Pediram que eu procurasse alguma coisa sobre açúcar em Portugal, mas o tempo era escasso para pesquisa. Logo achei uma receita de sopa de pedras ensinada por tia Gertrudes, uma sábia velhota da ilha Terceira, mas era salgada, não servia. Foi daí que me apareceu essa rapariga a se lamuriar, achei interessante o seu modo de falar e fui parando pelo caminho.
Era mulher, ainda jovem, quase uma miúda. Vinha vestida de freira ou assim parecia. Largou o cesto de laranjas que tinha enfiado no braço e deixou-se cair sentada à beira do riacho.
“Não se me dava de sentar um poucochinho”, murmurou, enquanto desamarrava suas botas de cordovão preto. Olhou para os lados, como que medrosa, e persignou-se. “Ai, que louco alívio!”. Enfiou os pés na água e espichou bem as pernas. Sentiu que a alma se lhe esfriava toda.
Monjas! Boa lhe tinham aprontado. Queria é estar ao pé da mãe, a fazer a açorda dos hómes com migalhas e coivinhas e não a morar ali, a última das criadas de 80 freiras, a mais escrava, a ouvir sermões e matinas e vésperas que não tinham fim.
Se fosse só ir à missa louvar o Senhorzinho… mas era o trabalho pesado da doçaria que a matava aos poucos.
Gostava da cozinha, mas é que ali havia que se deitar açúcar em tudo, parece que as monjas nas suas fidalguias desconheciam o sarrabulho, a linguiça, o toicinho de fumo. Exageradas é o que eram. Ai, eu cá me benzo. São lambareiras, Vossas servas!
Trouxe de volta à terra um dos pés e o massageou com furor enquanto rezava pela alma do tio que a trouxera p’ó convento.
“É que não sabia o tio das modas, imaginava ele que as monjas passavam o dia a rezar e fazer doces e caridades. Será que o modo de nomear os doces não bastara para alertar o tio? Bolinhos do amor, orelhas-de-abade, beijos, foguetes, lérias, velhotes, papos-de-anjo, barrigas-de-freira!!! Ah, deixa-me rir. Frioleiras e mais frioleiras era do que gostavam as freiras, a polvilhar canela e açúcar em tudo.”
E a ela, pois, tocava-lhe avivar o lume, arear as panelas, arrancar-lhes do fundo a grossa calda de açúcar queimado. E mexer ovos, mexer ovos, mexer ovos. Ai dela se não mexesse as pastas d’ovos antes que arrefecessem, enchiam-se de gafanhotos, estragavam-se.
Com os braços doídos, à noitinha, nem rezar a Deus conseguia. Exausta, sonhava com o bater das cascas nas paredes da vasilha, separando a clara das gemas. E a madre despenseira sempre a vigiar e a ralhar por “dá lá aquela palha”, a suspeitar que lhe surrupiavam o açúcar. Ralava-se sem razão, pois não lhe ocorreria fazê-lo, jamais. Só de pensar em doces tinha náusea.
Pôs os olhos lá longe, o céu firme, as parreiras de uvas pretas e suspirou com um pouco de angústia e de gozo a esfregar o outro pé molhado e dolorido.
Pândegas eram as monjas, a se entupirem de doces nos dias magros, a convidarem gente todos os dias, a saírem p’á fora do convento quando bem se lhes dava na telha, a palrar das janelas com quem passava com seus cabelos empoados. A ela, à camponesa, cortaram-lhe as madeixas no primeiro dia, nada mais comia do que uma ração ordinária, um pão com marmelada na merenda, um pouco de guisado que sobejara do almoço, uma bolacha a trincar. E lá a priora e suas engraçadinhas arranjavam muito e do bom com que lamber os beiços.
E quem é que ia à horta, ao pomar, ao moinho? Quem carregava às costas os caixotes de doce que partiam para todo o reino como mimos? Mimos daqui, mimos pra lá. Quem descascava as castanhas para o leite com castanhas que davam aos pobres?
Começou a cantarolar baixinho, absorta. Vedes o maio, maio, mocinhas, vamos à caixa, das castanhinhas. Respirou fundo e sentiu o cheiro da lenha e do caldo que estava a apurar desde muito cedo. Tinha ainda de varrer o forno bem varrido, botar-lhe as brasas ao borralho para os biscoitos. Começou a enxugar os pés na barra da saia de baetilha e a folgar os cordões das botinas para calçar sem dificuldades.
“Macacos me trinquem, Senhor, se não é fingimento dessas monjas afidalgadas, a quem tudo assusta, fricoteiras, que só sabem suspirar e meter doçaria goela abaixo, a dizer que são elas a fazer os doces dos conventos.
Olhe, Senhor, sempre lhe quero dizer se não faço mais virtude a me esfalfar do que elas a darem de comer ao bispo. E a enrolar alfenins com mãos de fada, a recortar rendas de papel e a dispor doces em caixinhas…
Às vezes, Senhor, fico dando tratos à bola, caracolando idéias nessa minha cachimônia, que chego a perder o sono. Aí rezo. Sei que a Deus Nosso Senhor o devo, não me faltes. E um dia desses queria oferecer p’ó Deus Menino uma sopa dourada que a avó me ensinou. E lhe apeteceria comê-la inteira, tão boa é, e iria a ela como São Tiago aos moiros… Uma sopinha do Jesus se babar, achar de truz, d’arromba, regalar-se e premiar-me com um sitiozinho aos céus!”
Levantou-se, pegou a cesta. Com a mão vaga começou a desfiar o rosário um pouco melado de calda doce e, refrescada, foi andando em direção aos sinos.