José Eduardo Agualusa: Prêmio Camões para Chico é justo e necessário

Fiquei muito feliz ao saber que o Prêmio Camões será entregue este ano a Chico Buarque. No universo de língua portuguesa são raros os prêmios literários destinados a celebrar o conjunto da obra de um escritor e não um título específico. Assim, o Prêmio Camões tem a pretensão de se transformar numa espécie de Nobel da Literatura em língua portuguesa, não obstante ser ainda mal conhecido no Brasil e pouco ressoar para além das fronteiras da lusofonia.

 

Por José Eduardo Agualusa, no O Globo

Budapeste (2003), de Chico Buarque, é um magnífico exemplo de ficção pura, que troça do mundo literário, das suas vaidades e contradições Budapeste (2003), de Chico Buarque, é um magnífico exemplo de ficção pura, que troça do mundo literário, das suas vaidades e contradições

Chico tem sido vítima do preconceito de outros escritores, da crítica especializada e de muitos leitores comuns. Certa ocasião participei de um encontro literário em Paris, ao lado de duas dezenas de romancistas portugueses, africanos e brasileiros. Recordo a pergunta envenenada de uma escritora portuguesa, resumindo um certo sentimento de inveja e genuína perplexidade, comum sempre que enfrentamos alguém com múltiplas competências: “Você já é um músico tão bom, Chico, por que quer também ser escritor?”

 

Ao contrário de Bob Dylan, que nunca publicou ficção (Tarântula, de 1971, é um texto experimental, de prosa poética), Chico Buarque é autor de cinco romances. Dylan ganhou o Nobel não por causa de Tarântula, mas devido aos versos das suas canções – e como nem todos concordam com a qualidade destes versos, a polêmica foi grande. Os cinco romances de Chico asseguram-lhe desde já um lugar sólido na literatura brasileira. São estes que devemos discutir.

 

Em Estorvo, publicado em 1991, Chico Buarque parece estar mais preocupado em mostrar-se como escritor, do que, simplesmente, em contar uma história. O livro sofre de uma espécie de exibição de virtuosismo que, até certo ponto, estorva a leitura. Talvez o autor estivesse apenas deslumbrado com o novo meio: experimentando a mão.

 

Os títulos seguintes, porém, já revelam um escritor inteiro, maduro, explorando não um, mas vários universos, trabalhando questões identitárias e existenciais, com um humor ácido e sofisticado. Budapeste (2003), magnífico exemplo de ficção pura, troça do mundo literário, das suas vaidades e contradições.

 

Leite Derramado, publicado em 2009, longo monólogo de um velho, no seu leito de morte, acompanha a lenta decadência de várias gerações de uma família tradicional brasileira. O trabalho com a linguagem é extraordinário. Já O Irmão Alemão (2014) pode ser lido como uma paródia da literatura de autoficção; baseando-se num incidente familiar verídico, e em diversos episódios conhecidos da sua própria vida, Chico imagina para si mesmo um outro destino, menos feliz, num exercício cruel de autodepreciação.

 

Um prêmio constrói a sua reputação através das personalidades que homenageia. Com a sua escolha, o júri do Prêmio Camões reconhece o óbvio: que Chico Buarque é um grande escritor. E, com o brilho de Chico, ganha também um pouco mais de luz e de notoriedade.

 

Poderíamos dizer da relação entre o Prêmio Camões e Chico Buarque, o que Mobutu Sese Seko dizia da capital congolesa, Brazzaville, comparando-a com a do seu próprio país, o Zaire, duas cidades separadas por um rio, uma diante da outra: “Brazzaville ilumina-se com o esplendor de Kinshasa.”

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