MAQUIAVEL E OS MEIOS

Nicolau Maquiavel

 

 

 

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Todo príncipe deve desejar ardentemente ser considerado piedoso, e não cruel. Mas é preciso que tome cuidado para não aplicar mal sua indulgência. César Bórgia foi considerado cruel. Pode ser: mas o que é certo é que foi sua crueldade que reformou toda a Romanha, que a uniu e reconduziu à paz e à felicidade.

Pensando bem, tudo isso serve para mostrar que ele foi muito mais piedoso do que o povo florentino em geral. Pois os florentinos, para não serem considerados impiedosos, aprovaram a destruição de Pistóia. O príncipe, portanto, não deve dar maior importância à reputação de crueldade que queiram criar em torno de seu nome, se essa reputação servir para manter a união e a disciplina de seu povo.

Para mostrar alguns exemplos, vale a pena dizer que o governo aparentemente cruel pode, no fundo, ser mais piedoso e compassivo do que outro que, por uma falsa compreensão da benevolência, deixa difundir-se a desordem, da qual se originam matanças e pilhagens. Essas, na verdade, prejudicam a todos, ao passo que as execuções ordenadas pelo príncipe prejudicam a uma só pessoa.

Entre todos os príncipes, é justamente ao príncipe que se torna impossível evitar a fama de cruel. E isto se explica: – é que os Estados modernos estão cheios de perigos. Não é por outra razão que Virgilio já dizia pela boca de Dido:

 

“Res dura, et regni novitas me talia cogunt

Mliri et late finescustode tueri”

(“As duras circunstâncias e o caráter recente de meu reino me obrigam a essas severas providências, e a proteger com as armas minha fronteira em toda a sua extensão”).

 

Não deve, porém, o príncipe tornar-se crédulo demais nem agir precipitadamente, nem desconfiar de sua própria força, mas proceder com sabedoria e humanidade, atento a que a confiança excessiva não o torne imprudente e a que o excesso de desconfiança não o torne insuportável.

Essas considerações levam a uma velha discussão: – a de saber se é melhor ser amado do que temido, ou vice-versa. É difícil ser as duas coisas ao mesmo tempo. No caso de não se conseguir reunir ambas as condições, então, o melhor mesmo é ser temido. Até porque, uma coisa pode-se dizer de todos os homens: – são ingratos, volúveis, dissimulados, inimigos do perigo e ávidos de ganho. Estão com uma pessoa, são capazes de oferecer-lhe até o próprio sangue, os bens, a vida e os filhos, enquanto recebem favores e enquanto não se precisa realmente deles. A medida, porém, em que se aproxima o momento de serem solicitados em sua ajuda, desaparecem.

Desse modo, o príncipe que se tinha fiado apenas em suas palavras, não tomando iniciativas para sua própria garantia, estará perdido. Pois as amizades compradas e não adquiridas pela pureza de um coração nobre e cavalheiresco não são amizades sinceras. Quando chegar a hora de necessidade, não poderemos contar com elas. Os homens, de um modo geral, têm muito mais facilidade em prejudicar uma pessoa que se faz amada, do que a uma que se faz temida. Pois o amor se mantém por vínculos de obrigação que são tranquilamente rompidos no momento em que surge a ocasião própria para sua confirmação. E isto, porque os homens são maus. Já o medo que se infunde é mantido pelo temor ao castigo, do qual nunca se deve abrir mão.

O príncipe deve agir, porém, de tal maneira que, caso não seja querido, pelo menos não atraia o ódio, uma vez que lhe é possível reunir ambas as coisas, isto é, ser temido e não ser odiado. E isto acontece sempre, caso ele se abstenha de roubar os bens, as riquezas e as mulheres de seus súditos. Mesmo quando seja forçado a derramar sangue, não deve fazê-lo sem justificativa conveniente e sem causa manifesta.

Deve, assim, o príncipe abster-se de abusar do bem alheio, pois os homens se esquecem mais depressa da morte de seu pai, do que da perda de seu patrimônio. Quando, porém, um príncipe conduz um exército e comanda um grande número de soldados, não deve preocupar-se absolutamente com a fama de crueldade, pois sem ela nunca um exército é unificado e preparado para qualquer operação.

Contam-se, dentre as admiráveis ações de Anibal, o seguinte: possuindo um imenso exército, composto de soldados de todas as nacionalidades, e conduzido para combater em país estrangeiro, nunca houve uma só dissensão entre os soldados, nem contra o príncipe. Isto pode ser creditado à sua cruel desumanidade, que, junto com suas imensas virtudes, sempre o tornou venerável e terrível para seus soldados. Sem ela, suas outras virtudes nunca teriam produzido esse efeito. Os que escreveram sobre suas façanhas, sem se aprofundarem muito, por um lado se maravilham com o que fez, e por outro o condenam, exatamente pelas razões que tornaram possíveis essas façanhas.

 

 

 

 

 

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Nicolo Bernardo di Machiavelli (1469 -1527) nasceu e morreu em Florença. É também conhecido pelos nomes de “O Histórico” e “O Secretário Florencio”. Foi secretário do chamado “governo dos Dez”, quando se implantou a República em Florença. Dele disse Gioberti que “é o Galileu da política”. Autor de vários livros, o mais famoso deles é “O Principe”, dedicado a Giuliano di Médicis, e que tem como modelo o poderoso César Bórgia. Sua doutrina central é a de que os fins justificam os meios na defesa do poder. Lenin e Hitler, Stalin e Mussolini. De Gaulle e Churchill tiveram esse livro famoso na mesa de cabeceira. Até porque há várias maneiras de interpretar o suposto amoralismo de Maquiavel, certamente, no fundo, um idealista ou um romântico e até um santo da missão do Estado..

 

 

Nicolau Maquiavel

 

  

 

Filósofo político do século XVI.

Nasceu em Florença a 3 de Maio de 1469, e

morreu em 20 de Junho de 1527.

 

 

 

Nada se sabe da sua vida antes de entrar ao serviço da República de Florença, após a queda do governo clerical de Sovanorola, para além de ser filho de um jurista. Maquiavel serviu na administração da República de Florença, de 1498 a 1512, na segunda Chancelaria, tendo substituído Adriani, e como secretário do Conselho dos Dez da Guerra (Dieci di Libertà et Pace), a instituição que na Signoria tratava da guerra e da diplomacia. Tornou-se um conhecedor profundo dos mecanismos políticos e viajou incessantemente participando em vinte e três embaixadas a cortes italianas e europeias, conhecendo vários dirigentes políticos, como Luís XII de França, o Papa Júlio II, o Imperador Maximiliano I, e César Bórgia.

 

Em 1500 foi enviado a França onde se encontra com Luís XII e com o Cardeal de Orleães. A sua missão mais memorável, acontecida em 1502 quando visitou César Bórgia estabelecido na Romagna, foi objecto de um relatório de 1503 intitulado «Descrição da Maneira empregue pelo Duque Valentino [César Bórgia] para Matar Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo, Signor Pagolo e o Duque de Gravina, Orsini», no qual descreveu com uma precisão cirúrgica os assassinatos políticos do filho do Papa Alexandre VI Bórgia, explicando subrepticiamente a arte política ao principal dirigente de Florença, o indeciso e timorato Pier Soderini.

 

Maquiavel casou em 1502 com Marietta Corsini, de quem teve quatro filhos e duas filhas.

 

Em 1504 regressa a França, e no regresso, inspirado nas suas leituras sobre a História Romana, apresenta um plano para a reorganização das forças militares de Florença, que é aceite. Em 1508 é enviado à corte do imperador Maximiliano, estabelecido em Bolzano, e em 1510 está de novo em França. Em 1509 dirigiu o pequeno exército miliciano de Florença para ajudar a libertar Pisa, missão que foi coroada de sucesso. Em Agosto de 1512, devido à invasão espanhola do território da república, a população depôs Sonderini e acolheu os Médici.

 

Maquiavel foi demitido em 7 de Novembro, devido à sua ligação ao governo republicano, retirando-se da vida pública. Tendo-se tornado suspeito, em 1513, de envolvimento numa conspiração contra o novo governo, foi preso e torturado. Tirando algumas nomeações para postos temporários e sem importância, em que se conta em 1526  uma comissão do Papa Clemente VII para inspeccionar as muralhas de Florença, e do seu amigo Francesco Guicciardini, Comissário Papal da Guerra na Lombardia, que o empregou em duas pequenas missões diplomáticas, passou a dedicar-se à escrita, vivendo em San Casciano, a alguns quilómetros de Florença.

 

Em Maio de 1527, tendo os Médici sido expulsos de Florença novamente, Maquiavel tentou reocupar o seu lugar na Chancelaria, mas o posto foi-lhe recusado devido à reputação que O Príncipe já lhe tinha granjeado. Pouco tempo depois morreu, pouco tempo depois do saque de Roma.

 

Duas das obras de Maquiavel foram publicadas em vida, La Mandragola (A Mandrágora), de 1515, publicada em 1524, um grande sucesso na época, ainda hoje considerada uma das mais brilhantes comédias italianas, e o tratado Arte della guerra ( A Arte da Guerra), de 1519-1520, que tem como cenário as reuniões intelectuais dos Ortii Oricellari (Jardins de Rucellai), local onde se reunia a Academia Florentina e onde tinha sido colocada a estatuária retirada aos Médici.

 

Foi neste cenáculo que Nicolau Maquiavel leu uma versão dos seus Discorsi sopra la prime deca di Tito Livio (Discursos sobra a primeira década de Tito Lívio), escritos em 1517 e publicados em 1531. As suas outras obras incluem a Vita di Castruccio Castracani (1520), um condottieri que governou Lucca de 1316 a 1328,  uma Istorie Fiorentine (escrita entre 1520 e 1525), as comédias Clizia (escrita por volta de 1524) e Andria, o conto Belfagor, e a sua mais conhecida obra Il Principe (O Príncipe) escrito 1513 e publicado em 1531.

 

O Príncipe é um tratado político em 25 capítulos com uma conclusão que propõem a libertação da Itália das intervenções de franceses e de espanhóis, considerados bárbaros. Escrito originalmente em 1513 e dedicado a Giuliano de Médici, em 1516 passou a ser dedicado ao sobrinho deste Lorenzo, antes deste se tornar duque de Urbino.

 

 

 

Fonte:

Enciclopédia Britânica

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