José Carlos Ruy e Machado de Assis, quando dois clássicos se encontram

 

“Nos reunimos para questionar a demora da publicação do encontro dos dois clássicos que os leitores do Brasil desconhecem. Até quando, meu Deus? Por quê?”

De Machado de Assis, do qual comemoramos o aniversário de nascimento em 21 de junho, nem precisamos falar a razão de ele ser o maior clássico da nossa língua, o nosso maior escritor. Reconhecido por muitos brasileiros nestes últimos dias após a escritora estadunidense Courtney Henning Novak definir “Memória Póstumas de Brás Cubas” como “o melhor livro já escrito”. E mais recentemente, ela comparou o brasileiro a William Shakespeare. Em nosso país é quase sempre assim, as pessoas só dão valor aos nossos talentos quando alguém de fora é fascinado por eles.

Mas falemos então de José Carlos Ruy, que nos deixou em 2 de fevereiro de 2021, meses antes de completar 71 anos, na capital paulista onde nasceu em 1950. Intelectual comunista, jornalista e escritor, Ruy publicou, entre outros, livros como “Os comunistas na Constituinte de 1946” e “Biografia da Nação: História e luta de classes”. Esse último já lhe garantia um lugar de clássico do pensamento brasileiro. Mas José Carlos Ruy foi mais alto e mais longe quando escreveu o “Dicionário Machado de Assis”. Tal obra essencial sobre o gênio de Machado de Assis, acreditem, até hoje continua inédita. Mesmo neste momento em que a escritora e influencer estadunidense venera o gênio de Machado.

Courtney Novak levou Machado de Assis ao topo de autores mais vendidos na Amazon, quando declarou: “O que eu vou fazer pelo resto da minha vida depois de ler ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’? Nada vai se comparar a ele”. Ao que nós devemos também perguntar: “O que vamos fazer sem o ‘Dicionário Machado de Assis’, que reúne 1.065 personagens dos contos e romances de Machado? Que acrescenta ensaios sobre o escritor que iluminam o crítico severo da sociedade brasileira?”.

Nos ensaios que precedem os personagens do Dicionário, José Carlos Ruy escreve contra as leituras preconceituosas, apressadas, que se referem ao escritor mal lido, e por isso mesmo difamado como um homem que se alienou dos problemas cruciais do Brasil. Essa estupidez caricatural sobre o nosso imenso criador acredita ou acreditava que seria possível boa literatura sem imersão na realidade. Como acontece deveras por estas plagas que criticam na superficialidade pela preguiça de aprofundar. Preguiça que favorece o preconceito, por não enxergar que a literatura de Machado é o retrato escarrado da elite de sua época. Um retrato mordaz com crítica ácida e apurada. Basta citar o exemplo de “Dom Casmurro”, onde a crítica conservadora permanece na discussão se Capitu traiu ou não traiu, questão secundária. Porque o mais importante nessa obra do maior escritor brasileiro são o auge e a decadência da oligarquia, que dominou o país e se viu apodrecendo pelo caminho.

Mas José Carlos Ruy não escreve apenas uma opinião a favor da presença de Machado de Assis contra os crimes da elite nacional. E tamanhos têm sido a demora e os adiamentos para a publicação do “Dicionário Machado de Assis”, que cometemos a seguir um spoiler do trecho de um ensaio de José Carlos Ruy, antes da síntese dos 1.065 personagens:

“Machado de Assis foi um escritor atento aos problemas do seu tempo, e um arguto observador do comportamento de membros da classe dominante ante essas contradições. Sua obra traz inúmeras e precisas referências, quase documentais, de atitudes comuns da elite financeira, latifundiária e escravista do seu tempo.

O melhor exemplo são as referências à escravidão feitas em sua obra. Aquele era o grande problema da segunda metade do século 19, período em que a obra machadiana floresceu.

As referências agudas à escravidão, condenando este regime cruel, são inúmeras na obra machadiana. A certa altura, no romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ (1881), ele descreve uma conversa entre dois personagens, numa recepção festiva, sobre a breve chegada de um navio negreiro vindo de Angola, com um carregamento de escravos. Refletindo os hábitos da época, deixa claro que era ‘normal’ em rodas sociais as pessoas conversarem sobre o sequestro e o tráfico de seres humanos, e os lucros alcançados com esse comércio nefando. Um dos personagens dava ao outro notícia da breve chegada de um carregamento de negros novos, e   repetia o que diziam ‘cartas que recebera de Luanda’; elas garantiam que ‘podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos’ “.

Difícil entender tanta demora para a publicação de uma obra já pronta. Obra que já nasceu clássica e que, inclusive, do ponto de vista mercadológico  reúne condições de sucesso, pois Machado de Assis está no topo e na memória pelo destaque que ganhou da escritora Courtney Novak no Brasil e no mundo. Há grande possibilidade de o Dicionário causar grandes debates acerca da visão errática que se tem desse escritor incomparável. José Carlos Ruy merece essa publicação póstuma. O público brasileiro merece ler e reler a obra fundamental de José Carlos Ruy, para conhecer as entrelinhas de um escritor sem igual.

Daí que nos reunimos para questionar a demora da publicação do encontro dos dois clássicos que os leitores do Brasil desconhecem. Até quando, meu Deus?  Por quê?

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