Da Teoria e Da Prática 2

 

 

Por Ivo de Souza

Ele, Leonardo, andava, naqueles tempos, com um caderninho e uma caneta no bolso. Era escritor. A qualquer hora poderia surgir uma idéia fantástica e para que não a esquecesse a anotação era indispensável. Além disso, anotava também fatos curiosos que via na rua. Mas nesse dia a prática sobrepôs a ociosidade de qualquer pensador.

Estava sentado na escadaria da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado, tentando buscar uma idéia, mas esta se comporta como uma dama, que, ao esquivar do seu pretendente, o seduz ainda mais. A igreja é grande, com imponentes pilares redondos na frente, fazendo um estilo neoclássico. A rua, nessa seis horas da tarde de um dia de semana, estava bastante movimentada. Pessoas fluíam com passos frenéticos a todo sentido; carros impacientes buzinavam no trânsito que não transitava; um homem vendia churros na esquina numa tentativa de adocicar a amargura de uma cidade grande; e uma velha solitária buscava suprir sua solidão alimentando pombos, dando assim um ar  romântico à cena.

Leonardo parecia ser a única pessoa parada, numa contemplação poética e preguiçosa. Entretanto não estava tão parado assim, pois cada acontecimento instigava um pensamento reflexivo nele: seu cérebro era a única parte do seu corpo se movimentava. Tentava tirar nos gestos maquinais dos urbanos alguma inspiração para sua obra. Até então, nenhum fato e nenhum pensamento excepcional sucedia-se. Mas olhou para seu lado e viu uma pessoa ou coisa parecida que se arrastava na calçada. Se um astrônomo corre ao telescópio para observar um eclipse, aqui ele faria o mesmo, pois logo pegou seu material de trabalho: papel e caneta na mão. A pessoa, que não se sabia se era homem ou mulher, arrastava-se no chão em direção à autopista. Chegou ao meio-fio e não parou; continuou sua migração ao asfalto. Ele anotava tudo: a não identificação do sexo; o aspecto imundo; o arrastar-se desesperado. Quando já estava na rua os carros que passavam se desviavam e alguns transeuntes pararam para observar. Um homem puxou o individuo para a calçada e, depois, limpou as mãos, ou melhor, lavou-as como se tivesse cumprido sua missão. Mas não adiantava. Novamente, com muito sacrifício, buscava um excedente de energia para se movimentar ao trânsito. Desta vez, chegou bem mais na frente. O escritor registrava tudo como um repórter de jornal sensacionalista. Mas, se antes era apenas um observador imparcial, agora já começava a comover-se e se preocupar-se com aquele ser, que nem ao menos podemos definir como ser semelhante, pelo menos no aspecto. Os automóveis tangenciavam o corpo e a qualquer hora seria atropelado ou atropelada. Mais pessoas pararam para observar. Todos falavam, comentavam muito… Ninguém fazia nada! O espanto era geral. Um outro, talvez por querer aliviar algumas de suas aleivosias perante Deus, puxou o homem ou mulher para trás. Pegou pela camisa com certa repugnância. Deus com certeza veria esse esforço humano e se realmente fosse justo o daria alguns créditos. Não havia nenhum policial por perto. Nada se podia fazer. Todos olhavam atônitos. “Talvez queira se matar”, surgiu entre os comentários. O fato é que aquela pessoa queria meter-se entre os carros e, ao que está claro, não era para atravessar a rua em sinal verde, porque estava apressado para marcar o ponto no trabalho. E puxava-se, arrastava-se, esfolava-se… Misturava-se com as rodas, com o gás carbônico dos canos; fundia-se no asfalto frio e duro e, exceto pelo o seu movimento intencional, parecia ser matéria inanimada, ou então, para não ser tão injusto, uma lesma que tenta fugir inutilmente de um predador.

“Eu tenho que fazer algo, ficar aqui escrevendo não adiantará em nada”, esta foi a última anotação do escritor. Levantou-se da escada; foi até o mendigo, indigente, homem ou mulher, enfim, a coisa e a pegou nos braços. Olhou bem nos olhos dele ou dela. Eram como se fossem uma lama, sem nenhum brilho. E pareciam dizer-lhe algo como: deixe-me, deixe-me no chão, deixe-me ir para o lugar da onde eu vim, da terra, do chão. O corpo exalava um cheiro fétido de suor, urina, cachaça que misturados fazia-se crer que em vida já era animal em putrefação. Leonardo subiu a escada da igreja e o pôs lá em cima, em frente ao portal da casa de Deus. Sim, ali seria um lugar bem mais seguro! Quis falar com o padre mas a igreja estava fechada. Falou energicamente com o indivíduo para ele ou ela ficar ali e não descer para a rua. Mas provavelmente aquele corpo já não escutava mais nada. Deu as costas e desceu. Os curiosos, que contemplavam (sim, contemplavam, talvez essa palavra seja mais digna, Platão bem o sabe) o acontecimento, cumprimentaram-no pela atitude bela e boa que praticou. Mas não diziam – ou pela formalidade que o contato do dia-a-dia com pessoas estranhas nos impõe, ou pela vergonha de dizer certos pensamento que se tem – que ele era muito corajoso por ter pego naquele ser nauseabundo. Entretanto fora uma atitude nobre. Enquanto recebia elogios de pessoas limpinhas, cheirosinhas, bonitinhas e, sobre tudo, distintas, olhou para cima e, subitamente, a coisa levantou-se cambaleante deu um grito (só então percebeu-se que era um ser humano) e se lançou na escada, rolando assim seu último instante de vida. O sangue escorreu pelo meio-fio. Os outros fizeram caretas. Os olhos  ficaram abertos, mas agora brilhava uma lágrima que não teve tempo de escorrer. A camisa rasgou-se e podia-se ver o seu sexo. A noite caiu. E como tudo é muito lento e burocrático, ela provavelmente fosse passar mais uma  noite, como as outras, na rua.  Só que dessa vez não iria sentir frio; menos mal.

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