O programa denominado Escola sem Partido foi criado pelo advogado Miguel Nagib, em 2004, para combater um suposto processo de instrumentalização do ensino para fins político-ideológicos, partidários e eleitorais.
Por Bruno Costa*
Entretanto, é no ambiente político-cultural forjado pelas jornadas de junho de 2013, pelas eleições de 2014, pela crise econômica e pela campanha pró- impeachment fraudulento da presidenta Dilma que o programa Escola sem Partido conquista repercussão nacional, sendo reivindicado por movimentos conservadores como o MBL e apresentado como projeto de lei em diversas câmaras municipais, assembleias legislativas e no próprio Congresso Nacional.
Para sustentar a tese de que existe um processo de doutrinação esquerdista nas escolas brasileiras, Miguel Nagib explora uma pesquisa CNT/Sensus realizada em 2008, na qual 78% dos professores entrevistados responderam que a principal missão da escola é formar cidadãos.
Nagib considera que formar cidadãos ou despertar a consciência crítica de estudantes consiste em “martelar ideias de esquerda na cabeça dos alunos”, e por isso busca restringir a liberdade de ensino e aprendizagem, institucionalizar a censura e criminalizar docentes.
O programa Escola sem Partido afronta explicitamente o texto constitucional:
O art. 1° da Constituição Federal verbaliza que a cidadania e o pluralismo político são fundamentos da República Federativa do Brasil. O art. 3º ressalta como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
No âmbito dos direitos e deveres individuais e coletivos, o art. 5º da CF consagra a liberdade de manifestação do pensamento e a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Na seção da CF dedicada à educação, o art. 205 verbaliza que a educação, como direito de todos e dever do Estado e da família, visa o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Já o art. 206 consagra como princípios do ensino a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; e a gestão democrática do ensino público.
Quando analisamos o programa Escola sem Partido e os projetos de lei que tentam incorporá-lo ao nosso ordenamento jurídico, percebemos que esses projetos violam os dispositivos constitucionais supracitados.
Para tentar sustentar a tese de que existe um processo de doutrinação político-ideológica nas escolas, os ideólogos do Escola sem Partido terminam aderindo a uma concepção bancária do processo de ensino e aprendizagem, que transforma estudantes em recipientes vazios de vivências e reflexões, nos quais as professoras e os professores depositam seus conhecimentos e visões de mundo.
O PL 7180/14, de autoria do deputado federal Erivelton Santana, e o substitutivo apresentado pelo relator do PL, deputado federal Flávio Augusto, são variantes do programa Escola sem Partido, são variantes da tentativa de interdição do livre debate nas escolas.
Através do art. 3º, o mencionado substitutivo verbaliza que, no exercício de suas funções, o professor: I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; II – não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III – não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria; V – respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções; VI – não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.
Mas o que significa, na prática, apresentar de forma justa as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito de determinada matéria? Significa apresentar com suposta neutralidade o ponto de vista dos nazistas e dos judeus, sem emitir opinião negativa sobre o nazismo? Significa não caracterizar o regime instaurado no Brasil em 1964 como uma ditadura civil-militar? Esse dispositivo do projeto oculta a intenção da extrema-direita de reescrever a história do nosso país a partir de um ponto de vista reacionário.
O que significa, na prática, não prejudicar ou constranger os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas? Significa, por exemplo, avaliar positivamente uma redação na qual um estudante defende a violência contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros? Significa não combater o bullying no ambiente escolar quando praticado por motivação política, ideológica, moral ou religiosa?
O que significa, na prática, não incitar estudantes a participar de manifestações, atos públicos e passeatas? Quem definirá as fronteiras semânticas que separam os verbos “incitar”, “convidar” e “informar”? Trata-se de uma violação evidente do dispositivo constitucional que consagra a formação para o exercício da cidadania como um dos objetivos da educação.
*Bruno Costa é assessor da Liderança da Minoria e Oposição no Senado Federal.
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