No ano em que se completam os 160 anos da publicação do livro Úrsula, abolicionista e contra a opressão da mulher, é preciso reconhecer o lugar de sua autora, Maria Firmina dos Reis, entre os fundadores do romance brasileiro.
Por José Carlos Ruy*
Os livros de história da literatura brasileira precisam, todos eles, sem exceção e com urgência, ser corrigidos para que se introduza neles o reconhecimento de que o romance brasileiro tem entre seus fundadores uma mulher, que se definiu, no prólogo de seu romance, publicado em 1859, como “ uma mulher, e mulher brasileira” , qualidade que aparece também no pseudônimo que usou para a publicação: “Uma Maranhense” . Foi publicado inicialmente em folhetim, no jornal A Moderação, de São Luís e, no anúncio da publicação se podia ler, quase escondida nas últimas linhas, a informação de que sua autora era a “ exma. sra. D. Maria Firmina dos Reis, professora pública em Guimarães” .
Mulata, filha de pai negro e mãe branca, que não eram casados, há controvérsia sobre o ano de seu nascimento – uns dizem que foi em 1822, e a maioria fala em 1825. Não é o fundamental. Esta mulher, negra e nordestina – e que vivia de seu salário de professora primária – foi Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula – Romance Original Brasileiro, cuja publicação completa 160 anos em 2019.
A urgência da correção dos livros de história da literatura é acentuada pela qualidade literária do livro que o destaca entre os romances inaugurais da literatura brasileira, de autoria de homens, brancos e bem situados socialmente, como Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antonio de Almeida e José de Alencar.
Úrsula foi o primeiro romance abolicionista publicado em língua portuguesa. Antiautoritário, criticou com ênfase a opressão da mulher pelo mesmo autoritarismo patriarcal que então dominava. Na vida real, Maria Firmina abominava a escravidão e a desumanização que decorre dela. Conta-se que, em 1847, com pouco mais de 20 anos de idade, quando foi tomar posse no cargo de professora primária após passar em um concurso público em sua província, foi-lhe oferecido o transporte em uma liteira carregada por escravos – e ela recusou, preferindo ir a pé. Teria dito: “Negro não é animal para se andar montado nele”.
Autodidata de largas leituras e fluente em francês, Maria Firmina tinha consciência dos preconceitos que seu antiescravismo e seu feminismo avant la lettre enfrentariam naquela sociedade patriarcal e escravista – daí ocultar-se sob o pseudônimo “ Uma Maranhense” . No prólogo de Úrsula, ela afirmou seu conhecimento dessa barreira patriarcal preconceituosa: “Pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados”.
Seu espírito humanista e inconformado com a escravidão transparece em todo o romance. Um exemplo é o capítulo inicial no qual, ao longo de saborosa descrição da paisagem – como era própria do romantismo literário –, ela indica gradualmente o tema que crescerá ao longo do livro: a descrição da exploração implacável e inconsciente do trabalho de alguém. Ela narra a viagem pelo campo de um jovem, a cavalo; o cavaleiro não nota a exaustão do animal que, a seguir, não consegue continuar e cai.
Em socorro do cavaleiro ferido – que se saberá, aos poucos, ser um dos principais personagens do livro – surge no horizonte a figura de um homem que, parágrafos adiante, será apresentado como Túlio, um jovem escravo. É notável, num romance escrito em 1859, quando a escravidão mantinha força total na sociedade, sua apresentação inicial como “um homem”, e não um negro ou um escravo. Não se trata de uma opção estilística vazia, arbitrária; ela denota o profundo humanismo da autora que, inspirada pelo cristianismo, levava ao pé da letra a convicção de que todos os homens são iguais.
Que diferença de As Vítimas Algozes (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, injustamente considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro, cujo próprio título incorpora o preconceito da época: invertendo a relação injusta criada pela escravidão, apresenta a abolição como um benefício… para os senhores, por livrá-los da ameaça representada pela presença de verdadeiras feras, os negros escravizados, apresentados como vingadores cruéis e bestiais. Macedo reflete o preconceito da época que encara o africano como selvagem, não civilizado, e o desumaniza. O romance “abolicionista” de Macedo não pode sequer ser classificado como humanista, e apresenta o escravo como uma ameaça ao senhor.
Úrsula, ao contrário, patenteia o caráter humanista e antirracista de Maria Firmina, e o legitima – por razões estilísticas mas também pelo forte conteúdo social – como o primeiro grande romance abolicionista escrito em idioma português, da mesma forma como retrata e condena a opressão da mulher.
É um romance, hoje, de acesso difícil, em formato convencional, de papel, embora possa ser encontrado em formato eletrônico, pela internet. Teve apenas duas edições. A primeira, de 1859, saiu inicialmente em folhetim no jornal A Moderação, de São Luís, e depois em livro, no mesmo ano, pela Tipografia do Progresso, da capital maranhense.
A outra edição demorou mais de um século para sair. Em 1962, o pesquisador Horácio de Almeida encontrou um exemplar da primeira e única edição de Úrsula no meio de um lote de livros comprados em um sebo. E se surpreendeu com a qualidade literária e social do romance do qual, 13 anos depois, em 1975, conseguiu publicar uma segunda edição, fac-similar, feita pelo governo do Maranhão, para a qual escreveu o prefácio.
Maria Firmina foi escritora e educadora. Ela fundou, em 1879, na vila de Guimarães, Maranhão, a primeira escola gratuita para o ensino fundamental de meninos e meninas – que só durou três anos, abatida pela fúria preconceituosa que provocou. “O escravo firminiano”, diz a professora Régia Agostinho da Silva (1), da Universidade Federal do Maranhão, “é, antes de tudo, aquele que fala da África, que só reconhece a verdadeira liberdade, no tempo em que vivia naquela África saudosa e nostálgica”.
Maria Firmina dos Reis é a única mulher a figurar entre os homenageados na Praça do Pantheon, em São Luís, onde estão os bustos de escritores maranhenses. Mas já passou da hora de reconhecer seu lugar entre os fundadores da literatura brasileira – esta escritora notável e lutadora pela liberdade e contra a opressão: Maria Firmina dos Reis.
Aos 160 anos da publicação inicial de Úrsula, uma nova edição se impõe como homenagem não ao passado – merecida, sem dúvida – mas ao presente, aos estudantes e estudiosos, gente da cultura e do pensamento, aos militantes do progresso social de nossos dias, para que reconheçam em Maria Firmina dos Reis a legitimidade da luta de todos contra a opressão e se animem a, em nosso tempo, levar adiante essa luta humanitária, libertária… e antiga.
* José Carlos Ruy é jornalista.
NOTA
(1) Citada no artigo “Quem foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira”, de Helô D’Angelo, na revista Cult, 13/11/2017)
TRECHOS
Sequestro na África
– “Vou contar-te o meu cativeiro.
Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o mendobim [mendubim = amendoim] eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha e bela como o rosto de um infante; entretanto, eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe e fui-me à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la. Ainda não tinha vencido cem braças de caminho quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo eminente [iminente] que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira — era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível… a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares onde tudo me ficava — pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!”
O tráfico escravista
– “Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão, fomos amarrados em pé e, para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa.”
Túlio
– “O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar 25 anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a escravidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava; porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco.”
A igualdade natural entre os homens
– “ Senhor Deus! quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!… a aquele que também era livre no seu país… aquele que é seu irmão?! E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista.”
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