A rtistas e produtores culturais encontram-se apreensivos com a iniciativa do Ministério da Cultura em substituir a Lei Rouanet – que permite a renúncia fiscal para patrocínio em projetos culturais – pelo projeto de lei de iniciativa do governo instituindo o Programa de Fomento e Incentivo à Cultura (Profic).
A preocupação tem sua razão. No Brasil, o empresariado não tem tradição de incentivo à cultura e foram necessários 15 anos de vigência da Lei Rouanet para impulsão dessa prática, muito tímida ainda. Por certo, a Lei Rouanet necessita de aperfeiçoamentos, mas a sua substituição integral na forma sugerida pelo Ministério da Cultura poderá significar um retrocesso e um desestímulo às poucas empresas que aportam recursos na produção cultural, e inoportuna migração desses recursos para o esporte ou para o setor audiovisual, segmentos detentores de incentivos muito mais atraentes financeiramente.
Sabe-se que a lei, para legítima incorporação ao ordenamento, deve atender aos requisitos de constitucionalidade. No caso, a análise do anteprojeto originado no Ministério da Cultura evidencia diversas imperfeições, algumas que remetem a proposta ao negativo universo de insegurança jurídica.
Ao estabelecer critérios subjetivos para avaliação de projetos culturais, especialmente ao determinar o requisito preconceituoso de “alta relevância cultural”; manter indefinição quanto à composição da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), responsável pela avaliação dos projetos culturais a serem incentivados; aumentar os recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC), sem definir os critérios de sua distribuição; e remeter diversas matérias à posterior regulamentação pelo próprio ministério, o anteprojeto descortina sua aura de insegurança e ilegalidade, expondo sua fragilidade constitucional. São vários os artigos do anteprojeto que remetem sua regulamentação exclusivamente à administração pública, o que revela o propósito do Ministério da Cultura e do poder público de manipulação dos critérios de avaliação dos projetos culturais e as verbas do Fundo Nacional de Cultura, sendo, portanto, pertinente a preocupação do setor quanto à real possibilidade de se concretizar o que a classe artística vem chamando de “dirigismo cultural”. Ademais, o anteprojeto avança em imprópria alteração da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), ao dispor em seu artigo 49 que todas as obras desenvolvidas a partir de incentivo fiscal poderão ser, de forma livre e discricionária, utilizadas pelo poder público, o que, além de trazer o Estado para concorrer com os produtores culturais na distribuição e comercialização das obras intelectuais, legitimando a hipótese de um uso livre inexistente na legislação especial, e em total afronta à norma da Constituição da República, que em seu artigo 5º, XXVIII, assegura ao criador o direito exclusivo de dispor sobre a sua criação. Ao prevalecer um dispositivo dessa natureza, haverá um aumento no valor das licenças das obras intelectuais e uma retração dos criadores, que não saberão o real desdobramento da utilização de suas obras nos projetos culturais. Ademais, certamente os patrocinadores ficarão receosos em disponibilizar recursos em projetos culturais, cujo retorno ficará prejudicado não só pela concorrência do Estado, como também pelo risco de uso político e eleitoreiro das obras criadas.
Outro aspecto a ser considerado é o fato de que a revogação da Lei Rouanet acarretará a submissão do novo diploma legal à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), impondo, consequentemente, a renovação quinquenal dos incentivos fiscais, mais ainda agravando as incertezas e dificuldades do setor, em especial produtores e patrocinadores que investem em projetos culturais duradouros e contínuos.
Não é a primeira vez que o governo tenta controlar a informação e a cultura. O famigerado projeto de criação da Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav) foi um exemplo devidamente rechaçado pela sociedade, que, agora, se depara com situação similar. É justo que o setor das artes se insurja contra tais iniciativas antidemocráticas. O controle da cultura revela uma época de arbítrio que o Brasil deseja esquecer, pois somente com a liberdade criativa se constrói a verdadeira e autêntica identidade de um país. A Lei Rouanet reclama ajustes para melhorá-la, e não a sua substituição por outra pior.
* Lauro Schuch é vice-presidente da OAB-RJ