Nosso tema é a Literatura Feminina e o combate aos valores deploráveis do machismo e do patriarcado. Na virada do século 20 para o século 21, tive contato com a Literatura Feminina ao ler dois romances – “Lésbia” (1890), de Maria Benedita Bormann, e “A Silverinha” (1913), de Júlia Lopes de Almeida – e a antologia “Escritoras brasileiras do século 19” (1999), de Zahidé L. Muzart, todos da Editora Mulheres, de Santa Catarina.
Por Antonio Vicente Seraphim Pietroforte*
Recortes de reportagens escritas por mulheres no século 19 Cada uma das obras contribui para compreender cada vez mais o papel da mulher na Literatura Brasileira, inclusive, para buscar entender por que não foram incluídas no cânone literário, uma vez que são, literariamente, tão boas e, muitas vezes, bem melhores do que poetas medíocres como Casimiro de Abreu ou prosadores decepcionantes como Joaquim Manuel de Macedo.
Em “Lésbia” é narrada a história de Arabela, uma escritora no Brasil do século 19. Isso faz de “Lésbia”, além de obra literária, documento excelente para verificar, com mais precisão, como se comportavam as mulheres no Brasil daquela época; no mínimo, o livro coloca em xeque a ideia estabelecida de que não havia escritoras brasileiras antes do modernismo. Arabela relaciona-se com vários homens e em situações sociais bem distintas das mulheres dos romances românticos, revelando, portanto, o quanto sua postura está distante da estupidez de Carolina, a moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, destinada ao casamento e às prendas do lar.
Em “A Silverinha”, entre vários aspectos interessantes da obra, Júlia Lopes de Almeida escreve a respeito de um fenômeno social praticamente ausente nas obras de escritores contemporâneos a ela, como Aluísio de Azevedo, Machado de Assis ou José de Alencar: as reuniões feitas apenas por mulheres, que, em seu romance, aparecem descritas do ponto de vista de outra mulher.
Nos romances feitos por homens, há reuniões de família, nas quais os chefes de família burgueses abriam suas portas para receber convidados em suas residências, e há, nas casas de comércio, os encontros entre os homens. No romance de Julia Lopes de Almeida, porém, apresenta-se outra realidade social, que dá voz a um rito ausente na prosa masculina, justamente por tais reuniões serem frequentadas apenas por mulheres. Isso significa, portanto, a existência dessas reuniões, mas também significa que, em uma literatura predominantemente masculina, elas não mereceram a devida atenção, dadas a elas pelas mulheres.
O livro “Escritoras brasileiras do século 19”, de Zahidé L. Muzart, fornece, no mínimo, um dado numérico interessante: há na antologia 52 escritoras. Houve, no mínimo, 52 escritoras no Brasil do século 19; cabe indagar, portanto por que só ouvimos falar de homens poetas e prosadores. Estaríamos diante da famosa damnatio memoriae, prática política espúria, em que se tenta deliberadamente apagar discursos e fatos históricos?
Ao que tudo indica, a resposta é sim. Dá-se com as mulheres o mesmo que se dá com negros e outras minorias; na literatura não há escritores negros e escritoras porque quem faz o cânone são homens brancos. Nessa literatura machista, as poucas mulheres aprovadas são aquelas que ratificam a cultura patriarcal, afirmando o papel de mulher sensível e sonhadora, como Cecília Meireles, ou enaltecendo, explicitamente, a cultura das donas de casa, como Adélia Prado.
Os estudos de Zahidé L. Muzart e as publicações da Editora Mulheres são do final dos anos 90 do século 20. De lá até hoje, quase nada mudou nos cursos de Literatura Brasileira no ensino médio e no ensino superior; professores continuam insistindo nos mesmos autores de sempre, como se o cânone literário fosse metafísico, e não, histórico.
Nada muda, mesmo que pesquisadoras como Z. L Muzart demonstrem o quanto as formações da Literatura Brasileira eminentemente masculinas, propostas por autores como Antonio Cândido e Alfredo Bosi, estão desatualizadas. Em sua “Formação da Literatura Brasileira”, Antonio Cândido – cuja primeira edição é de 1957 – não cita sequer uma mulher – os dados da antologia de Z. L. Muzart mostram o quanto essa formação precisa ser revista –; em sua “História Concisa da Literatura Brasileira”, revista e atualizada pelo autor em 1994, Alfredo Bosi menciona apenas quatro mulheres: Francisca Júlia, Raquel de Queirós, Cecília Meireles e Clarice Lispector.
A presença de escritoras brasileiras não se esgota no século 19, período no qual se concentram as publicações da Editora Mulheres. No século 20, vale a pena mencionar a recuperação dos escritos de Patrícia Galvão, levada a cabo por Augusto de Campos; a organização da obra completa de Hilda Hilst, trabalho de Alcir Pécora; a obra completa de Leila Míccolis, editada e organizada por mim.
Apesar do silêncio da maioria dos livros didáticos ou históricos da Literatura Brasileira, a luta continua. Longe de ser pretensioso, não quero apresentar um estudo sobre a Literatura Brasileira contemporânea feita por mulheres como é o trabalho de Z. L Muzart sobre o século 19 – fruto de pesquisa –, mas gostaria de finalizar falando de algumas escritoras bastante atuantes em nossa literatura. Penso em sugerir, pelo menos, boas leituras.
Na poesia, vale a pena lembrar Susanna Busato, Gabriela Marcondes, Adriana Zapparoli, Claudia Roquette-Pinto, Lia Testa, Andreia Carvalho Gavita, Virna Teixeira, Marília Garcia, Ana Rüsche, Jussara Salazar, Andrea Del Fuego; ainda na poesia, a coleção Marianas Edições, publicada pela Bolsa Nacional do Livro, de Curitiba, uma iniciativa do coletivo feminista As Marianas; na prosa, a literatura de confronto, da Marcia Denser; nos Cadernos Negros do movimento Quilombhoje, articulando feminismo e combate ao racismo, quero lembrar as escritoras Celinha, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Miriam Alves, Sônia Fátima da Conceição e Teresinha Tadeu; na editora alternativa Patuá, praticamente metade do catálogo, com mais de 400 livros, são de escritoras: Micheliny Verunschk, Carolina de Bonis, Adri Aleixo, Ellen Maria, Lubi Prates, etc.
Elas sempre estiveram aí, é só prestar atenção.
*Antonio Vicente Seraphim Pietroforte é professor de Semiótica do Departamento de Linguística da FFLCH-USP
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