1933 ele cantará Dá Cá o Pé… Loura (dele e de Alcir Pires Vermelho). Numa palavra, o que se tematizava musicalmente não era senão o caráter “misto”, “multirracial” da sociedade brasileira. A miscigenação, ora execrada, ora exaltada, permanecia no centro de debates intelectuais que punham à mostra como a questão da identidade nacional se ligava umbilicalmente à temática racial. Nesse contexto é que o antropólogo Gilberto Freyre louvará a miscigenação brasileira como a simbiose de negros, índios e brancos com final supostamente feliz na história do Brasil.
Simbiose que será retratada em outra marcha de Lamartine Babo, Hino do Carnaval Brasileiro, na qual ele apresenta a síntese de suas três composições anteriores e joga com outros símbolos nacionais: “salve a morena!/ a cor morena do Brasil fagueiro/ (…) salve a loirinha!/ dos olhos verdes, cor das nossas matas/ salve a mulata!/ cor do café, a nossa grande produção”.
Outros compositores consagrarão, indistintamente, as loiras e as morenas, como Jaime Brito e Manezinho Araújo em Lalá e Lelé, com Luiz Barbosa. Cantor cheio de bossa, criador do samba de breque, Luiz Barbosa batucava aqui na copa de seu chapéu de palha – “instrumento de percussão” patenteado por ele – para homenagear, alegremente, a loira Lalá e a morena Lelé, “duas garotas do desacato”, que “quando caem no samba/ (…) provocam até cenas de pugilato”.
O leque da miscigenação na música popular se abre por inteiro, todavia, na marcha É do Barulho (de Assis Valente e Zequinha Reis). Nela são referidas expressamente as morenas, loiras, mulatas e crioulas. E se diz, em alto e bom som: “sou pacificador/ não quero brigar/ por causa de cor/ (…) todas elas são rainhas/ de igual valor”. O Bando da Lua canta essa música harmonizando vozes da mesma maneira como idealmente se harmonizam cores e raças no Brasil.
Esse policromatismo, base sobre a qual se ergueu o mito da democracia racial brasileira, consistia, igualmente, num dos pontos de partida de reflexões político-sociais de pensadores ideologicamente comprometidos com a ditadura estado-novista. Cassiano Ricardo não se cansava de enaltecer o “berreiro cromático” ou o “escândalo” de cores chamado Brasil. Nacionalista de corte autoritário, à moda dos ideólogos de Estado, ele, ao reescrever a história do Brasil, enfatizava, entre outras coisas: “parece que Deus derramou tinta por tudo”. Da exaltação à natureza à exaltação da fábula das três raças (índios, negros e brancos) era um passo: “todas as cores raciais na paisagem humana”. Mas nem tudo era consonância quando a questão dizia respeito à raça e ao samba. Vozes dissonantes também se faziam ouvir, quebrando a aparente harmonia estabelecida. No palco de disputas montado em torno dos destinos da música popular não faltaram ataques de fundo racista. O samba do morro, por exemplo, ficou sob a alça de mira de articulistas inconformados com a propagação dessa “coisa de negros”. Um deles, Almeida Azevedo, pegava pesado contra esse tipo de samba ao escrever, em março de 1935, na revista A Voz do Rádio. Qualificava-o de “maltrapilho, sujo, malcheiroso”, incriminando-o como o “irmão vagabundo” do samba “que não quer limpar-se nem a cacete”. Daí conclamar os responsáveis pelas emissoras de rádio: “o rádio pode, se o quiser, higienizar o que por aí anda com o rótulo de coisas nossas a desmoralizar a nossa cultura e bom gosto”.
Isso representaria, aos olhos desses críticos “refinados”, um desacato aos nossos padrões de “civilidade”. Desacatar, aliás, era um verbo muito conjugado por sambistas ao fazerem alusão a mulatas do desacato, a sambas que desacatavam, no sentido de “botar pra quebrar”. Nessas circunstâncias é que, na esteira do sucesso que Carmen Miranda começava a alcançar nos Estados Unidos, foi detonada, em meados de 1939 – por intermédio de A Noite e O Jornal –, uma polêmica que tinha como contendores Pedro Calmon e José Lins do Rego. Um, historiador, outro, romancista, ambos preocupados com o samba.
José Lins não deixava por menos ao desferir suas críticas àquele filho dileto das classes dominantes baianas: “O sr. Pedro é contra o samba. (…) quer que se extinga de nossa vida essa coisa vil e negra que é a música brasileira”. Pedro Calmon se defendia, deixando vir à tona seus pressupostos racistas: “Denunciei não o samba, porém o batuque e onomatopéias que lembram, ao luar da fazenda, o perfil sombrio da senzala”. Nada poderia haver de pior para a imagem do país: “lá fora nos tomarão como pretos da Guiné ou hotentotes de camisa listrada. (…) Em vez de parecer o que chegamos a ser – um povo de culta e ambiciosa civilização (…)”.
Na verdade, tal debate se vinculava, pelo menos em parte, a outra discussão que, volta e meia, sacudia a música popular ao longo dos anos 30. Entrava, então, em pauta a “higienização” ou o “saneamento” do samba. Vale relembrar, de passagem, o episódio sobre a composição Lenço no Pescoço, de 1933, cantada malandramente por Sílvio Caldas. Seu autor, o mulato Wilson Batista, dava os primeiros passos como compositor, ele que se converteria num dos mais destacados personagens da história do samba. Semi-alfabetizado, sem jamais haver se fixado num trabalho regular, habitante dos cabarés da Lapa, preso diversas vezes, constantemente às voltas com “más companhias”, Wilson Batista dizia, em Lenço no Pescoço: “provoco e desafio/ eu tenho orgulho/ em ser tão vadio”. E advertia: “sei que eles falam/ deste meu proceder/ eu vejo quem trabalha/ andar no miserê ”.
Nessa música ele se referia a um determinado tipo de malandro em tom de glorificação: “meu chapéu de lado/tamanco arrastando/ lenço no pescoço/ navalha no bolso/ eu passo gingando”. A reação foi imediata. Orestes Barbosa, na sua pioneira coluna de rádio no jornal A Hora, estrilou: “num momento em que se faz a higiene poética do samba, a nova produção de Sílvio Caldas, pregando o crime por música, não tem perdão”. . E tanto não teve perdão entre os guardiães dos bons costumes que a comissão de censura da Confederação Brasileira de Radiodifusão vetou sua irradiação.
Até Noel Rosa irritou-se com Lenço no Pescoço, compondo e divulgando em programas de rádio a réplica Rapaz Folgado, ainda em 1933. No que foi apoiado por Almirante, que via na sua atitute a procura da “regeneração dos temas poéticos da música popular”. Essa interpretação fez escola, sendo repetida por estudiosos da música popular, que parecem ter descoberto, de uma hora para outra – em aberta contradição com toda a obra anterior e posterior do poeta da Vila – um Noel Rosa subitamente travestido de agente moralizador/civilizador do samba.
Seria esse, de fato, o significado dos versos de Noel, ao recomendar: “compra sapato e gravata/ joga fora essa navalha/ que te atrapalha/ com chapéu do lado deste rata/ da polícia quero que escapes (…) proponho ao povo civilizado/ não te chamar de malandro/ e sim de rapaz folgado”? Independentemente dos problemas pessoais/afetivos que permeavam as relações entre Wilson Batista e Noel (eles foram assinalados por João Máximo e Carlos Didier), o que Rapaz Folgado põe em questão, a meu ver, é a falta de malandragem do alegado malandro ao escancarar a sua condição de “malandro” e atrair sobre si o “olhar de doberman” da lei, esquecido do ditado popular segundo o qual “o bom cabrito não berra”. Em outras palavras, dentro dos códigos da malandragem, a arte da dissimulação é ponto de honra, e por isso mesmo não é inteligente oferecer-se como caça ao caçador. Coisa que, de resto, Noel sabia muito bem, como fica evidente tanto em Escola de Malandro, de 1932 (“a escola do malandro/ é fingir que sabe amar/ (…) fingindo é que se leva vantagem/ isso, sim, é que é malandragem/ quá, quá, quá, quá…”), quanto em Se a Sorte Me Ajudar, de 1934:
Se a sorte me ajudar/ Eu vou te abandonar/ Vou mudar de profissão/ Porque a palavra malandragem/ Só nos trouxe desvantagem/ E você não vai dizer que não// Quem faz seus versos/ E no morro faz visagem/ Leva sempre desvantagem/ Dorme sempre no distrito/ Entretanto quem é rico/ E faz samba na avenida/ Quando abusa da bebida/ Todo mundo acha bonito.
Polêmica Wilson Batista x Noel Rosa à parte, o debate musical sobre as raízes negras do samba e suas projeções prosseguia. Outro defensor do saneamento musical do Brasil era Joubert de Carvalho. Filho de fazendeiro, médico, socialmente muito bem relacionado, ele apreciava músicas eruditas. Pouco chegado ao samba, seu forte eram as composições românticas, “músicas para uso interno”. Numa década de inequívoco domínio do samba como gênero musical, Joubert de Carvalho propunha um deslocamento do eixo sobre o qual se apoiava a música popular brasileira e, em descompasso com os adeptos da miscigenação, clamava pela valorização da raça branca. Em Sai da Toca, Brasil!, de 1938, afirmava que senzala, macumba, o bater o pé no chão, tudo isso pertencia ao passado: “a dança agora é no salão”. Urgia, para elevar o Brasil ao foro de civilidade, trocar a favela pelo arranha-céu. E proclamava: “Brasil das avenidas/ da praia de Copacabana e do asfalto/ a tua gente branca e forte/ ninguém cantou ainda bem alto”. Em tempo: Sai da Toca, Brasil! era uma rumba…
A resposta não se fez por esperar. Vestindo a carapuça, Nelson Petersen, integrante do Bando Carioca, replicou num diapasão francamente nacionalista. Em Quem Condena a Batucada ele ia direto e reto ao assunto: “quem condena a batucada/ dessa gente bronzeada/ não é brasileiro/ e nada mais bonito é/ que um corpo de mulher/ a sambar no terreiro”. Era uma quimera, no seu entender, alguém pensar em pôr fim ao samba e à malandragem. O samba que, frisava Nelson Petersen, “nasceu num cruel barracão” e “foi educado sambando no chão/ com a gente de cor”.
Por um tempo as resistências ainda vão estalar, aqui ou ali. Serão todas elas, no entanto, insuficientes para barrar a consagração do samba como símbolo nacional e ícone da mestiçagem. Com tudo o que Carmen Miranda possa ter de expressão caricatural, característica de um “exotismo apimentado” (basta mencionar a salada de frutas que transportava sobre a cabeça, a sua imagem mais difundida no exterior), ela não deixou de encarnar o “paradigma mestiço”. Como sublinha Hermano Vianna, “branca européia, Carmen Miranda não via nenhuma contradição em se vestir de baiana (usando a roupa ‘típica’ das negras da Bahia), ou em cantar ou dançar samba (música de origem negro-africana)”.
Nesse contexto, afinal, “chegou a hora/ dessa gente bronzeada/ mostrar seu valor”, como disse Assis Valente na esfusiante Brasil Pandeiro. Os ganhos advindos da nacionalização do samba não foram, porém, divididos na sua justa proporção. Os cantores brancos de classe média com certeza estavam entre os que mais tiraram proveito do fato do samba se encontrar na crista do sucesso. Multiplicavam-se as queixas de compositores das classes populares em relação à dificuldade de acesso às gravadoras, que acumularam lucros e mais lucros com a exploração do trabalho alheio. Criadores do nível de Bide e Marçal, de origem negra, se profissionalizaram, quer em rádios quer em gravadoras, figurando como simples acompanhantes, eles, os bambas, transformados em pano de fundo como ritmistas. Por sua vez, os proprietários das emissoras de rádio apelaram até para o lockout a fim de manter no mais baixo patamar possível a remuneração por conta de direitos autorais. Enfim, nada de novo sob o sol. Na sociedade de classes a acumulação do capital se dá, em regra, exatamente assim.
IV. Mulato filho de baiana e gente rica de Copacabana: o samba de todas as classes
Mesmo com a desigualdade que imperava na hora da distribuição dos lucros gerados pelos negócios montados em volta da mercadoria samba, este, em termos gerais, será comumente convertido em ponto de atração e de encontro das mais diferentes classes sociais. Um Brasil, digamos, pluriclassista se agrupa e se concilia ao redor do samba. Moda que se espraia, sua mobilidade social abarca amplos segmentos, como já atestava Josué de Barros numa composição de 1929, o choro Se o Samba é Moda (lado B do primeiro disco gravado por Carmen Miranda):
O samba era/ Original dança dos pobres/ E, no entanto, hoje/ Vive nos salões mais nobres/ (…) Ainda há quem diga/ Que o samba não tem valor/ Mas lá se encontra/ O deputado e o senador.
Novos cenários acolhiam o samba entre fins dos anos 20 e princípio da década de 30. E eles não passaram despercebidos a observadores atentos da cena musical, como Pixinguinha e Cícero de Almeida (Baiano). Na interpretação despojada de Patrício Teixeira, o partido-alto Samba de Fato (que era, de fato, um samba-choro), de 1932, registrava:
Samba do partido-alto/ Só vai cabrocha/ Que samba de fato (estribilho)// Só vai mulato filho de baiana/ E a gente rica de Copacabana/ Dotô formado de ané de oro/ Branca cheirosa de cabelo louro, olé.
Apesar de reconhecer que “no samba nego tem patente” e, mais, que no samba sem cachaça “a boca fica com um gosto mau/ de cabo velho de colher de pau”, celebra-se o congraçamento social promovido por esse ritmo que se nacionaliza. É como se, do subúrbio à “cidade”, ninguém permanecesse alheio à sua pulsação, fruindo o Sabor do Samba, que dá nome a uma composição, de 1935, assinada por Kid Pepe e Germano Augusto:
Peço licença pra dizer/ Que hoje em dia/ O samba lá no morro/ Também tem sua valia/ Eu fui a um samba/ Na alta sociedade/ Vendo sambista de smoking/ Eu me senti à vontade.
Se nesses exemplos de conciliação social via samba os sambistas festejam, em última análise, o reconhecimento por outras camadas sociais da importância da sua criação, haverá casos, no campo da produção musical, em que se procurará deliberadamente, de forma programática, a harmonização das classes sociais. É o caso do compositor e regente da área erudita Heitor Villa-Lobos, empenhado em puxar o coro da unidade nacional.
Defensor, ao lado de outros músicos modernistas, de uma proposta musical nacionalista, sob a capa protetora do Estado, ele concebia o canto coral como arma de combate ao individualismo. Na sua visão, a música deveria exteriorizar a conciliação das classes sociais, funcionando como uma alavanca para a integração social e política sob a batuta estatal. Daí o peso que atribuía à prática do canto orfeônico: ao entoarem, irmanados, as composições de celebração à disciplina e ao civismo, seus integrantes fariam juras de eterno amor à pátria. Pátria que, ainda segundo Villa-Lobos, necessitava do trabalho disciplinado e uma atmosfera de ordem para decolar rumo ao desenvolvimento.
Essas concepções, como é sabido, se conectavam a um movimento de grande amplitude que trazia à superfície a crise internacional do liberalismo no quadro da sociedade de massas e do agravamento das lutas de classe. Vislumbrado como antídoto eficaz, o corporativismo nacionalista ganhava seguidores mundo afora, quaisquer que fossem os seus matizes ideológicos. Estava na ordem do dia o combate sem tréguas à luta de classes como meio de impedir o avanço da “barbárie comunista”. E para tanto, como ressaltava em 1937 o futuro ministro da Justiça estado-novista Francisco Campos, sabia-se a que recorrer, pois só “o corporativismo interrompe o processo de decomposição do mundo capitalista previsto por Marx como resultante da anarquia liberal”.
Enquanto isso, sem maiores preocupações com as questões políticas que agitavam o mundo, os sambistas iam, na prática, ao som da batucada, aproximando as classes sociais. Até no plano estritamente sonoro tal fato podia ser percebido ao longo do tempo, com os rearranjos feitos, por exemplo, na composição da família instrumental do samba. Ao falar do conjunto Gente do Morro – um grupo regional cujas gravações vão de 1930 a 1934 e cujo nome, a julgar pela procedência de seus componentes fixos, era mais uma espécie de fachada comercial –, Tinhorão chama a atenção para a simbiose musical que ele representava: “o que o conjunto Gente do Morro fazia – e isso era de fato novidade – era realizar a fusão dos velhos grupos de choro à base de flauta, violão e cavaquinho com a percussão dos sambas populares herdeiros dos improvisos das rodas de batucada, com base em estribilhos marcados por palmas. Sob o nome logo popularizado de conjunto regional, o que tais grupos vinham a realizar (o próprio líder do Gente do Morro à frente, com seu depois famoso Conjunto de Benedito Lacerda) era o casamento da tradição do choro da pequena classe média com o samba das classes baixas”.
A adesão da classe média ao samba, em meio à sua recriação incessante, contará com exemplos notáveis. Sem me referir novamente a Noel Rosa, podem ser lembrados os bacharéis em Direito Ari Barroso e Mário Lago, o médico homeopata Alberto Ribeiro, além de Custódio Mesquita, moço de “boa família”, regente diplomado pela Escola Nacional de Música, e muitos outros mais. No nível estilístico, uma evidência a mais pode ser colhida na aparição, em 1928, de um gênero ou subgênero musical – o samba-canção – que buscava maior apuro melódico e que terá como marco Ai, Ioiô, de Henrique Vogeler. Lançada com sucesso, a partir de 1929, sob 4 títulos diferentes e, na falta de uma, ostentando 3 letras, sua versão definitiva – com o título de Iaiá – surgiria em março desse ano, com uma dicção interpretativa um tanto quanto operística de Araci Cortes, escorada por um acompanhamento da Orquestra Parlophon com acento amaxixado.
O samba-canção – estilo particularmente adequado ao período de entre-carnavais, fazendo parte do conjunto das então denominadas “músicas de-meio-de-ano” – de início deslancharia junto a compositores que sabiam ler música (caso, aliás, de Ari Barroso e Custódio Mesquita), alguns inclusive com formação erudita. Posteriormente, num movimento de sentido contrário ao do samba, stricto sensu, ele expandirá seu alcance em direção às classes populares. Historicamente, Cartola e Nelson Cavaquinho são exemplos marcantes desses intercâmbios culturais, testemunhados por Roberto Martins e Waldemar Silva em Favela, de 1936, ao cantarem a “favela dos sonhos de amor/ e do samba-canção”.
As relações entretidas entre a classe média e a “gente do povo” estão flagradas em diversas composições. Não foram Vadico e Noel Rosa, dois compositores provenientes das camadas médias da sociedade, que, em Feitiço da Vila, já afirmavam que “lá em Vila Isabel/ quem é bacharel/ não tem medo de bamba”? Três anos depois, em 1937, com sua veia satírica saltada, Assis Valente produziria mais uma de suas brilhantes crônicas/críticas musicais de costumes. Na berlinda um acontecimento que se integrara à vida cotidiana: a escapada de doutores de classe média, fantasiados de malandros, que se entregavam ao reinado da folia nos dias de carnaval. Camisa Listada, apesar da rejeição que sofreu da parte de diretores de gravadoras, acabou sendo gravada por Carmen Miranda ante a insistência de Assis valente e obteria enorme sucesso. Mais ainda: com esse samba-choro se perpetuou uma das mais memoráveis interpretações da “pequena notável”, encarnando, aí, a graça em pessoa:
Vestiu uma camisa listada e saiu por aí/ Em vez de tomar chá com torrada/ Ele bebeu parati/ Levava o canivete no cinto/ E um pandeiro na mão/ E sorria quando o povo dizia/ Sossega leão, sossega leão// Tirou o anel de doutor/ Para não dar o que falar/ E saiu dizendo/ Eu quero mamar/ Mamãe, eu quero mamar.
Esse estado de coisas, é lógico, só jogava a favor da nacionalização do samba, na medida em que apagava as linhas demarcatórias que pudessem subsistir, dificultando o livre tráfego do samba pela sociedade. E sem isso dificilmente o samba exibiria suas credenciais de “coisa nossa”. Afinal, como demonstrou com bastante argúcia Hermano Vianna, múltiplos sujeitos sociais intervirão nesse processo, dentre os quais se deve mencionar “negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, compositores eruditos, franceses, milionários, poetas”. Vem daí que “o samba não se transformou em música nacional através dos esforços de um grupo social ou étnico específico, atuando dentro de um território específico”. Da mesma forma, complementa esse antropólogo, “nunca existiu um samba pronto, ‘autêntico’, depois transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização”.
Nada disso, porém, significa dizer que tivesse se evaporado, como que por efeito de um passe de mágica, todo e qualquer ressentimento de classe ou a percepção da discriminação social/racial. As contradições inerentes a uma sociedade assentada nas desigualdades compunham, obviamente, o dia-a-dia dos sambistas. E Assis Valente, por exemplo, não engolia aquilo que afetava, em especial, as pessoas simples. Assim, em Isso Não se Atura, de 1935, depois de, sintomaticamente, atirar farpas visando ao pessoal do Café Nice, ele atacava a questão da desigualdade social ou do tratamento diferenciado dispensado pela polícia. Determinadas manifestações dos sambistas populares, “a polícia não consente/ aparece o tintureiro (carro de polícia, camburão)/ e seu guarda leva a gente”, denunciava o autor. Por outro lado, completava, “eu já fui numa macumba/ que no fim o pau comeu/ mas foi entre gente fina/ e a polícia não prendeu”.
Vestígios de que, mesmo com a nacionalização do samba em marcha, ainda se guardava, nos setores populares, uma certa distância em relação a “penetras” de outras classes são captados também em Você Nasceu pra Ser Grã-Fina. Nessa composição Laurindo de Almeida zomba de uma madame que queria aprender samba, sem voz, sem ritmo, nem nada que a credenciasse a tanto: “se compenetre/ que o samba é alta bossa/ e é pra nego de choça/ que não fala o inglês”. Na mesma linha, na outra face desse disco de 1939, o mesmo autor retratava um Mulato Antimetropolitano “que não gosta da cidade”, “dispensa o cinema/ e neres (nada) de fox-trot/ é do samba-canção/ (…) e hoje ele vive no morro/ onde há samba pra cachorro/ e o povo é mais igual”.
Embora esses exemplos deixem claro que o discurso musical dos sambistas não atingira um grau de uniformidade plena, não há, contudo, como descartar que o tom preponderante apontava para uma relativa comunhão de classes em volta do samba. Quanto a isso, torno a insistir num ponto que me parece crucial. O samba, ao extrapolar os territórios e os grupos sociais de onde se originou, era motivo de orgulho para os sambistas. Numa palavra, ele atuava como fator de afirmação social e identificação sócio-cultural de grupos e classes sociais normalmente marginalizados na esfera da circulação dos bens simbólicos. Eles assistiam, com justa satisfação, à transformação, seja lá como for, da obra brotada do seu talento em símbolo de “brasilidade”.
Custódio Mesquita soube interpretar como poucos esse sentimento que tomava conta dos construtores do samba em geral, aqui incluída a parcela das classes médias que ele próprio exprimia. Sua composição Doutor em Samba, de 1933, é por si só eloqüente, não fora ainda a interpretação do mestre do canto-falado, Mário Reis, bem como a participação primorosa dos Diabos do Céu no acompanhamento:
Sou doutor em samba/ Quero ter o meu anel/ Tenho esse direito/ Como qualquer bacharel// Vou cantar a vida inteira/ Para meu samba vencer/ É a causa brasileira/ Que eu quero defender// Só o samba me interessa/ E me traz animação/ Quero o meu anel depressa/ Pra seguir a profissão.
O protético Assis Valente, outro doutor não-doutor, manifestava igualmente o sentimento de superioridade dos sambistas na arte de criar música popular. Os termos eram praticamente equivalentes. No clássico Minha Embaixada Chegou, de 1934, ele recordava que “não tem doutores na favela/ mas na favela tem doutores/ o professor se chama bamba/ medicina na macumba/ cirurgia lá é samba”.
Paralelamente, do próprio solo do samba floresceriam mediadores políticos e culturais, dentre os quais Paulo da Portela talvez seja o mais emblemático. Homem de fácil acesso junto à imprensa, constantemente em contato com as autoridades, funcionou como traço de união entre grupos e classes sociais distintos, contribuindo, à sua maneira, para a maior aceitação do samba. Como frisa Sérgio Cabral, “a sua luta consistia em tirar as escolas (de samba) da marginalidade e que não fossem mais olhadas como antro de malandros e desordeiros”. Nesse particular certamente haveria um amplo campo de entendimento entre o mundo do samba e o “grand-monde”. E o Estado brasileiro não tinha por que não aplaudir iniciativas do gênero.
Do mesmo modo, soavam, em mais de um sentido, como música, aos ouvidos das classes dominantes e dos governantes, palavras como as do ex-capoeirista Heitor dos Prazeres em favor da regeneração do malandro. É “doloroso”, “vergonhoso”, “não é negócio ser malandro”, pregava ele em Vou Ver Se Posso, enquanto expressava a confiança de que, com trabalho, tudo mudaria. Como quem se demite da malandragem, anunciava em 1934: “eu vou deixar esta vida de vadio/ ser malandro hoje é malhar em ferro frio”. E ainda estávamos um tanto quanto distantes da cruzada antimalandragem promovida pelo “Estado Novo”, quando, em nome da unidade nacional, todos foram convocados, para dizer o mínimo, a engrossar as fileiras do exército da produção em prol do “progresso nacional”.
V. Os sambas da minha terra: cenas dos próximos capítulos
O(s) território(s) do(s) samba(s) permanecerá (ão) em aberto, dotado(s) de fronteiras móveis, nele(s) tendo lugar sempre novos “rounds” das “lutas de representações”. Basta recordar que, no momento em que a Bossa Nova, a partir do final dos anos 50, avança o sinal e dilata o universo do samba, inúmeras foram as reações de indignação das forças sociais esteticamente mais conservadoras, deflagrando-se um debate musical em escala jamais vista neste país.
No período a que me restringi nesta comunicação, a vigência do “Estado Novo” e a relação especial que ele estabeleceu com a música popular constituem tema do maior interesse para a análise dos canais institucionais de comunicação que se criaram entre as agências estatais e a produção/difusão do samba. Deliberadamente, no entanto, pus de lado o enfrentamento dessa questão. Primeiro porque, premido por razões de espaço, não teria como desenvolver o assunto nas diferentes perspectivas que ele requer. E também porque pretendo fazê-lo na continuação deste trabalho. Para abrandar, ao menos parcialmente, a frustração sentida por não poder, aqui, ir além de uns tantos limites, contento-me em apontar, muito por alto, sem maiores preocupações de natureza documental, alguns aspectos do processo de nacionalização do samba que ficam pendentes de aprofundamento.
O Estado, desde meados dos anos 30, já começava a emitir claros sinais de aproximação com a área da música popular. A oficialização do desfile de carnaval pela Prefeitura do Distrito Federal, em 1935, é um indicador disso. Com a instauração do “Estado Novo”, o ditador Getúlio Vargas, em pessoa, passou a manter, de tempos em tempos, contato direto com os “cartazes” da música popular brasileira. Realizaram-se apresentações públicas de artistas nacionais em eventos muito badalados, como o Dia da Música Popular e a Noite da Música Popular. O Teatro Municipal, na presença do alto escalão do Governo Federal, abriu suas portas ao samba. Cantores renomados chegaram inclusive a integrar a comitiva presidencial em viagem a países latino-americanos.
Simultaneamente, transmissões radiofônicas oficiais, destinadas ao público estrangeiro, se incumbiam de levar o samba, identificado como produto genuinamente brasileiro, a outros pontos do planeta. Um desses programas foi irradiado para a Alemanha nazista diretamente do terreiro da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Por outro lado, estava em curso a ardilosa política de boa vizinhança do governo norte-americano, que favorecia, até certo ponto, as trocas culturais entre as nações latino-americanas e o “grande irmão do norte”, o que, de uma forma ou de outra, resultou em alguma abertura de mercado para o samba e um punhado de sambistas.
O samba, que já chegara igualmente aos cassinos e às telas de cinema, conhecerá, então, sob o “Estado Novo”, o momento de consolidação da sua afirmação como símbolo musical nacional. Despido, pelo menos na versão oficial, dos pecados de origem que o mantiveram afastado dos lugares respeitáveis, ele ganhava terreno. Não por acaso, este será o período do florescimento de uma grande safra de sambas cívicos, os chamados “sambas-exaltação”, dentre os quais sobressairá Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, como exemplo mais bem acabado. Essa composição exalava o espírito oficial da época, mesmo sem conter, é bom que se diga, qualquer referência ao regime estado-novista.
Com um ar grandiloqüente, próprio de quem transporta para o campo da música popular a “estética monumental”, essa fornada de “sambas-exaltação” recorrerá a clichês do ufanismo tupiniquim. Da exaltação à natureza se passará, sem nenhuma dificuldade aparente, à exaltação mais ou menos explícita da vida política brasileira (subentenda-se, do regime político vigente). Tal é o caso de Brasil! (de Benedito Lacerda e Aldo Cabral) ou ainda de Brasil, Usina do Mundo (de João de Barro e Alcir Pires Vermelho), samba que nos coloca diante de trabalhadores cantando felizes, cúmplices ou, mais do que isso, parceiros dos novos tempos simbolizados pelo “Estado Novo”.
O “nacionalismo espontâneo” originário de compositores de extração popular e/ou de classe média, que se orgulhavam da sua condição de criadores do samba, era, portanto, ressignificado, em sintonia com a política cultural estado-novista. Ao mesmo tempo, os temas da mestiçagem e da conciliação de classes eram retrabalhados pelos ideólogos do regime, tendo em vista o enaltecimento da “democracia racial” e da “democracia social” supostamente existentes no país.
Nem tudo, porém, acontecia ao sabor dos desejos dos governantes ou dos defensores do “Estado Novo”. O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) procurava, seja através de políticas de aliciamento, seja através da mão de ferro da censura, coagir compositores renitentes a abandonarem a temática da malandragem nos seus sambas. Daí decorreu, basicamente, o aparecimento de um número apreciável de sambas de exaltação ao trabalho, de autoria até de malandros escolados, como Wilson Batista (o caso mais notório é o de O Bonde de São Januário, sucesso do carnaval de 1941). Entretanto, nem com os meios draconianos a seu dispor o “Estado Novo” logrou silenciar e/ou cooptar por completo os compositores. Multiplicaram-se às dezenas as composições que, de uma ou de outra maneira, driblavam e/ou contornavam o poder censório ditatorial. Uma obra exemplar, nesse sentido, é Recenseamento, de Assis Valente, que, parecendo reproduzir o discurso do “Brasil grande e trabalhador”, desmonta com sutileza os argumentos oficiais, salpicando de ironia a fala da mulher que responde ao funcionário público que a interpela.
Sob esse prisma pode-se dizer que, na verdade, são muitos os sambas da minha terra, até sob a ditadura estado-novista. Em momento algum se conseguiu alcançar um tal nível de uniformidade na produção do samba que calasse as divergências, inclusive as estilísticas. Aliás, nem sequer no interior dos aparelhos de Estado se corporificou um pensamento único, monolítico, acerca do significado do samba. As contradições e conflitos típicos das lutas de representações afloraram aí também.
Na falta de um projeto cultural hegemônico, diferentes propostas de disciplinarização das manifestações artísticas de origem popular terminaram por emergir. Pondo à mostra seu ranço profundamente elitista, um grupo de intelectuais ligados ao Estado deu vazão à sua repulsa ao samba em artigos publicados na revista Cultura Política. Nivelando-o a expressões artísticas primitivas, ao desregramento da sensualidade, à batucada da ralé do morro, eles o elegeram como objeto de uma campanha movida por propósitos “educativos” e “civilizadores”. Tratava-se não de abatê-lo – objetivo que reconheciam ser impossível –, mas, sim, de domá-lo.
As disputas iriam se acirrar na própria área da produção do(s) samba(s). De novo a mobilidade de fronteiras do samba se evidenciava. E ele começava, aos poucos, a enveredar, uma vez mais, por territórios inexplorados, como prelúdio de outros tempos que estariam por vir, cenas dos próximos capítulos que desembocariam na Bossa Nova. Sob a rubrica de samba-swing – que por si mesma anunciava a presença e a assimilação de elementos musicais norte-americanos – um compositor como Janet de Almeida trazia o futuro para o presente. Pesadelo (dele e de Leo Vilar), gravado em 1943 pelos Anjos do Inferno, é rico em dissonâncias e recortes harmônicos pouco usuais no Brasil. Daí ao samba Boogie-Woogie na Favela (de Denis Brean, pseudônimo de Augusto Duarte Ribeiro), de 1945, havia um curto caminho a ser vencido. Apesar da reação que, em honra às tradições nacionais, insistia em se manifestar por meio de Boogie-Woogie Não é Samba (de Hélio Sindô).
Acima das disputas, pairando sobre as suas diferentes pronúncias, o samba seguia sua(s) trilha(s), já consolidado como símbolo da nacionalidade. Expressão cultural plural, ele era glorificado como portador da nossa singularidade musical. E o samba soava como algo tão natural, tão entranhadamente brasileiro, que, em 1940, Dorival Caymmi, já proclamara em Samba da Minha Terra : “quem não gosta de samba/ bom sujeito não é/ é ruim da cabeça/ ou doente do pé”.
DISCOGRAFIA CITADA
Abandona o Preconceito (Maércio de Azevedo e Francisco Matoso), Bando da Lua, g.: 25/10/34, l.: mar/35, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Samba da Minha Terra”, Revivendo, s/d.
Adeus (Ismael Silva, Noel Rosa e Francisco Alves), Jonjoca e Castro Barbosa, g.: 12/04/32, l.: mai/32, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Noel Rosa: Coisas Nossas”, Revivendo, s/d.
Agora É Cinza (Bide e Marçal), Mário Reis, g.: 25/10/33, l.: dez/33, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Os Grandes Sambas da História” (GSH), nº 3, Globo/BMG, 1997.
Ai, Ioiô (Iaiá) (Henrique Vogeler, Luiz Peixoto e Marques Porto), Araci Cortes, l.: mar/29, 78 rpm, Parlophon. Rel.: caixa (cx.) “Apoteose do Samba”, vol. 1, CD nº 1, Emi, 1997.
Alegria (Assis Valente e Durval Maia), Orlando Silva, g.: 26/07/37, l.: dez/37, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “O Cantor das Multidões”, CD nº 2, RCA/BMG, 1995.
Ao Voltar do Samba (Sinval Silva), Carmen Miranda, g.: 26/03/34, l.: ago/34, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “Carmen Miranda” (C.M.), CD nº 3, RCA/BMG, 1998.
Aquarela do Brasil (Ari Barroso), Francisco Alves, g.: 18/08/39, l.: out/39, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “Apoteose do Samba”, vol. I, CD nº 2, Emi, 1997.
Bonde de São Januário, O (Ataulfo Alves e Wilson Batista), Ciro Monteiro, g.: 18/10/40, l.: dez/40, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “GSH”, nº 10, Globo/BMG, 1997.
Boogie-Woogie na Favela (Denis Brean), Ciro Monteiro, g.: 03/05/45, l.: jul/45, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Sambistas de Fato”, Revivendo, s/d.
Boogie-Woogie Não É Samba (Hélio Sindô), Hélio Sindô, g.: 10/05/45, l.: jun/46, 78 rpm, Continental.
Brasil! (Benedito Lacerda e Aldo Cabral), Francisco Alves e Dalva de Oliveira, g.: 16/08/39, l.: set/39, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: LP “Os Rouxinóis”, Revivendo, s/d.
Brasil Pandeiro (Assis Valente), Anjos do Inferno, g.: 26/02/41, l.: abr/41, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: CD “Samba da Minha Terra”, Revivendo, s/d.
Brasil, Usina do Mundo (João de Barro e Alcir Pires Vermelho), Déo, l.: set/1942, 78 rpm, Colúmbia. Reg.: Rogério Duprat, LP “Brasil com ‘S’”, Emi, 1974.
Brigamos Outra Vez (José Maria de Abreu e Jair Amorin), Orlando Silva, g.: 24/07/45, l.: set/45, 78 rpm, Odeon. Rel.: LP “Poema Imortal”, Revivendo, 1989.
Cabaré no Morro (Herivelto Martins), Carmen Miranda, g.: 20/07/37, l.: set/37, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 3, Emi, 1996.
Camisa Listada (Assis Valente), Carmen Miranda, g.: 20/09/37, l.: nov/37, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 3, Emi, 1996.
Canção para Inglês Ver (Lamartine Babo), Lamartine Babo, g.: 1931, 78 rpm, Odeon. Reg.: Joel e Gaúcho, LP de 1962; rel.: fascículo (fasc.) “Lamartine Babo”, História da Música Popular Brasileira (HMPB), Abril Cultural, 1982.
Coisas Nossas (Noel Rosa), Noel Rosa, l.: mar/32, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: CD “Noel Rosa: Coisas Nossas”, Revivendo, s/d.
Confissão de Malandro (Gilberto Martins), Moreira da Silva, g.: 20/06/33, l.: jul/34, 78 rpm, Victor. Rel.: LP “Quem É o Tal?”, Revivendo, 1989.
Conversa Fiada (Wilson Batista), Roberto Paiva, LP “Polêmica”, Odeon, 1956.
Dá Cá o Pé… Loura (Lamartine Babo e Alcir Pires Vermelho), Lamartine Babo, g.: 10/11/33, l.: jan/34, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “O Carnaval de Lamartine Babo – Sua História, Sua Glória”, vol. 13, Revivendo, s/d.
Doutor em Samba (Custódio Mesquita), Mário Reis, g.: 06/11/33, l.: dez/33, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “GSH”, nº 4, Globo/BMG, 1997.
É Batucada (Caninha e Visconde de Bicoíba), Moreira da Silva, l.: mar/33, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: CD “GSH”, nº 6, Globo/BMG, 1997.
É do Barulho (Assis Valente e Zequinha Reis), Bando da Lua, g.: 23/01/35, l.: mar/35, 78 rpm, Victor. Rel.: LP “Cadê Vira-Mundo”, Revivendo, 1989.
Em Cima da Hora (Russo do Pandeiro e Walfrido Silva), João Petra de Barros, g.: 23/11/39, l.: jan/40, 78 rpm, Victor. Rel.: LP “Tenho Prazer”, Revivendo, 1989.
Escola de Malandro (Noel Rosa, Ismael Silva e Orlando Luiz Machado), Noel Rosa e Ismael Silva, g.: 15/09/32, l.: 1932, 78 rpm, Odeon.
Estátua da Paciência (Jerônimo Cabral e Noel Rosa), Conjunto Coisas Nossas, LP de 1983, Eldorado. Rel.: CD “Noel Rosa Inédito e Desconhecido”, Eldorado, s/d.
Eu Gosto da Minha Terra (Randoval Montenegro), Carmen Miranda, g.: 06/08/30, l.: dez/30, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 1, RCA/BMG, 1998.
Eu, Você e Mais Ninguém (José Maria de Abreu e Saint-Clair Sena), Francisco Alves, g.: 02/04/42, l.: mai/42, 78 rpm, Odeon. Rel.: LP “Quando a Saudade Vier”, Revivendo, 1990.
Favela (Roberto Martins e Waldemar Silva), Francisco Alves, g.: 20/04/36, l.: jun/36, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “O Rei da Voz”, CD nº 3, RCA/BMG, 1997.
Feitiço da Vila (Vadico e Noel Rosa), João Petra de Barros, g.: 22/10/34, l.: dez/34, 78 rpm, Odeon. Reg.: Ivan Lins e Nana Caymmi, “Vivanoel Lins – Tributo a Noel Rosa”, CD nº 2, Velas, 1997.
Feitio de Oração (Vadico e Noel Rosa), Francisco Alves e Castro Barbosa, g.: 07/07/33, l.: ago/33, 78 rpm, Odeon. Rel.: CD “Noel Rosa: Feitiço da Vila”, Revivendo, s/d.
Flor do Asfalto (J. Tomás e Orestes Barbosa), Castro Barbosa, g.: 30/10/31, l.: dez/31, 78 rpm, Victor.
Gavião Calçudo (Pixinguinha), Patrício Teixeira, l.: mar/29, 78 rpm, Parlophon. Rel.: CD “Quando o Samba Acabou”, Revivendo, s/d.
Good-bye (Assis Valente), Carmen Miranda, g.: 29/11/32, l.: jan/33, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 1, RCA/BMG, 1998.
Hino do Carnaval Brasileiro (Lamartine Babo), Almirante, g.: 08/12/38, l.: jan/39, 78 rpm, Odeon. Rel.: fasc. “Lamartine Babo”, HMPB, Abril Cultural, 1982.
Isso Não Se Atura (Assis Valente), Carmen Miranda, g.: 26/06/35, l.: jul/35, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 1, Emi, 1996.
Isto Aqui O Que é (Ari Barroso), Moraes Neto, g.: 04/12/41, l.: fev/42, 78 rpm, Odeon. Rel.: LP “Quando a Saudade Vier”, Revivendo, 1990.
Juramento Falso (J. Cascata e Leonel Azevedo), Orlando Silva, g.: 15/03/37, l.: mar/37, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “O Cantor das Multidões”, CD nº 1, RCA/BMG, 1995.
Lalá e Lelé (Jaime Brito e Manezinho Araújo), Luiz Barbosa, g.: 20/04/37, l.: jun/37, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Gosto que Me Enrosco”, Revivendo, s/d.
Lenço no Pescoço (Wilson Batista), Sílvio Caldas, g.: 18/07/33, l.: out/33, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “GSH”, nº 10, Globo/BMG, 1997.
Linda Morena (Lamartine Babo), Mário Reis e Lamartine Babo, g.: 26/12/32, l.: fev/33, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “O Carnaval de Lamartine Babo – Sua História, Sua Glória”, vol. 13, Revivendo, s/d.
Minha Embaixada Chegou (Assis Valente), Carmen Miranda, g.: 28/09/34, l.: nov/34, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 3, RCA/BMG, 1998.
Morena Boca de Ouro (Ari Barroso), Sílvio Caldas, g.: 04/07/41, l.: set/41, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “GSH”, nº 11, Globo/BMG, 1997.
Mulato Antimetropolitano (Laurindo de Almeida), Carmen Miranda, g.: 05/04/39, l.: nov/39, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 5, Emi, 1996.
Mulher (Custódio Mesquita e Sadi Cabral), Sílvio Caldas, g.: 24/01/40, l.: mar/40, 78 rpm, Victor. Rel.: fasc. “Custódio Mesquita”, Nova História da Música Popular Brasileira (NHMPB), Abril Cultural, 1977.
Nada Além (Custódio Mesquita e Mário Lago), Orlando Silva, g.: 11/05/38, l.: jul/38, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “O Cantor das Multidões”, CD nº 2, RCA/BMG, 1995.
Não Tem Tradução (Noel Rosa), Francisco Alves, g.: 23/08/33, l.: set/33, 78 rpm, Odeon. Reg.: João Nogueira, CD “Songbook Noel”, Lumiar, 1991.
Nego no Samba, O (Ari Barroso, Luiz Peixoto e Marques Porto), Carmen Miranda, g.: 14/12/29, l.: mai/30, 78 rpm, Victor. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 1, RCA/BMG, 1998.
Novo Amor (Ismael Silva), Mário Reis, g.: 27/02/29, l.: abr/29, 78 rpm, Odeon. Rel.: CD “Gosto que Me Enrosco”, Revivendo, s/d.
Oui… Oui… (Floriano Pinho), Sônia Carvalho, g.: provavelmente 1937, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: LP “Jóias da Nossa Música”, Revivendo, 1988.
Palpite Infeliz (Noel Rosa), Araci de Almeida, g.: 17/12/35, l.: jan/36, 78 rpm, Victor. Rel.: fasc. “Noel Rosa”, HMPB, Abril Cultural, 1970.
Pesadelo (Janet de Almeida e Léo Vilar), Anjos do Inferno, g.: 25/03/43, l.: abr/43, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: LP “Anjos do Inferno”, Revivendo, 1988.
Por Ti Eu Me Rasgo Todo (Francisco Canaro, versão de Oswaldo Santiago), Orlando Silva, g.: 24/07/39, l.: out/39, 78 rpm, Victor.
Pra Que Discutir com Madame? (Janet de Almeida e Haroldo Barbosa), Janet de Almeida, l.: out/45, 78 rpm, Continental. Reg.: João Gilberto, CD “Live at the 19th Montreux Jazz Festival”, g.: 18/07/85, WB, 1991.
Quando o Samba Acabou (Noel Rosa), Mário Reis, g.: 11/04/33, l.: mai/33, 78 rpm, Odeon. Rel.: CD “Quando o Samba Acabou”, Revivendo, s/d.
Que Será de Mim, O (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves), Francisco Alves e Mário Reis, g.: 28/02/31, l.: abr/31, 78 rpm, Odeon. Rel.: CD “GSH”, nº 18, 1998.
Quem Condena a Batucada (Nelson Petersen), Carmen Miranda, g.: 01/08/38, l.: set/38, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 4, Emi, 1996.
Quem Dá Mais? (Noel Rosa), Noel Rosa, g.: 02/07/32, l.: 1933, 78 rpm, Odeon. Rel.: CD “Noel Rosa: Feitiço da Vila”, Revivendo, s/d.
Rapaz Folgado (Noel Rosa), Araci de Almeida, g.: 28/04/38, l.: out/38, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Noel Rosa”, Revivendo, s/d.
Recenseamento (Assis Valente), Carmen Miranda, g.: 27/09/40, l.: dez/40, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 5, Emi, 1996.
Ritmo do Coração (Benedito Lacerda e Herivelto Martins), Alzirinha Camargo, g.: 15/10/36, l.: nov/36, 78 rpm, Odeon. Rel.: LP “Nós Somos as Cantoras do Rádio…”, Revivendo, 1990.
Sabor do Samba (Kid Pepe e Germano Agusto), Patrício Teixeira, g.: 23/10/34, l.: jul/35, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Quando o Samba Acabou”, Revivendo, s/d.
Sai da Toca, Brasil! (Joubert de Carvalho), Carmen Miranda, g.: 08/03/38, l.: jun/38, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 4, Emi, 1996.
Samba da Minha Terra (Dorival Caymmi) Bando da Lua, g.: 19/10/40, l.: nov/40, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: CD “Samba da Minha Terra”, Revivendo, s/d.
Samba de Fato (Pixinguinha e Baiano), Patrício Teixeira, g.: 06/07/32, l.: ago/32, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “GSH”, nº 6, Globo/BMG, 1997.
Sambista da Cinelândia (Custódio Mesquita e Mário Lago), Carmen Miranda, g.: 14/05/36, l.: ago/36, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 2, Emi, 1996.
Se a Sorte Me Ajudar (Noel Rosa e Germano Augusto), Aurora Miranda e João Petra de Barros, g.: 08/05/34, l.: jun/34, 78 rpm, Odeon.
Se Gostares de Batuque (Kid Pepe), Carmen Miranda, g.: 09/07/35, l.: ago/35, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 1, Emi, 1996.
Se o Samba É Moda (Josué de Barros), Carmen Miranda, g.: 2º sem/29, l.: jan/30, 78 rpm, Brunswick. Rel.: LP “Cartão de Visitas”, Revivendo, s/d.
Se Você Jurar (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves), Francisco Alves e Mário Reis, g.: 05/12/30, l.: jan/31, 78 rpm, Odeon. Rel.: fasc. “Ismael Silva”, HMPB, Abril Cultural, 1983.
Tarzan (O Filho do Alfaiate) (Vadico e Noel Rosa), Almirante, g.: 04/08/36, l.: set/36, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Noel Rosa: Coisas Nossas”, Revivendo, s/d.
Tem Francesa no Morro (Assis Valente), Araci Cortes, g.: 1932, 78 rpm, Colúmbia. Reg.: Araci Cortes e Rosa de Ouro, CD “Rosa de Ouro”, g.: 1967, Emi, 1993.
Tenho Prazer (Ataulfo Alves), Carlos Galhardo, g.: 01/06/33, l.: ago/36, 78 rpm, Victor. Rel.: LP “Tenho Prazer”, Revivendo, 1989.
Teu Cabelo Não Nega, O (Irmãos Valença e Lamartine Babo), Castro Barbosa, g.: 21/12/31, l.: jan/32, 78 rpm, Victor. Rel.: fasc. “Lamartine Babo”, HMPB, Abril Cultural, 1982.
Touradas em Madri (João de Barro e Alberto Ribeiro), Almirante, g.: 28/11/37, l.: jan/38, 78 rpm, Odeon. Rel.: fasc. “João de Barro e Alberto Ribeiro”, NHMPB, Abril Cultural, 1977.
Último Desejo (Noel Rosa) Araci de Almeida, g.: 01/07/37, l.: mar/38, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Noel Rosa”, Revivendo, s/d.
Verde e Amarelo (J. Tomás e Orestes Barbosa), Araci Cortes, l.: jun/32, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: LP “Grandes Cantoras”, Revivendo, s/d.
Vida É um Samba, A (Ivani Ribeiro e Sônia Carvalho), Sônia Carvalho, l.: provavelmente 1937, 78 rpm, Colúmbia. Rel.: LP “Jóias da Nossa Música”, Revivendo, 1988.
Você Nasceu pra Ser Grã-Fina (Laurindo de Almeida), Carmen Miranda, g.: 05/04/39, l.: nov/39, 78 rpm, Odeon. Rel.: cx. “C.M.”, CD nº 5, Emi, 1996.
Você Só… Mente (Hélio Rosa e Noel Rosa), Francisco Alves e Aurora Miranda, g.: 05/07/33, l.: ago/33, Odeon. Reg.: Grupo Rumo, LP “Rumo aos Antigos” (independente), 1982.
Vou Ver Se Posso (Heitor dos Prazeres), Mário Reis, g.: 11/05/34, l.: ago/34, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “GSH”, nº 20, Globo/BMG, 1998.
X do Problema, O (Noel Rosa), Araci de Almeida, g.: 09/09/36, l.: out/36, 78 rpm, Victor. Rel.: CD “Noel Rosa”, Revivendo, s/d.
Yes! Nós Temos Bananas… (João de Barro e Alberto Ribeiro), Almirante, g.: 04/11/37, l.: jan/38, 78 rpm, Odeon. Reg.: Caetano Veloso, LP de 1967, Philips; rel.: fasc. “João de Barro e Alberto Ribeiro”, NHMPB, Abril Cultural, 1977.
Notas
Adalberto Paranhos, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia, é autor, entre outros, do livro O Roubo da Fala: Origens da Ideologia do Trabalhismo no Brasil (São Paulo, Boitempo, 1999). Publicou diversos textos em coletâneas e revistas especializadas, dentre os quais o ensaio Novas Bossas e Velhos Argumentos: Tradição e Contemporaneidade na MPB (Uberlândia, História & Perspectivas, n.º 3, jul-dez/1990).
Este texto elaborado a partir de comunicação apresentada na mesa-redonda “Samba: História e Crítica”, durante o II Congreso Latinoamericano del IASPM (International Association for the Study of Popular Music), realizado em Santiago de Chile, entre 24 e 27 de março de 1997.
Para saciar a curiosidade de uns e outros, informo que em primeiro lugar apareceu o café, em terceiro, o futebol, e, em sexto, Pelé. V. “British public opinion and Latin America”, em The Guardian, Londres, 15/jun/1980.
V. Peter Fry, “Feijoada e soul food”, em Ensaios de Opinião, nº 2+2, Rio de Janeiro, Inúbia, 1977, Muniz Sodré, Samba: O Dono do Corpo, Rio de Janeiro, Codecri, 1979, e Ruben George Oliven, “A elaboração de símbolos nacionais na cultura brasileira”, em Revista de Antropologia, nº 26, São Paulo, USP, 1983.
V. Eder Sader e Maria Célia Paoli, “Sobre ‘classes populares’ no pensamento sociológico brasileiro (Notas de leitura sobre acontecimentos recentes)”, em Ruth Cardoso (org.), A Aventura Antropológica (Teoria e pesquisa), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
A construção histórica do conceito de “classes perigosas”, aplicado à realidade brasileira, e a sua equivalência prática às “classes populares”, como estratégia de dominação de classes, é sumariada por Sidney Chalhoub em Cidade Febril (Cortiços e epidemias na corte imperial), São Paulo, Companhia das Letras, 1996, ps. 19/29.
José Ramos Tinhorão, “Com pandeiro, cuíca, surdo e tamborim”, fascículo Samba de Terreiro e de Enredo, História da Música Popular Brasileira (HMPB), São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 5.
Noutro contexto, esse autor observa que a “investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação”. Roger Chartier, A História Cultural (Entre práticas e representações), Rio de Janeiro, Difel/Bertrand Brasil, 1988, p. 17.
Sobre a crítica de Sinhô e Donga aos “modernismos” no samba, v. Sérgio Cabral, “Falando de samba e de bambas”, fasc. Bide, Marçal & Paulo da Portela, HMPB, ob. cit., 1984.
Dados mais completos sobre essas e todas as demais gravações mencionadas são encontrados – inclusive com uma atualização discográfica – no final deste texto. Esclareça-se que o cantor Francisco Alves era, sem dúvida, o mais notório “comprositor” do mercado, transformando as criações alheias literalmente em moeda corrente.
E.H. Gombrich, Arte e Ilusão (Um estudo da psicologia da representação pictórica), São Paulo, Martins Fontes, 3ª ed., 1995, p. 316.
A relação visceral que uniu, historicamente, o samba à malandragem está exposta em diversos trabalhos. V., dentre outros, Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr., “A malandragem e a formação da música popular brasileira”, em Boris Fausto (dir.), História Geral da Civilização Brasileira-III – O Brasil Republicano (Economia e Cultura – 1930/1964), São Paulo, Difel, 1984, e Maria Angela Borges Salvadori, Capoeiras e Malandros: Pedaços de uma Sonora Tradição Popular (1890-1950), Campinas, Unicamp, dissertação de mestrado, 1990, esp. cap. III.
A designação da batucada como gênero musical será expressiva especialmente na primeira metade dos anos 40, com certeza para desagrado dos que, à época, continuavam sustentando a necessidade da “regeneração social” do samba. Para essas e outras observações dessa natureza, foi extremamente importante a análise do material coligido por Alcino Santos, Gracio Barbalho, Jairo Severiano e M.A. de Azevedo (Nirez), em Discografia Brasileira 78 rpm – 1902-1964, Rio de Janeiro, Funarte, 1982, vols. 1, 2 e 3.
Cf. Sérgio Cabral, No Tempo de Almirante (Uma história do Rádio e da MPB), Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1990, p. 41.
Para um mapeamento musical da Vila Isabel da época, v. João Máximo e Carlos Didier, Noel Rosa (Uma biografia), Brasília, Linha Gráfica/UnB, 1990, cap. XV.
Palpite Infeliz foi a resposta que se seguiu a Conversa Fiada. Nesta composição, que permaneceu muito tempo inédita em disco, Wilson Batista batia duro em Feitiço da Vila, de Noel.
É interessante atentar para o fato de que Noel, moço “lá da cidade”, se coloca, aqui, numa posição de distanciamento em relação à “cidade”.
Tomo emprestado de Vovelle o conceito de “mediador cultural”, por ele utilizado ao se referir aos desafios que perpassam as relações entre “cultura de elite” e “cultura popular”. Sobre os “intermediários culturais”, v. Michel Vovelle, Ideologias e Mentalidades, São Paulo, Brasiliense, 2ª ed., 1991, ps. 207-224.
Sobre sua inusitada experiência vivida, circulando por morros e subúrbios, v. J. Máximo e C. Didier, ob. cit., cap. XVI.
V. Marcos A. da Silva, “A História e seus limites”, em História & Perspectivas, nº 6, Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, jan-jun/1992. Preocupado em capturar experiências vividas, o autor trabalha com o conceito de “transregional” para superar limites tradicionais da História Regional, que a confinam a espaços previamente demarcados com base em divisões de caráter institucional ou político-administrativo.
Inflexões diferenciadas estão presentes inclusive no “samba carioca”, que também não pode ser encarado como uma forma que uniformiza todos os seus produtos. Não admitir isso seria ignorar que o samba comporta várias vertentes.
As tensões entre “cidade” e morro persistiam, todavia. Em Sambista da Cinelândia se conclamava o sambista de morro a descer até a cidade e se anunciava o fim da oposição entre eles. Já em Cabaré no Morro, de 1937, com a mesma Carmen Miranda, o compositor branco Herivelto Martins fala de uma personagem nascida no morro, criada na orgia e que rompe com a malandragem, ao se dar conta de que “essa gente não tem civilização“.
Para uma visão mais detalhada sobre o advento da música americana no Brasil, v. José Ramos Tinhorão, História Social da Música Popular Brasileira, Lisboa, Caminho, 1990, ps. 195/203.
J. Máximo e C. Didier, ob. cit., p. 242.
Mário de Andrade, Macunaíma, São Paulo, Círculo do Livro, s/d (ed. orig.: 1928), p.115.
Modernismo e música popular se comunicavam inclusive por vias oblíquas. Como já foi muito bem salientado, em contraposição à “estética monumental”, presente na materialização do projeto musical modernista, “a música popular passa a se reger pela pauta da simplicidade. Quanto a este aspecto, os músicos populares, ainda que de maneira intuitiva, se mostram mais próximos do modernismo literário de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e de Manuel Bandeira, do que Villa-Lobos, a maior expressão do modernismo musical”. Santuza Cambraia Naves Ribeiro, “Modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila!: a cidade fragmentada de Noel Rosa”, em Estudos Históricos, vol. 8, nº 16, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1995, ps. 253 e 254.
A transcrição, na íntegra, desse documento aparece em Sérgio Cabral, Pixinguinha (Vida e obra), Rio de Janeiro, Lumiar, 1997 (2ª ed.), ps. 138 e 139, de onde foram extraídas as citações acima.
O samba era líder não apenas em número de gravações como em aceitação popular. Quanto aos sucessos desse período, v. Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, A Canção no Tempo (85 anos de músicas brasileiras. Vol. 1: 1901-1957), São Paulo, 34, 1997, 3ª pte. (1929/1945).
É preciso ressaltar, no entanto, que os registros encontrados nas etiquetas dos discos acabam, de alguma forma, por subestimar o peso do samba-canção no conjunto da produção fonográfica nacional. Em primeiro lugar, porque são por vezes bastante tênues as linhas divisórias entre o samba e o samba-canção; este, na realidade, configura uma das vertentes do samba (lembremo-nos de que, ainda sem o andamento mais lento de gravações posteriores que a transformaram em samba-canção, Feitio de Oração é, originalmente, classificada como samba). Em segundo lugar, porque havia uma certa tendência em rotular como “samba” até aquilo que era mais propriamente samba-canção (basta ouvir, dentre muitos exemplos disponíveis, Juramento Falso: da composição de J. Cascata e Leonel Azevedo à interpretação de Orlando Silva e ao acompanhamento da Orquestra Victor Brasileira, dirigida por Radamés Gnattali, tudo sugere o seu enquadramento como samba-canção. Do disco, porém, consta a identificação como “samba”).
Citado por J. Máximo e C. Didier, ob. cit., p. 244.
Na primeira metade dos anos 40 a brasileira Leny Eversong (nascida Hilda Campos Soares da Silva) começará a gravar como crooner de Anthony Sergi (Totó) e sua Orquestra Colúmbia ou em discos-solo, e se sucederão igualmente as gravações de The Midnighters, grupo instrumental liderado por Zacarias, cujo crooner era Nilo Sérgio, que desenvolveria sua carreira-solo em disco a partir de 1945. Ambos cantavam em inglês, fosse “fox-trot” ou simplesmente “fox”. Data dessa época ainda a gravação do que se poderia chamar de “fox-símiles”, caso de canções musicalmente bem elaboradas de José Maria de Abreu, como o fox-canção Brigamos Outra Vez (com acompanhamento de Fon-Fon e sua Orquestra, criando uma sonoridade à la EUA, ao promover o feliz casamento entre o naipe de instrumentos de sopro e de cordas) e o fox Eu, Você e Mais Ninguém (com acompanhamento ao piano de Carolina Cardoso de Menezes e seu Quarteto, numa demonstração de pleno domínio da linguagem musical norte-americana).
Mais uma vez, há, aqui, uma subestimação do samba-canção pelas razões já expostas. A propósito, mantive-me fiel ao quadro de canções de Noel Rosa que J. Máximo e C. Didier apresentam nas ps. 497/516 de seu livro. Passei, deliberadamente, por cima de pequenas incorreções (estatisticamente insignificantes), tais como o enquadramento de Último Desejo como “samba”, quando, na verdade, o que se lê no disco original é “samba-canção”, por sinal classificação mais de acordo com o estilo dessa composição.
V. Affonso Romano de Sant’Anna, Música Popular e Moderna Poesia Brasileira, Petrópolis, Vozes, 3ª ed., 1986, esp. itens “As origens do samba, Noel Rosa e o modernismo” e “Ufanismo de Ari Barroso e o verde-amarelismo de Cassiano Ricardo” (citação da p. 179).
A primeira parte da composição evoca, sintomaticamente, Peri e Ceci, personagens saídos da literatura romântica do século passado, que exaltava os índios como fatores essenciais de sensibilização patriótica: “eu fui às touradas em Madri/ pa-ra-ra-tchim-bum-bum-bum/ pa-ra-ra-tchim-bum-bum/ e quase não volto mais aqui-i-i/ pra ver Peri-i-i/ beijar Ceci”.
Importa destacar, entretanto, que, lado a lado com a repressão, havia também a valorização e/ou assimilação de manifestações culturais das classes populares por uma parcela de membros das elites intelectuais e das classes dominantes. Este é, por sinal, o fio condutor do livro no qual Hermano Vianna mostra por que “a transformação do samba em música nacional não foi um acontecimento repentino, indo da repressão à louvação em menos de uma década, mas sim o coroamento de uma tradição secular de contatos (…) entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras”. Hermano Vianna, O Mistério do Samba, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, UFRJ, 2ª ed., 1995, p. 34.
V. Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, Rio de Janeiro, José Olympio, 1933. Ao passar em revista o debate sobre o assunto, Lilia Schwarcz ressalta que no Brasil, “sobretudo a partir do final dos anos 20, os modelos raciais de análise começam a passar por uma severa crítica, à semelhança do que já acontecera em outros contextos intelectuais”. E lembra o importante papel desempenhado pela escola culturalista norte-americana, principalmente por Franz Boas, na implosão dos equívocos do determinismo racial. Lilia Katri Moritz Schwarcz, “Complexo de Zé Carioca (Notas sobre uma identidade mestiça e malandra)”, em Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, São Paulo, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, out/1995, p. 54.
Para uma análise sobre a “ideologia de Estado” em movimento, à época do “Estado Novo”, v. Adalberto Paranhos, “O coro da unanimidade nacional: o culto ao ‘Estado Novo’”, em Revista de Sociologia e Política, nº 9, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 1997.
Cassiano Ricardo, Marcha para Oeste, Rio de Janeiro, José Olympio, 1940, ps. 501 e 500.
Citado por Sérgio Cabral, A MPB na Era do Rádio, São Paulo, Moderna, 1996, p. 55.Idem, p. 71. Essa polêmica é reproduzida nas ps. 70/72.
Que não se pense que malandro, naquele momento, tinha um sentido unívoco. Pelo contrário, é possível capturar – seja entre os contemporâneos daquela década fundamental no processo de criação do samba, seja nas interpretações posteriores dos analistas – variadas e contraditórias acepções acerca do que era ser malandro. Quanto a estes, v., por exemplo, José Ramos Tinhorão, Música Popular – Do Gramofone ao Rádio e TV, São Paulo, Ática, 1981, ps. 128/134, J. Máximo e C. Didier, ob. cit., esp. ps. 289/295, M.A.B. Salvadori, ob. cit., esp. ps. 189/192, e G. Vasconcellos e M. Suzuki, ob. cit., esp. ps. 511/514 e 520/523.
Citado por S. Cabral, A MPB na Era do Rádio, ob. cit., p. 42.
Almirante, No Tempo de Noel Rosa, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2ª ed., 1977, p. 146. Sobre os desdobramentos da polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa, v. J. Máximo e C. Didier, ob. cit., ps. 291/292, 371/372 e 421/422, ou ainda S. Cabral, A MPB na Era do Rádio, ob. cit., ps. 42/46.
Para a crítica a essas interpretações consideradas simplistas, bem como a versão pessoal de João Máximo e Carlos Didier sobre a inesperada reação de Noel, v. ob. cit., ps. 291/292.
Em certos casos, para dançar à vontade, era preciso também dançar conforme a música. Recordo, a propósito, que o bloco Deixa Falar, do Estácio, se transformou formalmente em escola de samba, em 1928, para, com sua legalização, gozar de uns tantos direitos e afastar do caminho dos sambistas a perseguição policial. Do mesmo modo, Paulo da Portela (um hábil negociador) e outros mais foram constrangidos, em 1934, a aceitar a “sugestão” policial para a alteração do nome da Escola de Samba Vai como Pode, que passou a denominar-se, pomposamente, Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. V. Sérgio Cabral, As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Lumiar, 1996, ps. 41 e 95.
Embora composta, ao que tudo indica, um ano antes, A Vida É um Samba (de Ivani Ribeiro e Sônia Carvalho) já criticava os que continuavam agarrados a velhos preconceitos: “samba, tu és um grito de orgulho de uma raça/ (…) lá na cidade/ a sociedade por vaidade/ não samba o samba/ com vergonha de sambar/ e dança a rumba/ que é produto estrangeiro/ mas o samba é brasileiro/ e o povo deve sambar”.
Hermano Vianna, ob. cit., p. 130.
Sobre a greve que tirou do ar, em julho de 1933, as cinco emissoras cariocas, v. S. Cabral, A MPB na Era do Rádio, ps. 41 e 42.
V. José Miguel Wisnik, “Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo)”, em Enio Squeff e José Miguel Wisnik, O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira – Música, São Paulo, Brasiliense, 2ª ed., 1983, esp. ps. 178/190, e Arnaldo Daraya Contier, Brasil Novo. Música, Nação e Modernidade: Os Anos 20 e 30, São Paulo, USP, tese de livre-docência, 1988, esp. cap. III.
Francisco Campos, O Estado Nacional (Sua estrutura – seu conteúdo ideológico), Rio de Janeiro, José Olympio, 1940, p. 62.
José Ramos Tinhorão, História Social da Música Popular Brasileira, ob. cit., p. 234.
Hermano Vianna, ob. cit., p. 151.
Nos belos versos dessa música, o craque Assis Valente retomava o sentido lúdico da prática do samba/batucada: “vem vadiar no meu cordão/ cai na folia, meu amor/ vem esquecer tua tristeza/ mentindo a natureza/ sorrindo a tua dor”.
Sérgio Cabral, “Falando de samba e de bambas”, ob. cit., p. 2.
A temática da regeneração/abandono da malandragem aparecia, sob formas variadas, também em outras composições. V., por exemplo, Tenho Prazer (de Ataulfo Alves), de 1933.
Isso é discutido por mim em Adalberto Paranhos, “Novas bossas e velhos argumentos (Tradição e contemporaneidade na MPB)”, em História & Perspectivas, nº 3, Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, jul-dez/1990.
Os trabalhadores figuravam nos cálculos governamentais como peças da estratégia que objetivava reduzir o impacto das lutas de classe e subordiná-los aos projetos de desenvolvimento capitalista em vigor. V. Adalberto Paranhos, O Roubo da Fala: Origens da Ideologia do Trabalhismo no Brasil, São Paulo, Boitempo, 1999.
Este é, por sinal, o tema do trabalho a que venho me dedicando atualmente.
V. A.D. Contier, ob. cit., esp. ps. 300/312.
Cultura Política, editada pelo DIP entre 1941 e 1945, acolhia sistematicamente em suas seções artigos sobre música e radiodifusão.
Está longe de ser mera coincidência sua “redescoberta”, várias décadas depois, exatamente pela figura-símbolo da Bossa Nova, João Gilberto, que regravará músicas como Pra Que Discutir com Madame. Nessa composição de 1945, Janet de Almeida e Haroldo Barbosa ainda se vêem obrigados a responder, com bom-humor, às críticas azedas endereçadas aos sambistas por Mag (que atendia pelo nome de Magdala da Gama Oliveira), crítica de rádio do “Diário de Notícias”. Ao resumirem as idéias de Mag, os autores pareciam nos conduzir de volta ao passado, nos colocando novamente em contato com preconceitos arraigados: “madame diz que a raça não melhora/ que a vida piora por causa do samba/ madame diz que o samba tem pecado/ que o samba, coitado, devia acabar/ madame diz que o samba tem cachaça/ mistura de raça, mistura de cor/ madame diz que o samba democrata/ é música barata/ sem nenhum valor”.
A discografia listada inclui as gravações originais das composições citadas, seguidas da indicação, tanto quanto foi possível ao autor, de seu relançamento em CDs e Lps ou, excepcionalmente, de regravações.
Abreviaturas utilizadas: g.: gravação; l.: lançamento; rel.: relançamento; reg.: regravação. As demais abreviaturas estão anotadas ao longo desta discografia.
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