Um dos aspectos mais importantes de “Infiltrado na Klan”, novo filme do cineasta americano Spike Lee, 61 anos, é sua capacidade de demonstrar a plasticidade com que o ódio racial se adapta aos momentos históricos.
Por Maria Carolina Trevisan*
Na trama, vivida nos anos 1970, Lee aborda a vida de Ron Stallworth (interpretado por John David Washington, filho de Denzel Washington), primeiro policial negro na cidade de Colorado Springs. É um enredo real. Por telefone, se passa por um supremacista branco que quer ingressar na Ku Klux Klan. Em parceria com o detetive Flip Zimmerman (Adam Driver), branco e judeu, tem a missão de denunciar atentados planejados pela organização contra negros.
Lee percorre a questão racial ao longo do tempo. Traz para o filme cenas de “O nascimento de uma nação”, de D.W. Griffith, de 1915, famoso por difundir o racismo; aborda o linchamento brutal do jovem negro Jesse Washington, em 1916, que teve o corpo queimado e pendurado em uma árvore no Texas; evoca “…E o vento levou”, de 1939, quando Scarlett O’Hara sofre pelo fim da escravidão; situa a KKK nos anos 1970, ao contar a história de Ron; e chega aos dias atuais, quando mostra as manifestações racistas e antissemitas de Charlottesville, em 2017, convocada por nacionalistas brancos que desfilaram suas tochas pela Universidade de Virgínia entoando o slogan nazista “sangue e solo”.
As cenas reais do atentado, que vitimou Heather Heyer, 32, ao ser atropelada por um carro pilotado pelo neonazista James Alex Fields, 21, estão no filme de Lee. É aí que entra o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Na ocasião, Trump relativizou a situação. Em sua primeira declaração, disse: “Condenamos nos mais duros termos essa demonstração escandalosa de ódio, intolerância e e violência. De vários lados. De vários lados”, repetiu. A fala repercutiu mal. Não era possível aceitar o presidente do país sugerindo uma equivalência entre os neonazistas e os que se opunham à supremacia branca.
No livro recém-lançado “Medo – Trump na Casa Branca” (editora Todavia) de Bob Woodward, jornalista do Washington Post, está descrito em dois capítulos como a declaração de Trump foi vista com indignação pela imprensa e, inclusive, por aliados do Partido Republicano. Seu chefe de gabinete, John Kelly, fez um grande esforço para convencer o presidente a corrigir o anúncio. Trump relutou. Ron Porter, que era um de seus assessores na Casa Branca, argumentou que seria um bom momento para “mostrar o presidente como uma força construtiva e pacificadora”.
Dois dias depois dos eventos em Charlottesville, Trump terminava uma coletiva de imprensa com: “devemos descobrir os vínculos de amor e lealdade que nos unem como americanos”. No livro, Woodward mostra que o presidente ficou inconformado. “É o pior discurso que já fiz”, reclamou a Porter. No dia seguinte, passou por cima das recomendações da equipe e retomou sua fala sobre as manifestações. Deixou de mencionar “os dois lados” mas acrescentou: “a extrema esquerda partiu para cima”.
Trump, Bolsonaro e KKK
Houve reação imediata. Um dos primeiros a parabenizar Trump pelo novo posicionamento, que reforçava o primeiro, foi David Duke, conhecido ex-líder da Ku Klux Klan, retratado no filme de Spike Lee (interpretado por Topher Grace). “Obrigado, presidente Trump, por sua honestidade e coragem em dizer a verdade sobre #Charlottesville”, tuitou.
Mas a reação negativa foi ainda mais forte. Líderes das forças armadas americanas se posicionaram contra seu comandante por meio de redes sociais. Integrantes de seu Conselho Americano da Indústria se demitiram. Outros fóruns se extinguiram. Assessores se pronunciaram em público abertamente contrários às declarações de seu chefe. Trump se ofendeu, se irritou. Atacou alguns por Twitter, desprezou os que ficaram. Mas a ruptura estava posta. “Havia uma relação mais hostil com a mídia. As guerras culturais ganharam força. O racismo se expressava. Trump estimulara aquilo”, escreveu Woodward.
David Duke foi o defensor mais aguerrido das palavras do presidente americano. O ex-líder da Ku Klux Klan também se dirigiu ao agora presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro. “Ele soa como nós”, disse em seu programa de rádio, em outubro, durante a campanha eleitoral, como revelou reportagem da BBC. Criticou a proximidade do brasileiro com Israel e ponderou que seria uma “estratégia”.
Ao perceber a armadilha, Bolsonaro reagiu e respondeu : “Sugiro que, por coerência, apoiem o candidato da esquerda, que adora segregar a sociedade. Explorar isso para influenciar uma eleição no Brasil é uma grande burrice! É desconhecer o povo brasileiro, que é miscigenado”, acrescentou o ex-capitão.
Usou a ideia de mistura.
Mas Duke não parou. Encontrou eco nas outras declarações de Bolsonaro. Sentiu-se representado. Torceu e comemorou. Publicou em seu Twitter uma referência ao que Bolsonaro havia dito por telão na Avenida Paulista dias antes do segundo turno. “Somos a maioria. Somos o Brasil real. Juntos vamos construir uma nova nação. Esses marginais vermelhos serão banidos da nossa pátria”, escreveu Duke. “Em breve…”, completou. Trump e Bolsonaro têm, no ex-líder da KKK, um admirador em comum.
Bolsonaro filho nos EUA e o julgamento do crime de Charlottesville
Em um tour nas terras de Donald Trump desde segunda-feira, 26, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) visitou parlamentares do Partido Republicano e esteve na festa de aniversário de Steve Bannon, ex-estrategista da campanha de Trump. Por lá, vestiu o boné pela reeleição do presidente americano, abordou questões sobre política internacional (acerca de Israel, Cuba e da Venezuela), conversou sobre armas e acesso livre à internet. Definiu sua jornada com o objetivo de “resgatar a credibilidade brasileira”, apesar de não representar oficialmente o governo Bolsonaro.
No Brasil, o conselheiro de Trump John Bolton, assessor de segurança nacional, esteve com Jair Bolsonaro, que o saudou com continência. Ele é o primeiro emissário do governo americano a visitar o presidente eleito do Brasil. O encontro aconteceu nesta quinta-feira, 29. Bolton está em sintonia com Jair Bolsonaro . Ambos consideram a ONU inútil, desprezam os direitos humanos e defendem o armamento da população.
Também nesta semana está acontecendo o julgamento de James Alex Fields Jr., 21, supremacista branco que atropelou e matou Heather Heyer, 32 anos, e feriu outras 35 pessoas em Charlottesville, na Virgínia, Estados Unidos.
O julgamento deve durar cerca de três semanas. O estado de Ohio, onde ocorre o juízo de Fields, permite pena de morte. O júri pode definir a pena capital como sua condenação. Seria um grande paradoxo punir violência com mais violência. Uma contradição para quem defende os direitos civis e humanos. Difícil até para o mestre Spike Lee retratar e compreender.
“Infiltrado na Klan” está em cartaz em todo o Brasil. É um dos melhores filmes de Lee. Venceu o Grande Prêmio do Júri no Festival da Cannes. Foi aplaudido de pé por seis minutos. “Nós temos um sujeito na Casa Branca, eu não vou dizer o nome dele, que no momento decisivo, não apenas para a América, mas para o mundo, teve a chance de dizer: ‘Nós estamos do lado do amor, não do ódio'”, disse o diretor Spike Lee em entrevista coletiva em Cannes. “E aquele filho da puta não denunciou a maldita Klan, os extremistas de direita e os nazistas filhos da puta. Ele poderia ter dito ao mundo: ‘Nós somos melhores do que isso.”
*Maria Carolina Trevisan é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia.
Fonte; Universa
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