Em cartaz no papel do pintor russo Mark Rothko, Antônio Fagundes chega ao Teatro Geo cumprimentando todos os funcionários da produção. Sempre pontual, pouco antes de subir ao palco reserva um momento para conversar com a coluna e relatar como é a sensação de, pouco a pouco, ganhar mais gosto pela arte abstrata – universo ao qual não dedicava grande paixão antes de ler a peça de John Logan, Vermelho, sobre o polêmico expressionista.
Fagundes também experimenta, pela primeira vez, dividir o palco com o filho caçula, Bruno. E, mesmo se interessando pelo tema “mestre e discípulo”, dispensa paternalismos: “Não acredito mesmo que experiência seja algo que se transfira. É totalmente pessoal”, afirma, acrescentando que a boa relação dos dois, transposta para os palcos, só soma no processo criativo: “Além de tudo, quando você chega no camarim, é seu filho que está lá”, afirma, sorrindo.
O tom afetivo se torna enérgico quando o assunto é incentivo à cultura. Fagundes, que já fez propaganda política para o PT, hoje cultiva certa desilusão: “A verdade é que nunca houve nenhum governo realmente disposto a investir em educação e cultura. Nenhum”, explica. “Um Estado realmente preocupado construiria um teatro em cada bairro, faria companhias municipais, estaduais de teatro. Então, não é uma coisa setorial, isso acontece desde 1500”, conclui.
A seguir, os melhores momentos da entrevista.
O que te atraiu na peça?
O texto é como uma cebola, tem muitas camadas. Você descasca e sempre há alguma coisa por dentro. O que mais me fascinou foi essa coisa forte, contundente, que resulta em uma discussão sobre arte, cultura e educação. Só podia acontecer na boca de um personagem como Rothko, que é profundo, um estudioso. Foi um cara que, além de muito importante no panorama artístico da década de 50, foi um teórico, um formador. Isso é muito evidente no texto. Mas tem outras camadas fortes também. Como o conflito de gerações.
Esse conflito aparece no palco com seu filho Bruno?
Sim. O autor foi muito sensível ao colocar um menino de 22 anos ao lado daquele homem. Representando uma esperança, uma nova vontade, nova energia. Justamente no momento em que Rothko está começando a ficar irascível, desiludido com a relação que gostaria de ter com seu público.
Acha que o tema do mestre e do discípulo é algo universal?
Sempre nos fascina. Uma pessoa começando e a outra já no fim da carreira. A outra relação presente no texto é a de pai e filho. E o mais interessante é o crescimento dos dois personagens. Ambos saem transformados, no fim. E personagem é isso: ação. A dramaturgia é perfeita. Eles começam em pontos afastados, se cruzam em um momento e se afastam novamente, modificados. É tudo muito bem elaborado pelo John Logan. Então, quando você lê, percebe essa possibilidade de crescimento. E se identifica com pelo menos uma das camadas da tal cebola (risos).
Você já conhecia a obra do Mark Rothko?
Já. Sempre fui meio avesso à arte abstrata, porque não entendia. Achava que, se era necessário ler oito livros para entender um quadro, havia algum problema. Mas resolvi, há muitos anos, tentar uma aproximação. Ler um desses oito livros para ver o que acontecia. E, por coincidência, foi com o Rothko. Peguei uma biografia dele e me interessei muito por suas histórias; achei impactante. Então, era um personagem conhecido.
Acha que a dificuldade de entender a arte abstrata veio também do teatro, que é uma arte concreta, que lida com a palavra?
Sem dúvida. Ao mesmo tempo, o teatro tem uma forte relação com o visual. Nosso espetáculo, por exemplo, tem um cenário deslumbrante. Uma luz milimetricamente pensada. Isso cria uma relação diferente com a plateia.
O que você vê nas pintura dele, depois de todo esse processo?
Acho que me aproximei muito dele. Não só de forma artística, mas também humana, afetiva. Criamos uma compaixão por ele. O personagem é grandioso e, ao mesmo tempo, incapaz de se comunicar – quando isso era tudo que ele queria. E já brigando por tempo.
Como?
Ele queria tempo das pessoas. Que se sentassem com calma, se aproximassem do quadro, trabalhassem com ele. Imagine isso em 1958… Hoje em dia, ele daria um tiro na cabeça muito mais cedo. Mas minha aproximação foi mais nesse sentido.
Você já afirmou que “experiência não se transfere”. Não mudou de ideia nem atuando ao lado de seu filho Bruno?
A frase não é minha, mas uso tanto que passou a ser. Acho mesmo que experiência não se transfere. É um farol voltado para dentro. Acho que podemos orientar, dar um conselho, mas não se transfere, é algo totalmente pessoal.
E como está sendo essa troca?
Sempre tivemos um relacionamento muito harmonioso. E trouxemos essa harmonia para dentro do trabalho. Então, é só muito gostoso. Porque, além de tudo, quando chego ao camarim, é meu filho que está lá (sorri).
Você também é diretor. Como faz a separação quando está atuando?
Na verdade, é a mesma coisa sempre. Dependendo do cenário, do jeito que o cara marcou você, do figurino, é um espetáculo diferente. Então, é tudo um exercício conjunto: dirigir, ser dirigido. Por isso gosto de produzir meus espetáculos. Para poder participar, opinar na luz, no cenário. Coisa que não poderia fazer se não fosse o produtor.
Você já afirmou que o teatro está passando por uma crise mortal, por causa das políticas culturais. Explique um pouco.
Quando falo de política cultural, quero dizer tudo: educação; hábitos que não foram criados; o dinheiro que, para a cultura, não existe. Sim, porque 0,2% da dotação orçamentária vai para a cultura. Não é nem do PIB. Nenhum ministério é capaz de funcionar com esse orçamento.
E as especulações que se fazem sobre a queda da ministra Ana de Hollanda?
Nenhum é bom. Os ministros atendem a alguns interesses, mas não resolvem o problema da cultura. Para isso, seria necessário um governo empenhado. E aí, me desculpe, mas acho que tem de ter apoio, sim. Sempre foi assim. Michelangelo foi patrocinado, Beethoven também. Todos eles. Agora, quando você é criado em um ambiente em que nunca foi ao teatro quando era pequeno, também não irá quando se tornar adulto. E se o Estado não se preocupa com isso, quem é que vai se preocupar? Uma ou outra companhia? Isso não é política cultural. Um Estado realmente preocupado construiria um teatro em cada bairro e faria companhias municipais, estaduais de teatro. Então, não é uma coisa setorial, acontece desde 1500.
Acredita que o teatro é a arte que mais sofre com isso?
Não, imagine. O patrimônio histórico, então… fica dilapidado. A dança, o circo… nem se fala. É uma coisa muito grande. Porque 0,2% mal paga o funcionalismo do próprio ministério.
Mas o que acha da ministra?
Coitada, ela não consegue fazer nada. Não adianta… Quem eles querem colocar lá?
Fala-se no Danilo Miranda…
Eu sei. Mas dá na mesma. Então o Sesc pega o Danilo Miranda, que é um cara talentoso, que entende e vem trabalhando na cultura há muito tempo, dá dois bilhões de reais na mão dele para gerir… ele faz bem feito. O que o Sesc fez? Construiu teatros, mais de 20 espalhados pelo Brasil, e muito bem equipados. Que atendem a uma política cultural organizada por ele. Os teatros dos Sescs estão sempre lotados, cobram ingresso barato, ficam dois meses em cartaz. Isso é uma política cultural. Mas, no ministério, é diferente.
Então, você não acredita em projetos como o Vale-Cultura, por exemplo?
Acho que são coisas paliativas. É como o patrocínio. Quando surgiu, todos acreditavam que resolveria o problema da cultura, que iria existir fila de patrocinadores. Até porque era para ter! A empresa tem tudo para ganhar. E, mesmo assim, não se consegue patrocínio. Porque lei não forma mentalidade. Seria necessária uma política cultural anterior a isso para se formar a mentalidade, para que o dono da empresa ficasse pedindo pelo amor de Deus para ir ao teatro.
Como funciona?
É o contrário. O gerente de marketing, quando recebe uma proposta, jamais vai ler aquele texto. Ele não sabe ler aquele texto, não aprendeu isso na escola. Vai demorar três anos para ler e não vai saber nem se é comédia. É verdade. Essa é uma tradição do Brasil. Nunca houve nenhum governo realmente disposto a investir em educação e cultura. Nenhum.
Com tantas críticas ácidas aos governos, você voltaria a fazer propaganda política?
Não. Parei. Até por essa razão. Às vezes, você elege o cara, ele faz um negócio lá, e você não tem o mesmo espaço para dizer que não concorda com aquilo. Continuo exercitando minha cidadania votando. Agora, campanha, não faço mais.
Você tem fama de ser rígido com horários, barulho na plateia, celular…
É uma questão de educação, mesmo. A pessoa tem a oportunidade de ver um espetáculo da Pina Bausch, por exemplo, que não está aqui toda semana. Aí, ao invés de prestar atenção naquilo – pelo qual pagou caro -, fica olhando o celular. É o fim da picada! É uma hora e meia da vida dessa pessoa, e ela escolhe mandar um torpedo no lugar de aproveitar a experiência.
Hoje em dia, muita gente tira foto durante o espetáculo, grava ou algo do tipo. A tecnologia afasta as pessoas de experiências como o teatro?
A cultura corre sérios riscos agora. Esse tipo de tecnologia é atomizante. Porque se faz tudo ao mesmo tempo: manda torpedo, olha o espetáculo e combina a pizza de depois. No fim, não presta atenção em nada. E nós precisamos de tempo. É sobre isso a nossa peça: entrar no campo de visão que está sendo proposto e se concentrar. Mas esse tipo de gente não aproveita. Só a internet, porque não exige nada nesse sentido. Então, a pessoa fica lá. Tirando fotos. Porque, depois, quer mostrar que foi ao espetáculo. Não interessa o que ela viu, ela quer mostrar.
Ator verdadeiro, na sua opinião, tem de passar por experiências no teatro?
Acho que não tem essa coisa de ator verdadeiro. Há atores que nunca passaram pelo teatro e são excelentes. Mas o teatro te dá a possibilidade de errar. O erro, na televisão e no cinema, é apagado. E o fato de errar te ajuda a crescer. Nessa peça, por exemplo, ficamos quase um mês na mesa discutindo palavras. O significado delas. Valorizando aquilo. Horas em uma frase. Coisa que, na televisão e no cinema, é impossível. Só isso já faz uma diferença monumental.
E qual é o grande barato de fazer novela?
Exatamente a velocidade. Gosto do desafio de chegar lá de manhã, pegar o texto, gravar e sair uma supercena. Se tivesse mais tempo, não sei se ficaria melhor. Porque também seria necessário um texto melhor, uma maior autoexigência do tipo de trabalho. Aí, não seria televisão.
E o que acha do momento atual do cinema brasileiro?
Sinto que estamos começando a tirar essa coisa, que antigamente existia, de que cinema brasileiro era pejorativo. O que existe hoje é cinema feito no Brasil. Temos filmes excelentes. Mas eles não sobrevivem, por melhor que sejam, justamente pelo problema das políticas culturais. Existem filmes com 10 milhões de espectadores e que não se pagam. Temos poucas salas e falta público. E isso é um ciclo perverso. Sem apoio, não há cinema. É complicado.
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