Desde quando se bate o pandeiro

 

 

 

Hoje em dia — isso todos sabemos — pandeiro não pode faltar nos grupos musicais de nossa terra. É ele peça de primeira-mão em qualquer batucada de morro. Aliás não se pode entender um batuque sem a sua presença ridente. Até mesmo nas bandas de congo, onde ronca a cuíca, onde bate o tambor, lá está, entre os dedos dos homens, o pandeiro a vibrar. Também está nas folias de Reis, e também trepidante no ticumbi de Conçeição da Barra. Enfim, bate-bate o pandeiro em todos os grupos musicais, carnavalescos ou não.

 

Mas, tornemos à mesma pergunta: desde quando batem o pandeiro? De que canto, perdido no mundo, cá nos veio o sonoro instrumento?

 

O pandeiro, leitor folião, é mais velho do que muitos pensam. É o que vou tentar pôr bem claro, fugindo, todavia, ao ritmo de samba em que, por influência de Momo, ia correndo este rabisco…

 

Com o mesmo formato circular, com os mesmos enfeites de fitas, com o engaste de guisos ou rodelas de metal, usaram-nos homens e mulheres (veja bem: mulheres) nos serões musicais da Idade Média. Pelo menos, até aí chegou a nossa busca.

 

Num livro grande e vistoso História da literatura portuguesa ilustrada, sob a direção de Albino Fozjaz Sampaio (Lisboa, 1929), no volume 1, páginas 107, 115,116 e 117 há estampas medievais que representam, nitidamente, homens e mulheres (estas mais que aqueles) tocando pandeiros. Um desses clichês (p.116) mostra uma “rapariga com pandeiro de guisos, sentando num escabelo”.

 

Essas gravuras foram tiradas — segundo se informa — do manuscrito das Cantigas de Afonso X, existente no Escorial. Ora, Afonso X, o rei sábio, viveu entre 1221 e 1284, no século XII portanto.

 

Mas — retrucará o leitor incrédulo — a gravura poderá representar um instrumento musical que, naquela época, outro nome teria, e não o de pandeiro.

 

Nada disso. O instrumento é pandeiro sem a menor dúvida. E o nome do mesmo pandeiro era. Sabe-se disso, através das poesias da época. Num livrinho informativo e precioso Poesia juglaresca y juglarés, de Ramón Menendez Pidal (coleção Austral, Buenos Aires, 1942), podem-se ler algumas cantigas do século XIV, onde se encaixa o pandero. Uma delas do famoso Arcipreste de Hita (ano de 1330), ao falar das cantaderas diz (p.36):

 

Desque la cantadera

dize el cantar primero

siempre los piés bullen

e mal para el pandero

 

Noutro cantar do mesmo autor, consta relação minuciosa de instrumentos musicais da época: atambores, guitarra morisca, laúd, salterio, viuela, harpa, flauta, bandurria, aisbales etc. e também “el panderete”. (p.45).

 

Nas minhas leituras de velhos textos grifei o pandeiro na seguinte letrilla de Alvaro Fernandez de Almeida, um dos poetas que floresciam antes de 1511:

 

“Tango vos, el mi pandero

Tango vos, y pienso en ál

Si tu, pandero, supiesea

Mi dolor y le sintieses

El sonido que hicieses

Seria llorar mi mal.

 

Cuando taño este instrumento

Es con fuerza de tormento

Por quitar del pensamiento

La memoria de este mal.”

 

Essa poesia figura na Antologia española, coleção de poesias líricas ordenadas pela romanista Carolina Michaella (Leipzig, 1875, p.38).

 

Em Gil Vicente, não será difícil deparar soando ou tangendo o pandeiro. No Auto dos quatros tempos, por exemplo (Obras completas. Coleção Sé da Costa, Lisboa, 1951, p.113):

 

“Todos van hoy adorar

al criador poderoso

que és nacido;

las aves con su cantar,

y el ganado selvinoso

com bramido

los selvaginos bestiales

con olicorne pandero

dan loores”

 

Também no Auto pastoril português, representado em 1523, Gil Vicente mencionou o pandeiro (idem, p.169):

 

“… este sahirá a terreiro

com hua regateira baça.

que, quando vende na praça

tange às vezes hum pandeiro…”

 

O leitor, se interessado, catará outros exemplos na obra vicentina.

 

Mas, não só os poetas falam no pandeiro. Prosadores também. Por exemplo: No Lazarillo de Tormes, novela picaresca publicada em 1554, se faz referência ao ofício do “maestro de pintar panderos” (Col. Austral, Buenos Aires, 1948, p.137). E na Arte de furtar, que tudo indica seja da autoria de Francisco Manuel de Melo (século XVII), vamos encontrar uma frase-feita, empregada, na época, com valor de provérbio: “… e ao sobredito diz que durmo descansado que em boa mão jaz o pandeiro” (Ed. Garnier, anotada por João Ribeiro, Rio de Janeiro, 1919, p.201).

 

Esse provérbio consta do Rifoneiro português, de Pedro Chaves (2ª ed. Porto, 1945, p.160) e também do Dicionário da Real Academia da Espanha (17ª ed. Madri, 1947) no verbete Pandero: “En buenas manos está el pandero”. Aí mesmo se encontra outro adágio que diz: “No todo es vero lo que suena el pandero”, refrão “que exhorta a no ercer ligeramente lo que se oye, especialmente al vulgo, que per lo comum habla sin reflexión oi reparo”. Pobre vulgo…

 

Mas, chega de falar no e do pandero. É melhor, muito melhor ouvir tanger o pandeiro, principalmente neste, em plena folia momesca.

 

Vá, pois, leitor folião, vá por aí pandeirar, que eu direi, como os velhos. “Em boas mãos jaz o pandeiro”.

 

 

 

(Neves, Guilherme Santos. “Desde quando se bate o pandeiro”. A Gazeta. Vitória, 12 de fevereiro de 1956)

 

 

 

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