Em Defesa da Língua Materna

A cada 15 dias perde-se uma língua. “Já vai tarde”, dirão os que temem a repetição da Torre de Babel e os apóstolos da globalização cultural

Este profissional da língua que lhes escreve tem sido convocado amiúde para participar de debates com professores de literatura e gramáticos e neles se tem situado na isolada posição de defensor dos cânones, quase sempre tratados nesses encontros como autênticas teias de aranha. Sente-se ele, então, um crítico de arte que, além de não aceitar essas instalações que pululam por aí, só considera válidas pinturas rupestres. Num desses encontros, na Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), um colega, Rodolfo Konder, contou ter lido em algum lugar que, embora tenha crescido muito de então até nossos tempos, a humanidade, que já falou 150 mil línguas diferentes, hoje se expressa em apenas 6 mil. A cada 15 dias, segundo Konder leu em tal relato, perde-se uma língua.

Já vai tarde, dirão os que temem a repetição do fenômeno bíblico da Torre de Babel, os apóstolos da globalização cultural e os entusiastas do esperanto, entre outros profetas desse Apocalipse. Ocorre, porém, que, quando uma língua some, desaparecem com ela as lembranças de uma raça, a cultura de uma tribo e a memória dos contatos primitivos de um povo com a civilização. A língua materna é repositório de saber e expressão de sentimentos. Belo texto do escritor argentino Juan José Saer que a Folha de S. Paulo publicou no último domingo de Carnaval, mostrando que as grandes obras da poesia universal não foram escritas em algum idioma nacional, mas sempre na língua original, aquela que o autor bebera no regaço materno nos anos formadores da primeira infância. E muitas dessas línguas, que estão em franca extinção, agonizam aqui mesmo no Brasil, ao alcance de nossos ouvidos desatentos. Sim, mas não o português, dirão os idiotas do óbvio. De fato, os dialetos agonizantes em nosso território são remotas manifestações toscas de povos primitivos que se extinguem juntamente com elas e as florestas onde vivem. Nada a comemorar. Infelizmente, do ponto de vista pragmático, também há não muito a lamentar.

A última flor do Lácio – Quanto ao português, idioma nacional e língua materna comum à acachapante maioria de nossa população, ele passa bem, obrigado, embora vez por outra vilipendiado por algum político ignorante, professor populista ou escritor petulante. Um cultivador do óbvio ululará: a língua de Camões não está em vias de extinção, mas apenas se transforma, em estado de mutação permanente, e se amolda, afina, aos interesses do povo que a fala, liberta dos cânones elitistas que a agrilhoavam.
Só que nosso vernáculo é debilitado por três moléstias gravíssimas. A primeira é a autodepreciação. Ela se manifesta no verso mais famoso em que ela mesma foi cantada: “última flor do Lácio, inculta e bela”. Olavo Bilac, príncipe dos parnasianos, que perdoe, mas “inculta” a língua de Camões, Eça e Machado? Vamos e venhamos: “inculto” é o latim vulgar em que se escreve a quase totalidade dos anúncios publicitários e das notícias dos jornais e até alguns romances badalados pela crítica estruturalista de nossos tempos – verdadeiras instalações em tinta sobre papel. Nada inculto e muito belo, contudo, é o instrumento de trabalho de escritores como os gênios acima citados, Euclydes da Cunha, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, que infelizmente não estão mais em condições de combater o bom combate da defesa dele.

Tropeçando na língua de mamãe – Está certo que muitas vezes a língua inculta e nada bela – que atrás dele se esconde – ganha legitimidade acadêmica. O mais premiado romancista brasileiro contemporâneo, Bernardo Carvalho, professa seus princípios disformes, levantando a poeira dos aplausos da crítica, com Luiz Costa Lima na comissão de frente. A obra vertida para as imagens da televisão de Márcio de Souza, um fabulador extraordinário, mas um trôpego construtor de frases, também se inclui na galeria dos discursos oficiais lavrados em formas toscas e muitas vezes torpes. Fernando Collor, de ofício jornalista, consagrou em seus pronunciamentos oficiais o uso errado da palavra “penalizar” no sentido de punir, apenar, quando só poderia significar ter pena, ter dó.
Nesse particular, o atual chefe do governo tem exagerado no fornecimento de tropeços na língua aprendida da mãe, que ele tanto venera. Um dia destes, perpetrou: “a gente tem que ser gentis”. Poder-se-ia dizer que poderia ter sido pior se ele tivesse dito: “a gente temos que ser gentil”. E deve ter pensado nisso o professor Pasquale Cipro Neto ao registrar o vernáculo rotineiro dos incontáveis pronunciamentos públicos de Luiz Inácio Lula da Silva como “correto”. Não é, aliás, o único a fazê-lo. Num debate travado no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, um professor da USP, rebatendo uma brincadeira que o autor destas linhas fez com a mania do presidente de flexionar advérbios – usando palavras inexistentes como “menas” –, argumentou que o Conde (promovendo o pobre visconde a um grau maior de nobreza) Almeida Garrett já o fazia. Não restou a este polemista outro recurso além do de garantir que não foi nos textos de Garrett ou de qualquer outro clássico da língua que Sua Excelência se inspirou para criar seus “neologismos”.

Sendo monoglota, o atual presidente da República, contudo, nos tem poupado pelo menos do vexame que muitos de seus antecessores nos impingiam falando línguas estrangeiras. Embora seja um escritor de recursos para lá de razoáveis em português, José Sarney produziu pérolas inesquecíveis em seu “portunhol” capenga – dialeto inexistente ao qual o citado Fernando Collor deu contribuições inestimáveis, como o célebre duela a quien duela. E mesmo o fazendo por falta de instrução adequada, Lula pelo menos não repete aqueles espetáculos de “caipira complexo de inferioridade explícito” de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, que adorava exibir seus dotes em inglês e, principalmente, em francês, mesmo não tendo o português muito castiço para se expressar com correção.

O populismo elitista de esquerda – Há ainda uma terceira doença, esta talvez a mais grave de todas, a ameaçar o débil organismo de nossa língua culta e linda. É o populismo elitista de esquerda que assola a Universidade brasileira e já ganha foros de legitimidade acadêmica: a teoria da inexistência do erro e a contestação armada dos cânones gramaticais.

Será conveniente dissecar a expressão acima usada. Populismo, por quê? Porque pretende dar às formas populares coloquiais de uso comum da língua poderes para predominar sobre as formas cultas, acusadas de elitistas e excludentes. Mas elitista como? Sim, porque o ensino dos cânones gramaticais é a única forma possível de permitir alguém dominá-lo e só assim ter acesso ao amplo e plural universo da língua escrita e impressa. O populismo de quem acusa o cânone de impedir o acesso do pobre ao poder de comunicação dado pela língua é que é excludente, pois nega ao mais humilde a porta de entrada de tesouros de rica beleza encastelados nas bibliotecas. A teoria absurda da inexistência do erro gramatical não apenas dificulta a comunicação pela implantação da algaravia, ou seja, a anarquia total dos significados dados às palavras e locuções, ela também inutiliza a fortuna artística e cultural e o cabedal de conhecimentos produzidos em obediência aos cânones da gramática.
O tônico para debelar os efeitos debilitantes desses três males é um só: a boa língua materna a serviço da melhor literatura. Para essa guerra insana ainda podemos convocar poetas como Maria Carpi, Mário Chamie, Ferreira Gullar e Alberto da Cunha Melo e prosadores como Sinval Medina, Deonísio da Silva, Moacir Japiassu e Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque. E estamos conversados.

 

José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor, autor do romance O Silêncio do Delator.

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