Mamulengo: o teatro de bonecos popular no Brasil

O pesquisador e ator Fernando Augusto Gonçalves Santos escreve sobre as características deste teatro

Praticado como é em todo mundo, o teatro de bonecos assumiu fisionomias e espírito dramático diferenciados, dependendo da localização geográfica de cada uma de suas manifestações. Isso devido, obviamente, às próprias injunções de tradição cultural, costumes, formação social, econômica e política.

 

Existe em alguns estados do Nordeste do Brasil uma forma de teatro de bonecos praticada por artistas do povo, que se denomina Mamulengo. É o Mamulengo um teatro de características inteiramente populares, onde os atores são bonecos que falam, dançam, brigam e quase sempre, morrem.

 

Como em tantas outras manifestações artísticas da cultura popular nordestina, o Mamulengo revela de modo singular a rica expressividade do dia-a-dia do povo da região. Através dos bonecos, o povo se identifica com suas alegrias e suas tristezas, com seus temores e sua capacidade de fé, com seus tipos matreiros e seus elementos repressores, com o esmagamento de seus direitos e sua ânsia de liberdade.

 

O Mamulengo tem, realmente, um extraordinário poder de sintetização e revelação estética dos anseios mais ardentes do povo nordestino, não obstante a precariedade de seus recursos disponíveis, quer técnicos, quer mesmo estéticos ou de escolaridade. Guardando elementos vinculados à tradição dos folguedos ibéricos e sendo remanescentes dos espetáculos da Commedia dell´Arte, o Mamulengo baseia-se na improvisação livre do ator (mamulengueiro).

 

Conquanto tenha um roteiro básico para a história, que não é escrita, os diálogos são criados no momento mesmo do espetáculo, de acordo com as circunstâncias e com a forma de reação do público. Não podendo existir sem a música e sem a dança, o Mamulengo exige do público uma participação constante e ativa, que permita completar, o que os bonecos muitas vezes irão apenas sugerir. Requer-se, portanto, uma imensa interação boneco/plateia, que não se torna difícil por conta do incrível poder de improvisação e capacidade imaginativa que tipifica os mamulengueiros. Por isso, sendo um teatro do improviso, do repente, depende visceralmente do público assistente que alimenta, ignora ou castra a vertente de criação que sai do mestre, passa para o boneco e atinge o público. Ao reagir, a assistência oferece a inspiração necessária ao processo de criação improvisada, de que se constitui o espetáculo, formando um ciclo contínuo que envolve a todos, titireteiro, títeres e público.

 

O espetáculo do Mamulengo, que seja urbano ou rural, é destinado a um público específico. O Mamulengo não satisfaz as necessidades teatrais ou mesmo emocionais do público intelectual e burguês que habitualmente freqüenta nossos teatros. Quando muito, esse público assiste a uma função por curiosidade, por atitude exótica ou por seu aspecto folclórico. Fica bastante claro que seu público é o povo, as camadas mais inferiores da sociedade, a gentalha, a rafaméia, o Zé-povinho. A esse povo o mamulengueiro sabe falar, dizendo dos mais diferentes aspectos de suas vidas, transfigurando suas alegrias e dores.

 

Freqüentemente, o Mamulengo é de uma contundência admirável, motivado por uma inspiração fascinante que lhe permite alterar o equilíbrio do mundo, as relações de poder, insurgindo-se contra o maniqueísmo da vida, criando um outro mundo que ele próprio governa, uma situação poético-dramática que incorpora o público. Arranca personagens e temas de um mundo ao qual é sujeito, submisso e pelo qual é explorado, transpondo-os, em transfiguração muito própria, para um mundo onde sua voz, anseios e vontades são ouvidos. Isso tudo na intenção maior de provocar o riso, que gerando a folgança, o alívio, o divertimento, atua como elemento catártico e de grande comunicabilidade.

Compartilhar:

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*