Na Toca dos Leões
Na página 302 de seu novo livro, Na toca dos leões (Planeta) lançado semana passada, Fernando Morais narra um episódio aparentemente menor na saga da agência publicitária W/Brasil (fundada em 1986), uma das mais importantes do país, cuja história conta até ali: o sócio majoritário da empresa, Washington Olivetto, óbvio personagem principal do livro, desmarca, por conta de uma viagem, uma reunião de depoimentos ao autor. Era 8 de dezembro de 2001, um domingo. Mas o episódio estava para ser continuado por outro: na terça, na saída do trabalho, Olivetto seria abordado por homens vestidos com uniformes falsos da Polícia Federal, dando início aos 53 dias de cativeiro a que o publicitário foi submetido, num dos seqüestros mais longos e famosos já acontecidos no país.
O trecho, então, demarca claramente a cisão entre os dois livros que o volume único de quase 400 páginas de Na toca dos leões é, ambos a partir de dois casos síntese de dois mundos muito distantes: o primeiro é uma grande reportagem sobre a relação entre a publicidade, a cultura e a política no país, usando como paradigma uma de suas agências mais premiadas; o segundo, uma grande reportagem sobre a indústria do seqüestro, a partir do singular caso de Olivetto. O Brasil dual de Washington é explorado minuciosamente por Morais, que traz à tona não apenas uma coleção de revelações sobre as duas histórias, mas o poder de usá-las como sínteses.
– Em geral tenho a preocupação, já na escolha do tema ou do personagem, que eles me permitam contar mais do que casos, mas mostrar as circunstâncias. Chatô, por exemplo, é uma história da relação da imprensa com o poder no século passado. Não era o caso fazer um livro sobre a W/Brasil para distribuir para os clientes dela. O melhor a fazer era tomar a agência como emblema de um momento da comunicação de massa no Brasil – diz, ao telefone, acendendo um charuto, o mineiro Fernando Morais, 59 anos, um dos maiores autores de livros de reportagem do país, autor de obras importantíssimas, como A ilha, Olga, Chatô – O rei do Brasil e Corações sujos.
Estão no livro a história da empresa, acertos e erros de seus três sócios e o seqüestro, com detalhes nunca antes sabidos fora dos pequenos círculos da investigação e da família do seqüestrado. Alguns deles, aliás, desconhecidos do próprio Olivetto, como o episódio do envio de um pedaço de carne crua para sua mulher como resposta a uma contra-proposta na negociação do valor do resgate.
– Fiquei absolutamente chocado ao ler isso. Fiquei incomodado de uma forma indescritível. Mas entendi que há um grande interesse público a respeito do caso – diz Washington, que até hoje não se refere ao seqüestro por seu nome, apelidando-o de ”o mico”.
Morais começou a acompanhar os passos de Olivetto, de seus dois sócios, o catalão Javier Ciuret e o paulista de família judaica Gabriel Zellsmeister, além da equipe da empresa, em fevereiro de 2001, indo quase todos os dias à agência, no bairro paulista de Higienópolis. Ele documentava a rotina e as biografias dos três da agência.
Com o seqüestro, o livro foi atropelado pelos fatos. Morais começou a acompanhar ”o mico” como amigo: visitou a família, conversou com a polícia etc. Quando Olivetto foi solto, 53 dias depois do começo do caso, o escritor soube da libertação pelaTV. Passou no restaurante reduto dos donos e dos funcionários da W/Brasil, comprou uma bandeja de coxinha de galinha e foi para a casa do publicitário. Quando este chegou, virou-se para Morais e perguntou se ele trazia um gravador. Começaram a falar ali mesmo sobre a história.
Ao final da primeira sessão, a conclusão inevitáel: havia dois livros ali, o da agência e o do seqüestro. O segundo tomou o lugar do primeiro, ganhou o nome de Anatomia de um seqüestro e foi vendido para a Cia das Letras por US$ 100 mil. Morais já tinha recebido o dinheiro quando ouviu o pedido de Olivetto para abortá-lo. Devolveu tudo e voltou ao texto sobre a W/Brasil (desta vez, sob o selo da Planeta, que lhe fez uma proposta ”muito saborosa” e comprou o livro), mas com uma idéia fixa na cabeça:
– Seria fraudar o leitor fazer um livro sobre a W/Brasil e o Washington e não falar no seqüestro. E outra coisa me deixava o coração apertado: eu dispunha de informações de que a imprensa, até hoje, passados três anos do seqüestro, não tinha. Se eu lançasse agora um sem o outro, na semana que vem minhas fontes passariam aos jornalistas as informações do seqüestro.
Informações bombásticas, como a revelação de que os seqüestradores, ex-guerrilheiros chilenos, tinham um ”plano B”: o baiano e também publicitário Nizan Guanes. Ou como os cadernos de acompanhamento da rotina de Olivetto no cubículo em que ficou encerrado por todo o tempo, visitado por Morais na madrugada posterior à libertação.
– Ele não sabia que anotavam a hora em que ele urinava, defecava e chorava – diz Morais, autorizado por Olivetto a publicar depois que este leu os originais.
O autor investigou as histórias dos seqüestradores em Cuba e no Chile, o que lhe permite dizer que é falsa a fachada de seqüestro político que o grupo usou – quando afirmaram que o resgate financiaria atividades revolucionárias.
– Eles não trabalhavam com o comportamento de organização política, mas de ex-ativistas que se tornaram criminosos desagarrados. A maneira como se comportaram durante o seqüestro não condiz com o de ato político: promiscuidade sexual, fotografias fazendo sexo ou nus em torno da piscina, consumo enorme de bebida e fumo (inclusive maconha) e gastos enormes deixam isso claro.