Ligia Fonseca Ferreira: As cartas exemplares de Luiz Gama

Muitos talvez o desconheçam, mas Luiz Gama (BA/1830 – SP/1882) é uma personalidade extraordinária de nossa história. Dentre os raros intelectuais negros do século 19, foi o único a ter sofrido oito anos de escravidão, fato marcante na trajetória de um homem nascido livre, cuja vida devotou a libertar escravos.

 

Por Ligia Fonseca Ferreira*

O líder abolicionista Luiz Gama: de ex-escravo a intelectual negro na São Paulo do século 19 O líder abolicionista Luiz Gama: de ex-escravo a intelectual negro na São Paulo do século 19

Poeta, jornalista, advogado e maçom, Gama cumpriu um destino incomum numa época impiedosa para pessoas de sua cor e condição. Desempenhou um papel pioneiro em vários campos. Na literatura, universo exclusivo de brancos, introduziu em 1859 uma voz até então ausente ao publicar sua obra única, as Primeiras Trovas Burlescas, coletânea de poemas satíricos nos quais um autor que se assume “negro” denuncia os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedade imperial.

 

Na política, exerceu incontestável liderança nas campanhas abolicionista e republicana, militando nos jornais, na tribuna e nos tribunais duas décadas antes do advento da Abolição e da República. No Direito, o advogado “provisionado” (com licença especial) inovou nas estratégias jurídicas, desenterrando leis como a de 7 de novembro de 1831, que declarava livres os africanos chegados ao Brasil a partir daquela data, combatendo a escravização ilegal.

 

Jamais frequentou escolas, pois, segundo ele, “a inteligência repele os diplomas, como Deus repele a escravidão”. Os brasileiros esquecem que, cem anos antes de Martin Luther King, um negro, aqui, declarou ter um “sonho sublime: as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos”.

 

Tanto a obra poética de Gama quanto os artigos publicados nos principais órgãos de imprensa de São Paulo e da Corte são permeados por elementos autobiográficos. Porém, na diminuta correspondência conhecida, pode-se apreender aspectos mais íntimos e reveladores da “alma” de um homem que sempre se colocou como protagonista e agente da História com a qual se entrelaçava sua vida – vida que, particularmente numa carta, ele próprio se encarregou de contar.

 

Em 25 de setembro de 1880, o renomado abolicionista responde às solicitações feitas pelo jovem amigo Lúcio de Mendonça, como se depreende das linhas iniciais: “Não me posso negar ao teu pedido (…): aí tens os apontamentos que me pedes, e que sempre eu os trouxe de memória”. Os “apontamentos” consistiam no relato sobre sua vida, desde o nascimento e a infância na Bahia até o momento em que os dois homens se conheceram em São Paulo, em meados dos anos 1860.

 

Porém, as motivações do remetente e do destinatário, o teor e finalidade da carta, bem como a própria história do documento parecem simples, mas não são. Primeiramente, porque não se trata de mera curiosidade de um ou de confissões espontâneas do outro, embora seja evidente a cumplicidade entre os dois. Havia, por outro lado, uma premência pessoal e política. Apesar da diferença de idade, os laços de amizade se nutrem de afinidades diversas. Ambos participaram da fundação do Partido Republicano Paulista (1873).

 

Aos 26 anos, o também poeta, jornalista e advogado Lúcio de Mendonça, futuro fundador da Academia Brasileira de Letras, tinha grande prestígio em São Paulo, Rio e Minas Gerais. Aos 50 anos, Gama era, nas palavras de José do Patrocínio, o “grande chefe”, “o símbolo da grande causa”. De fato, havia mais de dez anos que realizava concorridas conferências, escrevia artigos polêmicos, encabeçava iniciativas para o alforriamento de escravos promovidas pela influente loja maçônica América de São Paulo.

 

O advogado autodidata se convertera em renomada autoridade na jurisprudência sobre escravidão. Terror dos fazendeiros e dos advogados e juízes corruptos, sua popularidade na província e em outros rincões do Império estava no auge, o número de inimigos também. Sua saúde era frágil. No momento em que escreve a carta, Gama sofria da diabetes que lhe ceifaria a vida em dois anos e talvez já suspeitasse que não veria as reformas que sonhara.

 

Justificava-se, pois, a pressa de Mendonça em obter as informações com as quais redigiria um ensaio biográfico, publicado um ano depois, porém sem nenhuma menção à carta de Gama. Mesmo se em alguns poemas das Primeiras Trovas Burlescas existem alusões à vivência como escravo, o passado do popular abolicionista não era conhecido em minúcias. Foi este o objeto maior das revelações sobre uma vida na qual perpassam questões candentes do Segundo Império e se entrecruzam a dimensão individual e coletiva.

 

Gama narra episódios dramáticos de sua infância numa Bahia agitada por revoltas negras e regenciais. Os detalhes denotam uma memória aparentemente intacta. Evocando sua filiação, ele se apresenta como um típico brasileiro, fruto do “casamento”, ao menos simbólico, entre África e Portugal, e sugere ter herdado dos pais, e especialmente da mãe, a mítica Luiza Mahin, as características que lhe permitiram enfrentar as barreiras impostas aos negros, escravos ou não. Ironiza também a hipócrita classificação racial então reinante no país. Desoladora é a revelação de ter sido jogado no cativeiro pelo próprio pai, cujo nome oculta, fato que até hoje alimenta o mistério em torno de se verdadeiro nome e identidade. Escreve ele:

 

“Nasci na cidade de S. Salvador (…) em um sobrado da Rua do Bângala, (…) a 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz [de] Itaparica.

 

Sou filho natural de uma (…) africana livre, (…) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.

 

Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto (…) tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

 

(…) era quitandeira (…) e mais de uma vez (…) foi presa como suspeita de envolver-se em (…) insurreições de escravos (…).

 

(…) Em 1837, depois da [Sabinada] (…) veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas (…) que ela, acompanhada com malungos desordeiros (…) em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. [Segundo] meus informantes [esses] «amotinados » fo[ram] mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. (…)

 

Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: (…) [ele] pertencia a uma das principais famílias da Bahia de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.

 

Ele foi rico; e nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; (…) jogava bem as armas, e muito melhor de baralho (…) esbanjou uma boa herança (…) e reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, (…) vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho Saraiva.”

 

Seguem-se então, nesta carta que tem as potencialidades de um romance, os dramas rocambolescos vividos pelo escravo Luiz. A narrativa construída na carta apresenta outros mistérios que ressaltam a capacidade do autor de safar-se de situações inextricáveis, como quando, aos 18 anos, depois de ter aprendido a ler e escrever, obtém “ardilosa e secretamente provas inconcussas” de ter nascido livre. Gama viveria outra privação de liberdade quando, soldado da polícia, reagiu às ofensas de um oficial “insolente”: “Estive então preso 39 dias (…) Passava os dias lendo e, às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite (…) em sonho, vi que a levavam presa (…) Dei um grito (…) os companheiros alvorotaram-se; corri à grade e enfiei a cabeça pelo xadrez (…) narrei a ocorrência aos (…) colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.”

 

Gama sabia do destino que Mendonça daria a suas confissões, o que nos autoriza a pensar que ele foi uma espécie de coautor da biografia e da imagem que desejava legar à posteridade, até porque, coincidência ou não, sua carta, hoje conservada na Biblioteca Nacional (RJ), só viria a público no século 20 por ocasião de seu centenário. Assim, encaminhando-se para a morte e avaliando retrospectivamente sua vida, não se furtou em fazer o balanço das realizações que mais orgulhavam o imbatível defensor que advogava de graça: “[no foro e na tribuna] ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos que, em número superior a 500, tenho arrancado das garras do crime”.

 

Vitorioso por um lado, Gama não teve uma vida tranquila. Recebeu constantes ameaças de morte que ele denunciava publicamente e em tom provocador, nas páginas dos jornais ou, num plano mais privado, escrevendo a familiares e amigos. Em 23 de setembro de 1870, deixou uma comovente mensagem a seu filho único, Benedito, então com 10 anos de idade, possivelmente antes de sair para tratar de algum processo envolvendo propriedade escrava. Ignorando se voltaria a ver sua família, deixa conselhos que sintetizam seus principais valores e crenças, antes de encerrar: “Lembra-te que escrevi estas linhas (…) sob ameaça de assassinato. Tem compaixão de teus inimigos, como eu compadeço-me da sorte dos meus”.

 

Dois meses depois, em 26 de novembro de 1870, escreve a José Carlos Rodrigues, jornalista brasileiro residente em Nova York, mostrando-se satisfeito por ter triunfado das ameaças de morte graças ao apoio popular: “sou detestado pelos figurões da terra, que me puseram a vida em risco, mas sou estimado e muito pela plebe. Quando fui ameaçado pelos grandes (…) tive a casa rondada e guardada pela gentalha”. Evoca também as perseguições motivadas por seu envolvimento “em favor de gente livre [africanos] posta em cativeiro indébito”, o que acarretou sua demissão do cargo de escrivão na Polícia e a nova atividade: “Fiz-me rábula e atirei-me à tribuna criminal; tal é hoje minha profissão”.

 

Transcritas e comentadas pela primeira vez em 2011¹, estas e outras cartas possuem uma aura especial, emanando das linhas traçadas por Luiz Gama, em cujo coração apenas ardia a ideia de liberdade, em múltiplos sentidos.

 

* Ligia Fonseca Ferreira, bacharel em Letras pela USP e doutora pela Universidade de Paris 3/Sorbonne, é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Organizou as coletâneas Primeiras Trovas Burlescas e Outros Poemas de Luiz Gama (2000) e Com a Palavra Luiz Gama – Poemas, Artigos, Cartas, Máximas (2011).

 

 

NOTA

  1. Cf. Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. Organização, introdução e notas Ligia Fonseca Ferreira. Imprensa Oficial de São Paulo: 2011.

 

[Este artigo, gentilmente cedido pela autora, foi publicado orginalmente em Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná]

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