No Brasil Cultura Crônicas de estréia da cronista Claudia Wasilewski.

Claudia Wasilewski. Crônicas de estréia
Claudia Wasilewski. Crônicas de estréia

Assim como a fábula e o enigma, a crônica é um gênero narrativo. Como diz a origem da palavra (Cronos é o deus grego do tempo), narra fatos históricos em ordem cronológica, ou trata de temas da atualidade. O Portal Brasil Cultura apresenta Claudia Wasilewsk, Supermercado e Esquisitinha Crônicas de estréia da cronista na Revista Ideias

Supermercado

 

 

 

 

Está acontecendo um fenômeno, inexplicável. As pessoas quando ultrapassam a placa de entrada do estacionamento do supermercado, se transformam. Dali em diante tem consciência que estão no front, prontas para a guerra. No estacionamento começa o horror. Pedestres e motoristas não se entendem. Avançam uns sobre os outros com se fossem inimigos. Carrinhos vazios deixados propositalmente atrás dos carros, é o simbolismo de uma espécie de vingança, de desaforo.

Agora, dentro dele, os carrinhos não desengatam. Aí se revelam as diferentes personalidades dos seres humanos. Os calmos tentam com leveza, movimentá-los até se desconectarem. Os nervosos os balançam, dão porradas, chutam até que se soltem. Os insanos como eu, além de chutes e porradas, fazem um discurso, como os funcionários de lá são explorados e descontam todos os seus problemas, naqueles malditos carrinhos. Usando a força, começa aquele barulho de metal. Chama a atenção, mas não faz mal, o carrinho é meio de transporte mais popular do consumo.

Finalmente junto às gôndolas, todos se empurram, se fecham e vira um trânsito infernal, onde não existem regras.

As comadres se encontram e transformam o corredor em sala. Fofoca, conversa, e quando chegam no assunto de doença vira um jogo de truco. Uma sente dores, a outra tem uma doença sem diagnóstico. Levanta para 12 e diz que sente o cérebro amortecer. Em volta já se tem uma sensação de slow. Tudo lento para se conhecer os detalhes daquele causo.

Enquanto as mães se visitam as crianças dominam o espaço. Correm, gritam, esmagam biscoitos, estouram iogurtes. Mas as mamães continuam firmes, entre chás e remédios.

Quando se pensa que nada mais pode piorar, chega um homem. Deveria ser criado um horário especial para eles. Proponho entre as 02:00 e as 05:00 da madrugada. Eles pensam que corredor de supermercado tem mão única. Trafegam exatamente pelo meio. Pensam que são o Moisés com o cajado. Por onde passam, abrem, dividem. E passam com ar superior, bem pelo meio. Acreditam que existe uma regra. Deve-se colocar um produto de cada vez na esteira. Ficar olhando, a caminhada dele até chegar na mão da moça do caixa.

Rumo ao caixa, se vê uma corrida maluca. Todos têm que tirar o máximo de proveito. Pressa, desespero. Mas que fique claro, só a caminho do caixa. Talvez a conversa de cerca das comadres tenha atrasado a vida delas.

Não esqueça, antes de sair de casa olhe fixamente para o espelho e repita, pelo menos trinta vezes: -EU ME ODEIO!

Ou entre em um site de compras e seja feliz.

  

Esquisitinha

 

 

Minha mãe tentou engravidar por dez anos e nada. Com ajuda do Dr. Moysés Paciornik, conseguiu. Gravidez sem os pós brancos. Açúcar, sal, farinha. Estes pós. Depois de várias decepções deu certo. Nove meses e eu a caminho.

Sentiu uma dorzinha e meu pai a levou para a maternidade fazer exame. Ela ficou e ele faceiro foi para o Jockey. Grande Prêmio, o Denis correndo, cavalo super campeão.

Enquanto isto descobriram que eu estava atravessada. Não podia se diferente. Correria e cesárea.

Cavalo campeão, fotos, parabéns e saída estratégica para buscar a minha mãe da consulta. Chegando lá a enfermeira disse:

 -Parabéns, Seu Henrique.

Ele agradeceu e perguntou se ela tinha ouvido a corrida. Ela muito assustada contou:

– O Sr. tem uma filha.

Eita bola fora. Ligou para o Jockey e pediu para avisarem meus irmãos e avós. Até hoje não sabe quem teve a brilhante ideia de anunciar no auto falante. E assim foram todos para a maternidade, família e amigos. Festa! A minha mãe tomou anestesia geral e ainda não tinha voltado à consciência. Quando acordou, eu já tinha nome, Maria Denise. Acho que ela preferia ter continuado anestesiada.

Susto, confusão, gentarada. A grande justificativa era que nasci exatamente no horário que o cavalo cruzou a linha de chegada. Criativos, no mínimo. Imagino o tamanho da encrenca até a escolha de Claudia. Mas não teve jeito, Claudia Denise. Que vergonha, eu servi para homenagear o cavalo.

Presente normal? Nada de brinco, pulseira. O Seu Aizental fez um alfinete em formato de rebenque, com boné, ferradura e estribo pendurados. Fui crescendo e os amigos do meu pai, poucos estão vivos, teimavam em me chamar de Denise, e eu ignorava. Fui uma celebridade instantânea nas revistas de turfe, bem mais que o cavalo. Pelo menos isto.

Não mamei leite de mãe, de vaca, em pó. Mamava caldo de carne, legumes, galinha. Não comia morango, mas ostra crua era um manjar. Cresci sendo chamada de esquisitinha.

Fui uma menina de joelhos ralados, maria chiquinha caída, suja. Nada disso esperavam de mim. Na escola polemizava, e ouvia: – Saia da sala.

Tive que narrar um jogo de futebol. Não sabia o nome dos jogadores. Peguei a Bíblia e montei dois times. Pecado mortal no colégio de freiras.

Fui uma adolescente feliz, me engajei política e ideologicamente. Me decepcionei. Mas continuo levando até as últimas consequências o que acredito.

Só eu sei o mico que estou pagando de contar estes segredos sórdidos. Mas é a minha vida. Não tem como mudar.

ideiasmaClaudia Wasilewski

Revista Ideias

 

 

Compartilhar:

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*