Hip-hop, cultura popular cooptada? (artigo*)

O capitalismo está sempre atento e com olhos bem abertos, observando e aliciando os movimentos culturais e sociais e seus territórios de atuação. O que incomoda, inquieta e assusta não só ao movimento Hip Hop, mas também aos demais movimentos culturais, é exatamente a reação do capitalismo contemporâneo, tentando capturar, cooptar e domesticar a produção de subjetividade incessante e frenética que esses movimentos promovem.

O grafite, o Dj, o rap, o break, as gírias e dialetos em novelas e outros programas da Rede Globo, as lideranças desses movimentos em comerciais de bancos, telefonia celular etc mostram a busca por essas subjetividades, que são fundamentais para a produção capitalista. Mas eles não querem só o Hip Hop. Querem também o funk, o charme e demais manifestações que dêem a eles a tão desejada subjetividade que lhes interessa. A razão desse interesse é simples: a cultura urbana é produção de riqueza, e a metrópole é o espaço dessa produção.

Apesar de ser um espaço de realidades paradoxais, a metrópole sempre proporcionou o surgimento de movimentos culturais e sociais potentes. O hip hop é um grande exemplo disso: uma cultura forjada nas ruas, fruto da hibridização de linguagens e culturas que se cruzaram nos guetos da metrópole. O rap nasceu da fusão da cultura africana, jamaicana e americana. Já o break veio da comunidade porto-riquenha que residia nos guetos americanos, mas sofreu a influência da cultura negra dos guetos nova-iorquinos. Já o grafite, que surgiu de manifestações políticas estudantis em 1968, na França, também recebeu influências ao chegar a solo americano. O que quero evidenciar é que por traz das características internas de uma cultura estão os conflitos sociais, as interações e as inter-relações.

É importante lembrar que a cultura nasceu em meio ao caos social que assolava os Estados Unidos na década de 1970. Ou seja, a cultura hip hop representa nesse momento a resistência dos jovens às adversidades sociais vividas nos guetos, mais que isso, havia sempre uma ideia criativa para superar uma necessidade que surgisse. No Brasil, a cultura é sinônimo de hibridização, mestiçagem e antropofagia. O diálogo estreito com outros movimentos sociais e culturas urbanas potencializam mais ainda a cultura e, o que é mais importante, diversificam suas formas de luta e seu poder de criação e produção.

Por tudo isso, o capitalismo investe não só na cultura hip hop, mas em todas as redes e culturas, buscando extrair valor da cul­tura, do saber, do afeto e da sociabilidade. Para isso procura conectar-se a determinadas dinâmicas de produção do intangível. É nesse momento que assistimos a Nike fazer uma parceria com Central Única de Favelas (Cufa) ou com o rapper Mano Brow. Assistimos ao Santander buscando expandir seus serviços nas periferias utilizando a imagem do grupo AfroReggae ou a Nextel, utilizando o rapper MV Bill.

Recentemente o Metrô Rio promoveu a Copa Grafitti, com oficina ministrada com o grafiteiro Airá Ocrespo, para alunos da rede pública onde os alunos que se destacarem irão participar da pintura oficial dos muros das 15 estações do Metrô da linha 2. Fica uma pergunta: os grafiteiros que coordenaram os trabalhos de pinturas do muro serão reconhecidos como artistas e remunerados como tais? Os alunos das oficinas também serão remunerados dignamente?

Para o capitalismo contemporâneo conectar-se com essas culturas e com esses territórios, é conectar-se com as dinâmicas de produção do intangível, é buscar a fonte do valor que se encontra nas formas de vidas que se produzem e reproduzem continuamente nesses mundos. Formas de vida que são potentes manifestações de criatividade, luta e resistência no seio desse novo ciclo de acumulação do capitalismo globalizado. É conectar-se com atores sociais que hibridizam o saber e o fazer em novas e potentes soluções tecnológicas, sociais e culturais. Ou seja, é a aproximação com a potência da vida dos pobres.

Um exemplo dessa potência é o Movimento Enraizados, que tem sede no centro de Morro Agudo em Nova Iguaçu, em um espaço com 350m², com biblioteca, telecentro, estúdio de áudio e vídeo, lanchonete, auditório, cineclube e mais diversas atividades para os jovens e adolescentes. O movimento atendeu 120 crianças, 600 adolescentes e 180 jovens no ano de 2010, em projetos como o Pontão de Cultura Preto Ghóez Juventude Digital, Projovem Adolescente e Enraizadinhos. A Rede Enraizados é o Núcleo de Audiovisual que tem  produção e difusão de Filmes, Videoclipes, Músicas, Coletâneas, gravação e venda de CDs e DVDs; o Cineclube Enraizados, com foco no cinema nacional e documentários; Rede de Comunicação Alternativa, composta por fanzines, e-zines, jornais de bairros, internet, rádios comunitárias e livres.

Outro exemplo é o Coletivo Visão da Favela Brasil, que atua no Morro Santa Marta com diversas atividades para toda a comunidade. Entre as diversas atividades destacamos:Pintando o Morro: Toda semana convidados um Graffiteiro da cidade do Rio de Janeiro, para realizar o graffite dentro do morro Santa Marta. O Graffiteiro tem a liberdade para escolher o tema da pintura. Seja critica social ou entretenimento. Cria Filmes: Núcleo de Cinema, onde se criam filmes, reportagens, edições, oficinas de cinema. Em 2008, o Núcleo produziu de forma autônoma o Curta Metragem: 788 com 12 minutos de duração, que ganhou prêmio como melhor filme no Brasil Belo Horizonte, como melhor Imagem. E na Holanda, como melhor filme de ficção. Sessão Santa Marta: Cine Clubismo, realizado no bar cultural do Zé Baixinho, quinzenalmente. Na Sessão Santa Marta, são exibidos filmes nacionais e lati americano, com debates. – Gratuito. Jornal Comunitário:O Jornal Visão da Favela Brasil, é um periódico, de formato A4, de distribuição gratuita, dentro e fora do morro Santa Marta. Neste veículo, debatemos historia dos trabalhadores, favela, segurança publica, educação, e comunicação popular. VídeoTeca: Visão da Favela Brasil. Diversos filmes no acervo da videoteca, para empréstimos gratuitos.  Filme que retrata a historia da ditadura militar no Brasil, movimentos sociais, educação, segurança pública, sobre favelas, greves em São Paulo, hip-hop, nazismo e etc. Oficinas de Comunicação Popular: Ministram oficinas de comunicação Popular. Como montar uma rádio comunitária, divulgar os fatos na favela que mora, criar seu jornal comunitário, montar e alimentar um blog, postar fotos e vídeos na internet, usar o programa: Photoshop, para diminuir fotos e salvar em diversos arquivos. Biblioteca Evolução:promove empréstimos de livros, para os moradores do morro de forma gratuita. No acervo da Biblioteca está disponíveis livros com temas diversos como: Sociologia, pedagogia, comunicação, psicologia, política, cultura e história.

No ano de 2001, o rapper e ativista Fiell, integrante do Coletivo Visão da Favela, criou a grife Movimente-se. A proposta é produzir uma roupa que represente o pobre, vista bem, de bom material e que seja acessível para todos: Mcs, estudantes, trabalhadores em geral. E Por que Movimente-se? Movimente-se foi inspirado na frase da revolucionária; Rosa Luxemburgo: “QUEM NÃO SE MOVIMENTA, NÃO SENTE AS CORRENTES QUE O PREDEM”.

O que fica claro é que a criatividade está na metrópole e é um processo social fruto das interações e relações sociais. Fruto da miscigenação de linguagens, culturas, afetos. Mas precisamos ver a criatividade não como um processo excepcional, mas sim como a construção de toda uma sociedade. Construção de novas formas de atuar, produzir, organizar, intervir e consumir. Mas se a criatividade está na metrópole então o que é a metrópole hoje? A metrópole é o local da produção é o local do comum que se constitui pela cooperação e colaboração. A cidade é biopolítica. A riqueza não nasce mais da fábrica, mas das relações sociais organizadas de produção. Conforme afirma Antonio Negri “A metrópole é um mundo comum. Ela é o produto de todos – não vontade geral. Mas aleatoriedade comum”.

Dentro dessa nova dinâmica de produção de riqueza os movimentos sociais/culturais e os territórios produtivos, ricas fontes de produção, criação e inovação, ficam em evidência e tornam-se alvo do desejo do capitalismo contemporâneo que se mobiliza para capturá-los seduzi-lo e fazer uso deles ou até mesmo se apropriar dos mesmos. Uma vez capturados são domesticados e passam a servir de energia produtora alimentando o capital. Mas o assédio a esses movimentos e territórios não vem só dos representantes do capitalismo, parte também de organizações governamentais e não governamentais que se dizem contra o capitalismo, mas que não enxergam ou não conseguem enxergar essas manifestações como multidão, como um conjunto de singularidades que cooperam entre si, uma multiplicidade de grupos e de subjetividades. Algumas vezes não reconhecê-los como multidão é pura falta de conhecimento e a necessidade de trocar os óculos. Mas em muitas das vezes não reconhecê-los como multidão é a forma de exercer o poder sobre eles impondo a homogeneização e verticalização. Para tanto, basta oferecer uma bela ajuda financeira ou a ampliação de suas atividades e melhorias de seus equipamentos, na sua grande maioria precária e carente.

E ai fica um questionamento: qual o caminho para esses potentes atores sociais? Vejo como caminho a ser trilhado as Políticas como a Cultura Viva – Pontos de Cultura que é uma política capaz de reconhecer e de afirmar as manifestações que já acontecem nos territórios produtivos. É preciso reconhecer o que já tem nos territórios e dar aos meios uma política comum para que esses atores sociais continuem como singularidades que se relacionam com outras singularidades. Reconhecer as dimensões produtivas e criativas dos movimentos culturais é ir além de uma política cultural. A dinâmica de produção cultural é uma dinâmica fundamental numa economia do conhecimento que produz formas de vida a partir de forma de vida. Como já foi demostrado, para os movimentos culturais/sociais não falta produção, criação e inovação, faltam recursos para que tudo isso se multiplique. A solução eles tem: é preciso estimular e não bloquear essa criatividade essa capacidade de resposta, essa capacidade de se reelaborar e reinventar que já possuem, e são tão cobiçadas pelo capitalismo contemporâneo.

Conforme nos alerta Negri: “gozamos de uma segunda geração de vida metropolitana, criativa de cooperação e excedente nos valores imateriais, relacionais e linguísticos que produz. Eis a metrópole da multidão singular e coletiva”. Mas Negri vai além e afirma que é no interior da vida metropolitana que deve se iniciar a subversão do estado de coisas dado. Ou seja, a metrópole é também o terreno de êxodo por parte da multidão. Fica evidente que temos novas formas de lutas, organização e resistência e que o novo espaço metropolitano e suas dinâmicas colaborativas e cooperativas, propiciam as condições para construção de um comum que nos conduza a reapropriação da cidade e da vida. É com a multidão e com suas novas formas de lutas baseadas no êxodo que podemos pensar em um “novo mundo possível”.

Encerro minha reflexão com as palavras de Walter Benjamin: “As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes”. É no experimentar, inventar e criar que a multidão resiste. Da força da vida vem à força da produção que é a única maneira de lutar.

*Por Rocilei Silva

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