Direito Autoral: o papel do ECAD

Cristina Saraiva

 

 

 

Todo mundo conhece ou já ouviu falar do ECAD: Escritório Central de Arrecadação de Direitos. Entretanto, mesmo entre os músicos, pouca gente conhece bem seu papel, sua forma de atuação e os problemas que atingem o órgão.

 

Apenas para situar a questão, vale dizer , de forma simplificada, que Direitos Autorais são aqueles que os autores de obras intelectuais detêm sobre suas criações . São protegidos por leis específicas (no Brasil, a Lei  9610/98) e por convenções internacionais, das quais o Brasil é signatário (Convenção de Roma e Convenção de Berna)

 

A primeira coisa a ser dita sobre o ECAD, é talvez a estranheza de sua situação jurídica: trata-se de um órgão de natureza privada, que recebeu por lei federal o monopólio da arrecadação de direitos autorais de execução pública. Ainda do ponto de vista jurídico, ele encerra uma outra contradição: ainda que a associação , por força de nossa Constituição, seja livre, para receber o seu direito , o autor deve obrigatoriamente se filiar a uma das sociedades autorais existentes.

 

O ECAD é administrado por 11 sociedades autorais, sendo que  dessas apenas 6 , detentoras dos maiores volumes de arrecadação, têm direito a voz e voto . São elas: Abramus, Amar, Sbacem, Sicam, Socimpro e UBC. Todas as discussões sobre regulamentos, métodos de arrecadação e distribuição e seus valores correspondentes, são debatidos na Assembléia Geral do ECAD, e o voto é proporcional ao volume arrecadado por cada sociedade – vale dizer que a sociedade que arrecada mais acaba determinando a política de arrecadação e distribuição. Há muitos anos, a sociedade que detém a maioria é a UBC, sendo portanto a que tem maior parcela da responsabilidade nas diretrizes que orientam a atuação do ECAD.

 

Sobre os Direitos Autorais em música, devemos dizer que se dividem em dois tipos: os autorais propriamente ditos e os conexos. Os autorais , que representam 2/3 da renda da música, destinam-se aos autores e seus editores, em uma proporção variável de acordo com o contrato estabelecido entre as partes, mas que normalmente fica em torno de 25% para os editores e 75% para os autores. Já os conexos, que representam 1/3 da arrecadação, se dividem em 41,7% para o produtor fonográfico ( entenda-se aqui a empresa que registrou o ISRC dos fonogramas junto ao ECAD), 41,7% para o intérprete, e o restante rateado entre os arranjadores e os músicos participantes.

 

A questão da arrecadação – A atuação do ECAD diz respeito à arrecadação e à distribuição dos direitos às diversas sociedades autorais, que se encarregam de repassar a seus associados. Para  a administração e desenvolvimento de uma logística para arrecadação e distribuição, o ECAD retém um percentual de 18% sobre o valor arrecadado. A Sociedade, por sua vez, fica com 7% pela intermediação e repassa o restante, trimestralmente, a seus associados. Aliás, vale lembrar que o ECAD não realiza distribuição direta. Ele apenas arrecada e repassa às Sociedades Autorais, essas sim, responsáveis pelo repasse aos autores.

 

O sistema de arrecadação e distribuição enfrenta, porém, desde sempre, grandes desafios. Quem for conferir no site do ECAD, verá que várias informações fundamentais não constam ali. A começar pelo método de aferição da execução pública.

 

Os valores cobrados pela execução obedecem a critérios definidos pelo próprio ECAD, e levam em conta a importância da música para a atividade ( “indispensável’, “necessária” ou “secundária”) , a periodicidade da veiculação (“permanente” ou “eventual”)  e se a apresentação é “feita por música mecânica ou ao vivo, com ou sem dança”  (www.ecad.org.br)

 

Existem diferentes formas de se aferir a execução. Parte é feita de forma automatizada,  parte por escuta, e parte pelas planilhas enviadas.

 

Se o controle  de forma eletrônica e automática é muito mais confiável e precisa ser expandido até chegar aos 100%, as outras formas são de uma fragilidade assustadora para um órgão que movimenta somas tão vultosas de dinheiro, por monopólio legal: métodos primitivos de escuta por amostragem lançam ao acaso  o direcionamento do direito arrecadado. E traz ainda um outro problema, que é confiar a ouvidos nem sempre atentos a anotação e repasse da informação.

 

Assim, muitas vezes sucede que o responsável pela escuta não identifica bem o nome ou os autores da música citada, ou troca uma palavra no título, ou anota uma palavra com a grafia errada e isso é suficiente para que a música vá cair na lista de músicas com “crédito retido”   músicas que não conseguem ser identificadas pelo banco de dados do ECAD). Essas músicas ficam nessa categoria por cinco anos, à espera de identificação. Se passado esse tempo ela não for identificada, sua arrecadação correspondente é distribuída entre as 650 músicas mais executadas! (isso equivale a dizer, naturalmente, que autores menos conhecidos de músicas menos executadas – normalmente o que cai no “retido” –  com o pouco que deveriam receber, engrossam a arrecadação dos mais executados).

 

Se somarmos a essa dificuldade de escuta o fato de nem sempre as rádios mencionarem os autores das músicas (como reza a lei do direito autoral), temos  também que músicas com títulos iguais, em geral, ficam creditadas às mais conhecidas.

 

No que diz respeito ao envio de planilhas, a questão também é complexa, pois pressupõe uma honestidade em sua confecção que nem sempre é observada ou pode ser comprovada. Afinal, não há nenhum método confiável de verificação da veracidade das planilhas e todo tipo de manipulação passa a ser possível.

 

Quando a arrecadação é de usuários que se enquadram como  “usuários gerais” (  academias de ginástica, cinemas, boates, lojas comerciais, bares, restaurantes, hotéis, supermercados, shopping centers, clínicas, etc.) a situação complica-se ainda mais. Afinal, o valor arrecadado não tem destinatário certo. Um exemplo, para que se entenda melhor: o condomínio de um hotel paga uma taxa mensal ao ECAD para tocar música ambiente. Entretanto, torna-se praticamente impossível o repasse da listagem das músicas que foram executadas – e seus respectivos autores –, pois o rádio pode ficar sintonizado em diferentes emissoras durante um mesmo dia sem qualquer possibilidade de controle.

 

Assim, um órgão que tem do Estado o monopólio legal da arrecadação de direitos e que arrecadou em 2005, segundo seu site, R$ 254.747.161,25 , tem os destinatários  de sua grande arrecadação, em grande parte,  nas mãos de ouvidos mais ou menos atentos e preenchedores de planilhas mais ou menos fiéis. Isso porque o sistema de controle automatizado ainda não está amplamente implementado e não há uma fiscalização e nem auditoria externa para checar a veracidade das informações prestadas.

 

Não por acaso, os músicos reunidos na Câmara Setorial da Música, em 2005, tiveram como principal reivindicação na questão do Direito Autoral a criação de um órgão de controle externo ao Escritório de Arrecadação.

 

Um outro problema gravíssimo no campo da arrecadação é o alto índice de inadimplência. Numerosas rádios, TVs e demais usuários simplesmente não pagam o ECAD e hoje em dia há mais de 9.000 processos em andamento. O curioso é que entre os inadimplentes, encontramos inclusive órgãos públicos. Para os mais desconfiados, poderia haver inclusive uma conivência do ECAD com a inadimplência no sentido de favorecer advogados e alimentar essa indústria.

 

Teorias conspiratórias à parte, o fato é que é inadmissível o nível de inadimplência, bem como a resistência ao pagamento mesmo quando a Justiça assim determina.Muitos veículos inadimplentes se utilizam da desculpa de que o que é cobrado não chega ao autor.

 

No Congresso Nacional, tramitam atualmente vários projetos de lei buscando  legalizar o não pagamento para as mais diversas atividades e veículos. Da tribuna, alguns parlamentares  repetem o discurso de muitos veículos e instituições inadimplentes de que as taxas não beneficiam os autores. Se a afirmativa pode ser muitas vezes real, é curiosíssimo que parlamentares  adotem publicamente a desculpa,  deduzindo  simplesmente que a solução é o não pagamento. Por esse raciocínio torto, e por analogia, uma vez que o dinheiro dos impostos que pagamos muitas vezes são desviados – ou não chegam onde deveriam –  , poderíamos então propor que simplesmente não houvesse mais nenhum pagamento de imposto.

 

O pagamento do direito autoral , além de direito do criador, é muitas vezes sua forma única de sobrevivência. Logo, é fundamental que ele seja bem observado e controlado. É importante ainda que se faça uma campanha de conscientização da sociedade, no sentido de respeitar esses direitos, alertando para a importância do papel do criador e a necessidade de se proteger seu meio de vida, para que ele possa seguir criando.

 

Cristina Saraiva é compositora, produtora fonográfica e membro do Núcleo Independente de Músicos.

 

http://culturaemercado.locaweb.com.br/setor.php?setor=3

 

 

Cristina Saraiva

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