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Fonte: Livro “Um Olhar Sobre a Cultura” – Francisco Weffort e Márcio Souza
Os artistas modernos no começo deste século não viam com bons olhos as instituições museológicas, bastando citar Marcel Duchamp e Marinetti. Por outro lado, os museus também não tinham simpatia pela produção dos artistas modernos e ignoravam suas inovações. Desprende-se desse antagonismo o caráter anacrônico dos museus no começo deste século que, por serem depositários da memória artística, do passado, se transformaram supostamente em instituições inimigas da contemporaneidade.
Hoje, ao contrário, os museus de arte são, em sua maioria, instituições dinâmicas voltadas para a comunidade e integradas com as inquietações artísticas e culturais dos nossos dias. Esse novo comportamento transformou os museus de “espaços empoeirados com cheiro de mofo”, segundo a opinião popular de anos passados, em centro de atrações, espaços vivos, disputados cada vez mais por um público numeroso, ávido em participar das programações artísticas e capaz de esperar horas numa fila para visitar as grandes exposições.
Essa mudança radical na dinâmica dos museus e sua inserção no cotidiano da cidade produziu uma nova relação com a sociedade. Os museus de arte deixaram de ser instituições vetustas freqüentadas por escassos especialistas, estudiosos e artistas para serem procurados por um público mais abrangente. Esse processo de democratização e ampliação do acesso à programação museológica intensificou-se nos últimos anos mais em função das exposições temporárias do que em função dos acervos.
O Ministério da Cultura, através de constantes adequações da lei de incentivos fiscais, que buscavam atender as reivindicações das instituições culturais – e de uma ampla difusão junto à iniciativa privada das possibilidades da sua aplicação e até mesmo, através de uma verdadeira pregação nacional dos benefícios desta legislação, junto a empresários, exercida pessoalmente pelo ministro Francisco Weffort – obteve um incremento extraordinário do patrocínio às atividades artísticas e, em particular, à realização de importantes mostras de arte. Algumas delas, como foi o caso da grande exposição de Rodin, atraíram uma verdadeira multidão. Abriram as portas da arte para a população, revolucionaram o significado dos museus frente ao público e a relação que estas instituições tinham com a cidade.
A inclusão da fruição artística no cotidiano da população tem alterado de forma expressiva a maneira de se encarar a arte, colocando-a em um novo patamar. Com a quebra da aura da obra de arte, há um rompimento paralelo com as exposições tradicionais e, coincidentemente, os museus se multiplicaram e uma produção novíssima começa a tomar o espaço que anteriormente só era destinado aos artistas consagrados pelo mercado de arte. A moderna museologia fez conviver num mesmo espaço mestres da história da arte com artistas quase emergentes, somando confrontos, análises, associações, dissociações, mas nunca excluindo. Uma nova ordem de pensamento percebeu que um artista teria melhor leitura se toda a sua produção fosse reunida num mesmo espaço por meio de uma megaexposição, transformando-a em mais que exposição, num megaevento capaz de arrastar multidões para os museus, incorporando-a aos city-tours dos grandes centros culturais.
A gênese das exposições desse porte foi o Centro Georges Pompidou, o Beaubourg, de Paris, que desde a sua inauguração na década de 1970, vem organizando várias dessas mostras como Paris-Moscou, Paris-Paris, Matisse, Brancusi entre dezenas de outras. Na verdade, o famoso museu parisiense consolidou esse estilo de exposição, mas o fenômeno da afluência maciça de público já estava sinalizado na cartografia dos museus, na segunda metade dos anos 60. O perfil que mais atraía o público médio era o histórico-documental, como a exposição Os tesouros de Tutankhamon, que surpreendeu Paris, em 1967, com um número recorde de visitantes: mais de um milhão e duzentas mil pessoas se acotovelaram, numa fila de quilômetros, a fim de entrar no Grand Palais para conferir muitas peças que há anos estavam no Louvre.
Logo a seguir uma retrospectiva de Salvador Dali provocou uma inusitada curiosidade por obras que já haviam sido expostas, muitas vezes, na capital francesa. Não havia quase nada que museus e galerias da cidade já não tivessem mostrado. Mas quando a exposição foi anunciada via televisão, jornais e revistas de forma maciça, uma multidão de 850 mil pagantes se colocou numa enorme fila, passando por grande sacrifício para conferir o conjunto. O sucesso do evento causou ainda mais espanto quando foi confrontado com a bilheteria do filme Octopussy, de James Bond, exibido na mesma cidade e no mesmo período. É bom lembrar que a Bienal de Paris nunca atingiu mais de 200 mil visitantes e que a última, que ocorreu em 1985, teve um pouco mais de 100 mil, fracasso que acabou decretando sua morte.
Atrair público passou a ser também arte no circuito internacional. Um museu vazio, nos dias de hoje, incomoda mais do que a irreverência das primeiras vanguardas do início do século. Para não se deixar viver às moscas, parte dos museus terem concordado em ceder seu espaço para outras atividades, como desfiles de moda, salões de automóveis e festas beneficentes pilotadas para agradar possíveis patrocinadores. Muitos museus ao final de cada ano apresentam em seus mapas de freqüência mostras inusitadas como a que aconteceu recentemente no Museu Guggenheim, de Nova York, quando todos os andares do museu foram tomados por uma megaexposição de motocicletas.
As evoluções político-sociais nas últimas décadas refletiram diretamente sobre a atuação dos museus e seu significado na sociedade. A década de 1930, num momento de florescimento cultural entre guerras, fez surgir 66 museus de arte moderna em toda a Europa. Na década seguinte, logo depois do trauma da Segunda Guerra, sob a mística generalizada da modernização da sociedade, aparece mais nítido o aumento de público, o aumento do colecionismo, o prestígio imediato dos eventos junto aos meios de comunicação, que acabam tratando as megaexposições de arte como shows de rock ou feiras de tecnologia. O objeto de arte torna-se definitivamente um produto vendável, assim como uma Ferrari ou uma Coca-Cola.
Uma das contribuições mais importantes para a reflexão do papel do museu contemporâneo e sua atuação ocorreu na segunda metade da década de 1980 com o seminário A arte contemporânea e o museu organizado pelo Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Pompidou. A história dos museus foi revisitada, sob vários aspectos. O crítico carioca Roberto Pontual, que morreu no início dos anos 90, e que acompanhou o evento, alertava para os danos que exposições superdimensionadas causam sobre cada indivíduo. “É tal a satisfação com os números grandiosos de entradas, gratuitas ou pagas, que os dirigentes de museus parecem esquecer que o muito mal trabalhado acaba freqüentemente virando pouco”, enfatizava.
Na esteira das grandes manifestações artísticas internacionais, o Brasil muitas vezes entra no circuito como mero receptor. Não que isso seja nefasto quando se trata de boas mostras, mas o ideal é que o museu possa interferir na conceituação da exposição e na sua organização. Muitas dessas mostras intinerantes causam polêmicas de toda ordem, como foi o caso de Monet, que levou ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro 432 mil visitantes.
Salvador Dali, um mestre do surrealismo que detestava os trópicos, com certeza teria mudado de idéia se visse a multidão que tentava entrar em sua exposição. Foram mais de 250 mil pessoas, somando uma média de 15 mil por dia. Um museu brasileiro de sucesso consegue, a duras penas, quando tem uma boa exposição, mil visitantes diários. Em São Paulo, Rodin inicia a fase de sucesso de público. A Pinacoteca do Estado ficou pequena para abrigar a multidão que queria conferir ao vivo o que a televisão mostrava em flashes. Filas de mais de cinco horas, e que se arrastavam por vários quarteirões, marcaram a mostra vista por 150 mil visitantes. O público ainda não foi maior porque o diretor técnico da Pinacoteca, Emanuel Araújo, por motivo de segurança, não permitiu que se mantivesse muita gente na mesma sala. Com isso, a fila tornou-se quilométrica.
A produção que envolve exposições dessa natureza pode ser comparada à de um filme de longa metragem. Todo o circuito de arte é movimentado. Orquestrados por um curador, museus, colecionadores, courriers, agentes alfandegários, arquitetos, montadores, jornalistas, críticos e público dão corpo ao ‘espetáculo’. Nada mais é feito em grande escala sem a parceria de patrocinadores de peso. Afinal são milhares e milhares de dólares envolvidos num marketing que faz harmonizar, no mesmo espaço, obras de arte e uma infinidade de quinquilharias, subprodutos da exposição, tais como guarda-chuvas, bonés, chaveiros, utensílios domésticos ou relógios. Enfim, uma parafernália que, apesar de ser mais sofisticada, é conceitualmente semelhante às vendidas em todos os pontos turísticos de qualquer cidade do planeta. Os estatutos dos museus estão sendo repensados. Colecionar e conservar são apenas dois entre os muitos objetivos de um museu contemporâneo. Basta lembrar o ex-austero Museu do Louvre, o patrimônio artístico francês de maior prestígio, que hoje abriga, em sua pirâmide, jantares e shows de música popular para alavancar e garantir público para determinados eventos.
No Brasil, o Museu de Arte de São Paulo chegou a alterar sua fachada para receber mostras como a de Monet, Portinari e Botero. O seu famoso vão-livre, o maior já projetado num museu e antes intocável, tem cedido espaço a um marketing agressivo que altera a fachada do museu. Atitudes como esta causam indignação em parte da população. A crítica de arte Aracy Amaral, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, lamentou que a mostra de Monet mais parecesse uma feira. “Essa exposição pode ser tema para o velho debate sobre os limites e riscos do patrocínio ou sobre o problema do marketing em exposições de arte.” Aracy questionava a “violência do marketing” visível por toda a avenida Paulista e que mascarava a fachada do museu. “A arquitetura de Lina Bo Bardi, concorde-se ou não com seu projeto, é um edifício tombado pelo patrimônio. Como explicar a autorização para um amplo e carnavalesco painel que reveste integralmente sua fachada?”
O uso intensivo do marketing divide opiniões. Jorge Glusberg, diretor do Museu Nacional de Belas-Artes de Buenos Aires, diz que é comum desacreditar-se da museologização que se vale do marketing e dos recursos usados nos espetáculos de músicas populares e dança, por exemplo. “É uma desqualificação injusta, porque um museu de arte não pode estar alheio às relações sociais, como ocorria antes, e essas relações sociais se baseiam em modalidades novas, que não é sensato ignorar ou excluir.”
Desde os anos 50, uma série de avanços interconectados da tecnologia, como os transportes, telecomunicações e a informática, transforma os comportamentos sociais e impõe uma cultura planetária da imagem visual e marca o advento de uma civilização de massa, assim denominada, em que cabem uma multiplicidade de fontes de informação, criação e também uma nova maneira de mostrar a arte.
A discussão da preservação do museu enquanto tal é um assunto que tem ocupado espaço na mídia, nos últimos anos. A crítica norte-americana Barbara J. Bloemink, do Centro de Arte Contemporânea de Virgínia, em artigo publicado pela revista Art News, diz que num futuro próximo as obras de arte serão trazidas para as pessoas e o museu será usado como centro de idéias. A concepção não é inovadora, já foi defendida pelo artista alemão Joseph Beuys, na década de 1960. Durante o movimento estudantil de maio de 1968, a juventude em rebelião colocou um cartaz no metrô de Paris em que decretava “A Gioconda no metrô”, uma proposta inversa à da mega exposição, em que uma única peça seria admirada por milhares de pessoas diariamente.
Um pensamento mais contemporâneo sugere que os museus trabalhem nas duas mãos possíveis. Uma com a produção já reconhecida e sacralizada, e outra com uma arte ainda fresca sem a chancela do tempo. No entanto, nos últimos anos o abismo que separava a arte contemporânea das vanguardas históricas tem diminuído cada vez mais. Ao mesmo tempo em que se faz em grandes exposições envolvendo mestres da arte, organizam-se megaexposições de jovens como ocorreu em São Paulo com o Projeto Antártica com a Folha de São Paulo, que reuniu obras de dezenas de jovens de todo o Brasil, numa demonstração de vontade de descobrir novos valores.
A experiência brasileira acumula uma série de exposições que chegam aqui cumprindo um roteiro internacional. No entanto, pode-se apontar o esforço de alguns museus que produzem e concebem algumas mostras, como foi o caso do Museu de Arte de São Paulo, com O Brasil dos Viajantes, de 1996, com curadoria de Ana Maria Belluzo, envolvendo obras significativas desde o século XVI até os dias de hoje. O esforço de reunir essa rara produção contou com um patrocinador brasileiro, que acreditou no projeto e seu poder transformador. Não foi por acaso que o MASP – Museu de Arte de São Paulo atraiu um enorme público, seduzido por uma montagem cênica que transcendia a mera disposição museológica.
Outras experiências exemplares foram as duas mostras de Marx Ernst e De Chirico, organizadas pelo Museu Brasileiro da Escultura, o MUBE (SP). Numa atitude ousada o museu idealizou duas enormes e significativas retrospectivas que traziam pela primeira vez para a América Latina obras de todas as fases significativas desses artistas. Esses dois exemplos, que tiveram parceria internacional, não caíram na armadilha do prestígio fácil e superficial. Foram projetos cuidadosamente estudado contando com o respaldo de estudiosos e especialistas nos dois artistas e dispondo de uma coleção de reconhecimento internacional. A concepção dessas megaexposições foi minuciosamente traçada junto com a direção técnica do museu, assim como a escolha das obras. As duas iniciativas mostram que há uma saída para os museus brasileiros e que é possível se pensar e elaborar projetos, mesmo quando se trata de exposições de grande porte.
Depois da implantação da lei de incentivo fiscal, que possibilitou as parcerias entre empresariado e entidades culturais, as megaexposições ocupam, cada vez mais, espaços em museus e centros de arte, incorporando-se definitivamente ao calendário do circuito de arte.
Fábio Magalhães