Há cem anos, perdíamos Franz Kafka

 

Autor dos clássicos “A Metamorfose” e “O Processo” deixou claro, como poucos, que a realidade só pode ser compreendida por meio de parábolas e sonhos

Afinal, o que se passou pela mente de Franz Kafka (1883-1924) em seus últimos dias de vida no sanatório austríaco onde morreu há exatamente um século, em 3 de junho de 1924, a um mês de completar 41 anos? O testamento trazia uma exigência ao amigo Max Brod, a quem o escritor checo confiava seus direitos autorais. “Querido Max, meu último pedido: tudo que deixo para trás, na forma de diários, manuscritos, cartas, esboços e assim por diante, deve ser queimado sem ser lido”. Para nossa sorte, as ordens do autor não foram seguidas. Ainda assim, considerando a imensa distância entre fake news e licença poética, permito-me supor que Kafka teve pensamentos similares aos da poeta paulista Maria José Ávila: “Se tenho que partir, / (que) seja, então, de regresso / à casa de meu Pai, / deixando o sonho pela realidade, / uma realidade de sonho, o mundo perfeito da verdade.” O autor dos clássicos A Metamorfose e O Processo deixou claro, como poucos, que a realidade só pode ser compreendida por meio de parábolas e sonhos.

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A mais conhecida dessas parábolas está em A Metamorfose (1915), um clássico sobre preconceito e rejeição. Graças aos maus tradutores, acreditamos por décadas que o protagonista do conto, o caixeiro viajante Gregor Samsa, acordou, certa manhã, transformado numa barata. No Brasil, a banda Inimigos do Rei fez até sucesso com a música Uma Barata Chamada Kafka, de 1989. Em 2013, ao comemorar com um doodle o 130º aniversário do nascimento do escritor, o Google também reforçou a associação entre Samsa e uma barata. Mas A Metamorfose não esclarece com qual grande inseto Gregor efetivamente se parece. O texto original, em alemão, fala apenas em “ungeheueres Ungeziefer” – um “monstruoso verme”. Seja no Brasil, seja no mundo, os tradutores impuseram que se tratava de uma barata – e a trapalhada virou a regra.

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Idolatrado por dramaturgos – em especial os autores do “teatro do absurdo” –, Kafka só chegou aos cinemas, em 1962, pelas mãos de Orson Welles. A versão de O Processo para a tela grande foi estrelada por Anthony Perkins – que estava no auge por ter interpretado, dois anos antes, o vilão Norman Bates, de Psicose. O filme fez mais sucesso de crítica do que de público. Mesmo assim, Welles apontou O Processo como a melhor obra de sua filmografia, ainda que Cidade Kane, também de sua autoria, tenha sido eleito por 50 anos o melhor filme de todos os tempos na enquete decenal da revista britânica Sight and Sound.

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Kafka teria prometido a uma menina que ela receberia correspondências da boneca perdida no parque Steglitz, em Berlim. Na verdade, para aplacar a tristeza da criança, é Kafka quem escreve as cartas por três semanas, como se fosse o alter ego da boneca. Jamais conseguiram desvendar a identidade da garota. Mas livros e peças romantizam o encontro entre ela e o escritor. “Há realidade no sonho e há sonho na realidade”, disse o “pai da psicanálise”, Sigmund Freud. Essa contradição está presente no livro Kafka e a Boneca Viajante (2006), de Jordi Sierra i Fabra, bem como em peças homônimas.

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A morte de Kafka guarda muitas semelhanças com o fim trágico do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart. Ambos morreram jovem – e Mozart, mais ainda, aos 35 anos. Ao deixarem a vida, estavam no anonimato. Pesquisas recentes indicam que Mozart faleceu em 1791, em decorrência uma infecção bacteriana na garganta, que teria atingido os rins. Kafka, coincidentemente, morreu devido a uma tuberculose laríngea – sua garganta se fechou, e o escritor não conseguia mais comer. Nos últimos dias de vida, ele trabalhava na conclusão do conto Um Artista da Fome. O enterro em Praga, protocolar e esvaziado, foi similar ao de Mozart. Mas a posteridade fez bem aos dois gênios. Infelizes na morte, um e outro viraram gênios incontestáveis em sua arte.

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