Algumas letras exaltam as figuras de bandeirantes e escravocratas, além de terem versos racistas
A nefasta exaltação a bandeirantes e escravocratas não se resume a estátuas espalhadas Brasil afora. Algumas letras de hinos estaduais elogiam essas figuras e também têm versos racistas. Basta ouvir o hino do Rio Grande do Sul, que detonou esse debate no primeiro dia do ano. Cinco vereadores de Porto Alegre (RS), todos em primeiro mandato e negros, permaneceram sentados quando o hino tocou durante a cerimônia de posse como um protesto contra os versos racistas.
“Mas não basta, para ser livre / Ser forte, aguerrido e bravo / Povo que não tem virtude / Acaba por ser escravo”, diz o trecho que motivou o protesto. Para Luiz Alberto Grijó, professor do núcleo de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a denúncia de racismo é pertinente. “As pessoas que advogam que isso tem um conteúdo racista – com as quais eu concordo – dizem que esse escravo estaria associado a uma pessoa sem virtude, quase seria uma não pessoa pela falta da virtude”, afirma Grijó.
No hino de Alagoas, os escravos também aparecem com uma conotação racista. A canção diz que o estado “não procria escravos / vence ou morre! / mas sempre de pé!”. Segundo Amailton Magno Azevedo, professor de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “a construção desses símbolos no Brasil sempre expressou a ideologia de classes letradas e, em um certo sentido, dos detentores de poder. Os hinos, as bandeiras, a construção de heróis no Brasil teve uma participação popular nula”.
É por essa falta de participação popular, segundo Azevedo, que aparecem com tanta frequência expressões preconceituosas e racistas nos signos que constroem a ideia de nação. Ele dá como exemplo o caso da bandeira da cidade mineira de Ouro Preto, que dizia “precioso ainda que preto” e foi alterada em 2005.
Outros hinos estaduais também exaltam os bandeirantes, igualmente homenageados em estátuas que foram alvo de críticas em 2020. No hino paulista – que evoca uma “São Paulo das bandeiras” –, ele “avança e investe” de norte a sul, de leste a oeste e então “doma os índios bravios”. No Piauí, foi a aventura de dois deles que “a semente da pátria nos traz”. O hino rondoniense diz: “Nós, os bandeirantes de Rondônia / nos orgulhamos de tanta beleza”.
“Esses homens pertencem todos a nossa elite”, afirma diz o historiador Euzébio Assumpção. “Por consequência disso é que se formam hinos de louvor aos bandeirantes e aos farrapos [no caso do Rio Grande do Sul].” Assumpção provoca: “É o imaginário de um pensamento da época que passa por décadas e décadas e vem até os dias de hoje. O que eles representam de fato? O pensamento dominante de uma elite”. O historiador lembra que desde a década de 1970 se discute o racismo nos versos do hino gaúcho.
Para Azevedo, a discussão lembra o debate sobre a retirada de estátuas que aconteceu com força no ano passado. Em sua opinião, ter uma figura como a do bandeirante Borba Gato homenageada em São Paulo, por exemplo, obrigou a população a lidar “com a evocação dessa memória única, exultante, orgulhosa, do bandeirante paulista, em detrimento de outras memórias que também habitaram e continuam habitando a cidade de São Paulo, como as memórias indígenas, negras, como parte fundamental”.
Em raras contrapartidas às letras que homenageiam escravocratas, há trechos antiescravistas em hinos de alguns estados do País. “Fluminenses, eia! Alerta! / Ódio eterno à escravidão! / Que na pátria enfim liberta / brilha a luz da redenção!”, diz o hino do Rio de Janeiro.
No hino de Santa Catarina, a intenção aparece em mais de uma estrofe: “cai por terra o preconceito / levanta-se uma nação”, “quebrou-se a algema do escravo / e nesta grande nação / é cada homem um bravo / cada bravo um cidadão” e “não mais diferenças de sangues e raças / não mais regalias sem termos fatais / a força está toda do povo nas massas / irmãos somos todos e todos iguais”.
De acordo com Cristina Scheibe Wolff, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, a diferença entre os hinos se dá pelo contexto histórico em que foram feitos. No caso catarinense, a letra é resultado de um momento abolicionista que o local vivia.
Os protestos contra os hinos considerados racistas vêm acompanhados de pedidos de mudança dos versos, assim como aconteceu na bandeira de Ouro Preto. “O hino é uma coisa viva, foi trabalhado ao longo desse tempo todo, recebeu arranjos – coisas foram suprimidas, provavelmente coisas foram colocadas. Nesse sentido, essa parte realmente tem uma conotação racista, é inegável”, diz Grijó sobre a canção gaúcha. “Estamos vivendo a emergência de uma intelectualidade que está levando para a arena da discussão pública a sua leitura desses elementos da cultura – e isso é fundamental.”
Segundo Amailton Magno Azevedo, o protesto no Rio Grande do Sul acontece num momento propício para essa discussão disparar no Brasil. “O debate que está posto em torno das questões do racismo, do machismo, das questões da sexualidade, não permite mais aceitar ou compactuar com antigos pactos de construção de nação que foram exigidos no passado”, diz Azevedo. “Esse debate sobre estátuas, que está correndo o mundo todo, questiona esses signos.”
Com informações da Folha de S.Paulo
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