Escrever para quem?

Escrever um livro é atravessar um extenso deserto. Durante a escrita, temos a impressão de que depois do ponto final nos espera um oásis com tâmaras e fonte de água fresca. Engano. Há um deserto ainda mais árido por vencer. E sem as miragens da criação.

 

Por Ronaldo Correia de Brito*

Divulgação William Faulkner referia um nervosismo atento, para que os personagens que passavam ligeiros por ele, não fossem embora sem registro William Faulkner referia um nervosismo atento, para que os personagens que passavam ligeiros por ele, não fossem embora sem registro

O sul africano J. M. Coetzee queixa-se dos personagens dos romances que carregamos durante meses, às vezes anos, às costas como um fardo. Alguns romancistas foram heroicos carregadores: Balzac, Tolstói, Dostoievski, Thomas Mann… José Saramago aguentou o peso até a velhice. Outros se desgastaram bem cedo. Tchekhov morreu com apenas quarenta e quatro anos e, nesse curto tempo, escreveu quinhentos contos.

 

William Faulkner referia um nervosismo atento, para que os personagens que passavam ligeiros por ele, não fossem embora sem registro. É necessário escrever sem parar, senão as miragens desaparecem. Igual aos sonhos, de que lembramos apenas fragmentos a que damos ordem narrativa, preenchendo com nossa invenção os hiatos da memória.

 

Paulo Roberto Pires, escritor carioca, viveu uma longa abstinência da sua escrita. Numa conferência em Recife, perguntou à plateia se precisamos escrever um livro. Parece que não é necessário, segundo ele. Mesmo assim, persistimos escrevendo, nem que seja para alimentar o mercado das editoras, que por sinal anda mais em baixa do que nunca. Ou por sobrevivência emocional e financeira. Dostoievski, que viveu alucinado e na miséria, escrevia para que o maior número de pessoas lesse os seus livros e porque precisava de dinheiro.

 

É preciso enxergar uma função prática na literatura, atribuir-lhe valor real, como fazemos com o trabalho de marceneiros, pedreiros, encanadores e eletricistas. O pintor italiano Giotto trabalhava com uma corporação de ofício: artesãos em douramento, pintura de pés, mantos, fundo azul de céu, pessoas simples como os caiadores de paredes, mais preocupadas com a subsistência do que com a sobrevivência da obra.

 

Os afrescos de Michelangelo, Rafael e Botticelli para a Capela Sistina não têm menos qualidade artística porque foram pintados por encomenda, a troco de um pagamento. A modernidade, ao mesmo tempo em que cobra a assinatura do artista, que gera um mercado de produção, que atribui valores baixos ou exorbitantes para as obras de arte, glamouriza o ato criativo, inventando uma aura de transcendência ou danação para os criadores.

 

O deserto que se segue à criação decorre do medo de ter escrito para ninguém, de não ser lido? Talvez por temor a esse castigo, Kafka exigiu que seus livros fossem queimados, já que poucos se interessaram em lê-lo, enquanto viveu. E por que alguns artistas de sucesso, aplaudidos pelo público, experimentaram uma frustração semelhante? O deserto espreita o escritor antes, durante e depois do ato de criação. Para o artista não existe sétimo dia, nem descanso.

 

*Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor

Fonte: Blog do autor

 

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